carta aberta no meio da tempestade

Carta aberta no meio da tempestade

Recebi uma carta sobre as notícias relativas aos escândalos na Igreja em que uma paroquiana expressava o seu apoio ao bispo e aos sacerdotes. Nessa carta, entre outras observações, que eu subscrevo, ela tem as seguintes expressões que me fazem reagir :

« As nossas comunidades cristãs estão a ser confrontadas com  uma tempestade mediática de uma violência sem precedentes, e que eu nunca vi antes… »

« As reações da Associação « La Parole Libérée »[1] desacreditam as últimas palavras do Papa Francisco, na conclusão da renunião de líderes das Conferências Episcopais do mundo que acabou de acontecer em Roma. Ora, para muitos, os comentários feitos por este grupo são os únicos credíveis. Com o lançamento do livro « Sodoma » e do filme « Graças a Deus »[2] que fazem as manchetes dos media, os cristãos são constantemente interpelados e têm necessidade de orientações porque muitos estão chocados, perturbados, mesmo perdidos face a estes acontecimentos e não têm acesso a análises confiáveis, incluindo as da imprensa católica (La Croix, La Vie…) para tentarem formar uma opinião justa. A este contexto vem juntar-se a investigação em curso sobre o Núncio Apostólico Dom Luigi Ventura de Paris[3], e a falta de reação oficial da Igreja até hoje. E eu queria fazer eco de todo este mal-estar que sinto à minha volta …

Também acabei de receber um jovem muito comprometido na Igreja, questionando-se sobre como responder ao chamamento que ele próprio sente para vir a ser padre. Eu decidi dar uma resposta pública como o fiz já, no caso da menina estuprada em Recife, em Março de 2009, e retomando o final da minha carta anterior sobre o facto de se dever ou não abandonar a Igreja.

Especifíco que escrevi este texto antes de ter visto o filme sobre as freiras abusadas no Canal Arte, na terça-feira, 5 de março. Este útlimo filme só veio dar mais força ao que se segue, tanto para denunciar o que é denunciado, como para convidar à união com Cristo e para entrar na Quaresma, neste contexto, em Igreja, ao invés de se afastar dela.

Querido x,

Obrigado pelo teu correio e pela tua proximidade com o bispo, os sacerdotes e com os cristãos perturbados com as noticias da atualidade.

Eu hesitei antes de elaborar e divulgar esta resposta. É uma carta escrita por um padre, que é também médico, como o sabes, um padre que ama profundamente a sua Igreja, que se sente profundamente irmão (o que não significa concordar com tudo) dos seus responsáveis, em particular do Cardeal Barbarin, a quem deu provas repetidamente, irmão do bispo Monsenhor Santier e que acredita ser realmente necessário sair da postura de « Igreja que se pensa perseguida ». Quando concordo, abaixo, com algumas das críticas contra a declaração do papa Francisco[4], é para lamentar uma oportunidade perdida, e todos os que me conhecem sabem o meu apego ao Papa Francisco.

Sim, alguns aproveitam a revelação dos abusos sexuais para desacreditar toda a Igreja, mas nós estamos a colher o fruto de uma não tomada de consciência do sofrimento das vítimas, que, anos mais tarde, pode levar ao suicídio. Recebo muitas confidências de pessoas que foram vítimas e ainda sofrem, 50 ou mesmo 80 anos depois. Recebo em particular sacerdotes, religiosos e religiosas, homens e mulheres que testemunham ter sido abusados antes de ser ordenados ou de fazer votos (na igreja ou nas suas famílias) e para quem as feridas se reavivam hoje, com a revelação destes escândalos, de que não se falava antes, mas que existiram em todas as épocas e em toda a humanidade.

Foi necessário o trabalho dos jornalistas e de associações de vítimas como « La Parole Libérée » em Lyon, para que a Igreja e a sociedade tomassem consciência da gravidade de certas situações e das respostas inadequadas das instituições civis e religiosas. Sim, eu sou um daqueles que estão gratos à associação de vítimas « La Parole Libérée » pela sua ação e que lamentam que a resposta inadequada da Igreja durante muito tempo leve estas associações a tomarem posições nem sempre justas, o que torna muito difícil um diálogo verdadeiro. Eu gosto da maneira como o filme « Grâce à Dieu[5] » não esconde esse debate sobre o que é certo ou errado dentro da associação « La Parole Libérée ».

Saúdo igualmente o compromisso do padre Pierre Vignon, que contribuiu largamente para que as vítimas pudessem ser ouvidas e os predadores desmascarados e impedidos de continuar nesse caminho,   embora eu não concorde com tudo, nas formas de intervir[6].

Tendo acompanhado vítimas em família, tendo acompanhado vítimas de um padre, testemunhei a reação totalemente injusta dos responsáveis eclesiasticos : eles enviaram para a África um padre que abusou de várias vítimas. Reconheceram o seu erro apenas dez anos depois sob a pressão de jornalistas[7] que foram até à África para ver este padre e tornar públicos os seus crimes. Não posso esquecer do que vi no Brasil[8], do que vi em Madagascar ou em Moçambique. Creio que devemos percorrer o mesmo caminho de conversão que o Papa Francisco propôs aos presidentes das conferências episcopais: escutar as vítimas, deixar-nos tocar por seus sofrimentos, mudar radicalmente nossas maneira de apreender as coisas.

Anoto que, com o que foi dito na época e a pedido de uma das vítimas que acompanhei por causa de uma agressão, 40 anos antes, propus um encontro de pedido de « desculpas » do tipo proposto por Madame Régine Maire entre o padre Preynat e uma das vítimas[9]. Eu fiz isso por outra vítima mas hesitaria muito fazê-lo hoje por causa da complexidade deste tipo de situação. Isto, para dizer que não me sinto melhor sobre como agir com estes dramas.

Li a declaração final do Papa[10] e compreendo o sofrimento das associações das vítimas ao recebê-la. Eu não acho que ele seja hábil neste texto dizendo tão pouco sobre as nossas responsabilidades e a nossa lentidão em ouvir as vítimas e que comece a falar sobre o que está realmente acontecendo fora da Igreja, o turismo sexual, pornografia, crianças soldados, etc. Mesmo se isto é muito real e tem que ser denunciado em outro lugar. Por outro lado, penso que colocar os presidentes das conferências episcopais de todo o mundo na posição de terem de ouvir o sofrimento das vítimas concretas foi um momento importante.

Eu guardo no meu coração um facto: no meio do caso Preynat, havia na recepção do Arcebispado de Lyon uma moldura colocada ali pelo séquito do Cardeal com a seguinte frase: « Bem-aventurados sois vós quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e levantarem todo tipo de calúnias contra vós….  » E eu enviei uma mensagem a Philippe Barbarin com o seguinte comentário: Se um membro de « Parole Libérée » ou um jornalista vir este quadro, ele estará na primeira página do jornal com o seguinte comentário: quem é « perseguido », quem está ferido? A Igreja ou as vítimas do padre criminoso? O que é dito é dito « falsamente » ou corresponde ao que o padre fez? É por causa de Jesus que sofremos ou por causa da fragilidade destes e da resposta inadequada da Igreja, até agora? O quadro foi retirado.

Diante da fragilidade de algumas pessoas que estão destruindo seriamente os outros e ouvindo também pessoas casadas partilharem as suas próprias dificuldades em viverem uma sexualidade correta, eu não me sinto juíz de ninguém, mas encontro-me diante das minhas próprias fragilidades.

Sinto-me também chamado à oração pelas vítimas, por aqueles que as feriram, por todos aqueles que são afetados por esses atos, pela Igreja desfigurada, pelo mundo ferido, mas guardando ainda uma forte expectativa em relação à Igreja, mesmo aqueles que habitualmente a contestam.

Quando ouço que o celibato é a causa dos problemas de alguns, quando vejo o que homens e pais casados podem fazer, mães também, não acredito nem por um minuto que o casamento dos padres resolveria os problemas. Isso não me impede de desejar que a Igreja Católica ordene homens casados e não apenas em certas partes do mundo, como já acontece.

Noto que quando experimentamos uma crise na nossa maneira de assumir nossa sexualidade, seja no celibato ou no casamento, é muito difícil saber onde pedir ajuda. Parece-me que seria necessário avançar não só para denunciar o exercício da sexualidade que destroi vítimas, vinda de padres ou de outras pessoas, mas para criar mecanismos, espaços onde as pessoas que vivenciam uma crise de sua sexualidade possam encontrar-se, comunicar, ser acompanhadas e não apenas de modo « espiritual », o que também é essencial.

Uma vez que a sentença seja pronunciada e a pena cumprida, também será necessário encontrar maneiras de acompanhar aqueles que foram predadores, sem que eles possam continuar a ser sacerdotes,  aqueles que o foram.

A sociedade não poderá continuar denunciando os desvios sexuais na Igreja, na política, no esporte, na educação, na arte e em toda parte, sem questionar os modelos de exercício da sexualidade que ela promove.

O Papa fala do clericalismo como causa central desta situação. Deixe-me dizer-lhe a minha preocupação ao ver que as vocações nascem hoje com aparências mais clericais, escondendo-se atrás de um « sagrado » e a busca de uma « separação », que são preocupantes, com mais rendas, batinas idealização da figura do sacerdote, apresentação do mistério eucarístico que desafia o Concilo Vaticano II, para não mencionar os grupos religiosos que manipulam as pessoas provocando emoções de maneira artificial.

Espero que na Igreja Católica deixemos de competir com certos grupos evangélicos que manipulam as multidões provocando emoções e prometendo curas, vendo o demónio em todos os lugares, exceto onde, infelizmente, ele também está muitas vezes, nomeadamente neste tipo de práticas.

           Espero que haja uma séria reflexão antes de deixar os jovens, demasiado jovens, entrar no seminário ou em comunidades religiosas, e que tenhamos o cuidado de deixar entrar apenas jovens com relações simples com os jovens da sua idade, tendo provado sua capacidade de integração no mundo. E, se possível, que tenham adquirido formação prévia ou tenham já trabalhado, com vista a uma maior   maturidade, liberdade de escolha e abertura ao mundo, que não restaurem uma teologia anterior ao Concílio, uma leitura literal da Bíblia sobre criação e pecado original, por exemplo. Numa ficha usada para a preparação do crisma dizia-se « que veio por hereditariedade do primeiro casal do qual todos somos descendentes ».

Espero que possamos refletir sobre a questão do discernimento das vocações que vão surgindo, sobre o que conduz a esta crise, de que modo fazer entrar no sentido do sagrado, e em todas as situações de influência sobre as pessoas, como foi o caso de Preynat, mas também de tantos fundadores e fundadoras de grupos sectários que foram valorizados na Igreja e continuam a ser valorizados « porque neles há muitas pessoas… ».

Esta evolução da Igreja preocupa-me tanto como aquilo que os media mal intencionados podem dizer de nós. No final da década de 1980 eu tinha já expressado a minha preocupação dirigindo-me ao juiz do tribunal eclesiástico de Lyon, após o que eu havia descoberto por mim próprio, nas congregações dos irmãos e das irmãs de São João[11], ou na comunicade carismática Leão de Judas (Beatitudes hoje), em outros lugares também. A história faz-me perceber que eu estava bem longe do que se estava passar, naquela época.[12]

Estou ciente de que tudo isto não é suficiente para impedir que este ou aquele possa ser criminoso sexual, mas, graças às associações de vítimas que nos forçam a mudar a nossa maneira de pensar e agir, que permitem às vítimas de serem ouvidas, podemos esperar que as reações dos líderes da Igreja e de todo o povo cristão sejam mais apropriadas. Elas já mudaram, mas há ainda muito a fazer em França. O que dizer em Madagascar, no Brasil, ou em Moçambique ? Para citar três países que eu conheço.

Se nós queremos responder ao desespero daqueles que confiam na Igreja, desespero que nos afeta profundamente, enquanto sacerdotes, que te afeta também a ti, precisamos de reconhecer a realidade, ajudar as pessoas a contemplar o mistério de Cristo, que teve a loucura de confiar em homens frágeis para revelar seu amor, comprometer-nos resolutamente a corrigir tudo o que precisa de ser corrigido. Contemplar Cristo que nos escolhe frágeis, não é de modo algum tolerar todos esses atos que se discutem  atualmente.

Pensando nesse jovem que se sente chamado a ser padre e que veio visitar-me para partilhar comigo, por um lado o chamamamento que sente, e por outro o seu desalento perante o que acontece na Igreja, retomo a final do e-mail que escrevi para uma militante de um movimento da igreja numa tempestade anterior[13]:

Devemos deixar a Igreja? Pelo contrário, é hora de se agarrar a ela, mas falar sem rodeios (como o Papa Francisco faz hoje) e acima de tudo, ler o Evangelho todos os dias, para vivê-lo. Foi isso que fez São Francisco de Assis num momento ainda pior da história da Igreja. (…) Pode ser uma oportunidade para deixar a Igreja, ou para se agarrar a Cristo, meditar na sua escolha de confiar em homens limitados, que não deixaram de traí-lo, de negá-lo, de lutar para saberem quem seria o maior, quando Ele anunciava a Cruz… Isto também significa que Ele te escolhe a ti, que Ele me escolhe a mim, com nossos próprios limites. Mantem-te firme; segura-te a Cristo e ao Evangelho e também à Igreja. (…)

O filme « Graças a Deus » termina com a pergunta de um filho ao pai, vítima do Padre Preynat: « Você ainda acredita em Deus? E é difícil não continuar com outra pergunta: « Você ainda confia na Igreja? « 

Eu também ouço a pergunta de Jesus a Pedro quando muitos começam a deixá-lo: « Também vós  quereis abandonar-me? » E peço ao Espírito Santo que faça despontar em nós a resposta: « Senhor, para quem iremos? Tu tens Palavras de vida eterna. » Peço-lhe ainda que nos ajude a passar do Pedro que nega Cristo, ao Pedro que dá a sua vida por Cristo, pelos homens.

Por mais doloroso que seja este momento na Igreja, hoje, é o momento favorável, para usar as palavras da 2ª leitura da missa de entrada na Quaresma, momento favorável para viver um verdadeiro questionamento pessoal e comunitário e renovar o nosso « sim » a Cristo, para renová-lo na Igreja.

Que o Espírito Santo dê substância à nossa resposta e nos faça comprometer numa atitude permanente para uma Igreja consciente da sua fragilidade, mas sinal sinal autêntico e credível do Amor de Cristo por todos os homens e da alegria que se encontra em segui-lo.

Unidos em oração

Padre Bruno Cadart
Quarta-feira de Cinzas, 6 de março de 2019[14]

1. Declaração final do Papa Francisco no final da reunião dos Presidentes das Conferências Episcopais de todo o mundo, domingo 24 de fevereiro de 2019

2. Os jornalistas do programa Cash Investigation foram à África, o que provocou outra maneira de reagir a esse padre.

3. Declaração final do Papa Francisco no final da reunião dos Presidentes das Conferências Episcopais de todo o mundo, domingo 24 de fevereiro de 2019

4. Foi uma violação das regras básicas de julgamento e não de abuso sexual.

5. Carta a Véronique, no seguimento do caso do aborto da rapariga violada pelo seu sogro (9 de março de 2009) http://bruno-cadart.com/lettre-a-veronique-a-propos-de-la-fillette-violee-a-recife

6. Como o Papa Francisco faz hoje

7. Para entrar em contato comigo: cadartbruno@gmail.com e saber quem eu sou www.bruno-cadart.com


[1]      Associação de Vitimas de padres

[2]      Que conta o escândalo do Pe Preynat que abusou mais de 70 crianças nos anos 90 sem as autoridades eclesiais reagirem corretamente, o que conduziu o Cardeal Barbarin arquebispo de Lyon a ser condenado pela justiça civil no 7/3/2019 porque não denunciou este padre à justiça (foi herança dos cardeais précédentes). O cardeal anunciou, neste mesmo dia, que vai renunciar a ser cardeal, nos próximos dias.

[3]      Ele foi acusado de acariciar pessoas num encontro oficial na Câmara de Paris no mês de janeiro e em outras manifestações públicas.

[4]      Declaração do Papa Francisco no final da reunião dos Presidentes das Conferências Episcopais do mundo inteiro, no domingo 24 de fevereiro de 2019.

[5]      O título deste filme vem duma expressão do Cardeal Barbarin numa conferência diante dos media. Estava tão preocupado para a Igreja não pagar nem ser condenada e tão pouco preocupado com o sofrimento das vítimas, anos depois, que ele acabou dizendo : « Graças a Deus os crimes do Pe Preynat não podem mais ser condenados porque hà prescrição ». Isso escandalizou muito.

[6]      Esse padre, juiz no tribunal eclesiastico de Lyon, ajudou muitas vítimas a defenderem-se e provocou a queda de varios padres, alguns muito famosos como o fundador dos « Points cœur », que eram criminosos. Mas não concordo com a petição que ele escreveu para pedir a demissão do Cardeal, nem com o jeito dele de falar nos media, agora.

[7]      Os jornalistas do programa Cash Investigation foram à África, o que provocou outra maneira de reagir a esse padre.

[8]      Escrevi uma carta a dois bispos sobre situações de agressões sexuais sem receber resposta justa.

[9]      No filme « Graças a Deus foi prescrito », se vê uma leiga que organizou um encontro entre o Pe Preynat, criminoso sexual, e uma vítima, para a vítima ouvrir o padre reconhecer o que ele fez, apesar da prescrição jurídica do fato que aconteceu muitos anos antes. O filme  torna-se muito crítico com esta atitude.

[10]    Declaração do Papa Francisco no final da reunião dos Presidentes das Conferências Episcopais do mundo inteiro, no domingo 24 de fevereiro de 2019

[11]    Foi uma violação das regras básicas de discernemento para admitir um candidato e não de abuso sexual.

[12]    Os fundadores daqueles grupos eram criminosos sexuais além de terem fundado grupos que tinham funcionamento de seitas.

[13]    Carta a Véronique, na sequência do caso de aborto da rapariga violada pelo seu sogro (9 de março de 2009) http://bruno-cadart.com/lettre-a-veronique-a-propos-de-la-fillette-violee-a-recife

[14]    Para me contatar cadartbruno@gmail.com ou saber quem eu sou www.bruno-cadart.com

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