O Verdadeiro Discípulo – Padre Antônio Chevrier – Fundador do Prado

Esta é uma versão numérica provisoria do Livro de base escrito pelo Pe Chevrier para formar padres diocesanos e ajudar toda a familia espiritual que ele fundou e que comporta: bispos (7 no Brasil em 2017), padres, diâconos permanentes, seminaristas, irmãs, leigos consagrados, leigas consagradas, leigos associados ou vivendo desta espiritualidade. Quando teremos mais tempo melhoraremos esta apresentação.

Para aquele que esta descobrindo a espiritualidade do Pe Chevrier, é melhor iniciar pelos « Escritos Espirituais » do Pe Chevrier ou pelo livro de Dom Alfredo Ancel « O Prado, uma espiritualidade apostôlica »

PREFÁCIO

(Para a edição em língua portuguesa)

Como se transmite uma herança, o Bem-aventurado Antônio Chevrier deixou-nos este livro: “O Padre segundo o Evangelho” ou “O Verdadeiro Discípulo de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Nestas páginas, podemos descobrir a força de uma vocação e a riqueza da experiência espiritual dum padre que viveu o seu apostolado ligando a sua vida com a dos mais deserdados e mais pobres do seu tempo. O sopro do Espírito Santo atravessa estes escritos que nos introduzem num conhecimento mais luminoso de Jesus Cristo, o Enviado do Pai, o único Mestre, “a beleza infinita do céu tornada visível na terra”.

O Padre Chevrier é um padre secular da diocese de Lyon na França. Vive no meio do mundo, e num mundo difícil, no coração de um bairro miserável que se afasta da Igreja e de Deus. Rodeado de crianças e de jovens dentre os mais abandonados, é aí que ele se esforça em formar alguns seminaristas para que se tornem padres apaixonados por Jesus Cristo e pelo seu Evangelho. Também tem a preocupação pela formação evangélica de alguns leigos que se encontram, desde o início, associados ao seu apostolado. Entre estas pessoas, algumas, homens e mulheres, consagrarão toda a sua vida à missão junto dos pobres. Este livro é, pois, a obra de um pastor, profundamente inserido na realidade histórica e social do seu tempo, animado de uma fé sólida que lhe permite partilhar a compaixão do Pai face “às pessoas que se perdem” de tal modo são elas atingidas pela miséria humana e espiritual.

Esta obra é o fruto duma graça particular de Deus e dum longo trabalho quotidiano das Escrituras. Na noite de Natal de 1856, o Padre Chevrier recebeu do Espírito Santo uma iluminação que lhe permitiu entrar numa contemplação mais viva do mistério de Jesus Cristo. “O Verbo fez-se carne e habitou entre nós!” Esta luz vai animar toda a sua existência e reorientar o seu ministério de padre. Longamente, continuará a estudar o Evangelho e as cartas de São Paulo, para completar o seu conhecimentos de Jesus Cristo em ordem a melhor o poder testemunhar e falar dele com simplicidade junto dos pobres.

O conteúdo do “Verdadeiro Discípulo”, é Jesus Cristo tal como se revela nas suas palavras, nos seus atos, no próprio despojamento da Incarnação. O Padre Chevrier não pode desviar o seu olhar diretamente de Nosso Senhor, através de uma contemplação sem cessar retomada dos mistérios do Presépio, da Cruz e do Tabernáculo. Convida a tomar o Senhor por Mestre, evitando longos comentários. “Conhecer Jesus Cristo é tudo, o resto é nada!”. “Conhecê-lo é a única e verdadeira ciência. Amá-lo é a mais perfeita felicidade, segui-lo é a verdadeira perfeição, o nosso único desejo”. O livro do Padre Chevrier permite, assim, um encontro vivo com o Verbo de Deus. O ato de fé é primeiro. Cada um é convidado a uma decisão existencial: determinar-se a seguir mais de perto Aquele que se dá a conhecer e que nos ama ao ponto de se entregar por nós! “Quereis ser de Jesus Cristo? Sentir o desejo de ser de Jesus Cristo? De quem quereis ser, se não sois de Jesus Cristo? Escutai o apelo de Jesus Cristo”.

“A glória de meu Pai é que vos torneis meus discípulos e que deis muito fruto!” (Jo 15,18). A finalidade de uma vida de Discípulo é, antes de mais, expressar a glória do Pai, glorificar Deus. A gratuidade, a contemplação e o louvor são as primeiras palavras da nossa união a Jesus Cristo e as atitudes fundadoras de todo o agir missionário “eficaz”. A fim de evitar as armadilhas do ativismo e do voluntarismo, é um convite a sempre melhor estudar Nosso Senhor Jesus Cristo e, sobretudo, a tomar longos tempos de silêncio e de oração. A missão junto dos pobres supõe contemplação, escuta, inteligência e criatividade, permanecendo sem cessar na escola do Espírito Santo.

O livro do Padre Chevrier articula de modo muito forte a exigência da santidade e o dinamismo missionário junto dos pobres. É só o que se espera do padre e de todo o apóstolo, que sejam santos, refletindo, assim, a própria pessoa de Cristo! Tudo se cumpre: o apelo de Cristo a segui-lo de perto, a pobreza numa vida dada ao serviço dos pobres, a paixão de fazer conhecer o Salvador e de reunir comunidades de discípulos. O amor de Jesus Cristo e o amor dos pobres tornam-se indissociáveis.

O apóstolo da Guillotière não esconde o caminho, por vezes rude, da conversão a Cristo. Trata-se de deixar o Espírito Santo nos converter em verdadeiros discípulos, seguindo o Enviado do Pai na sua pobreza, no seu sofrimento e na sua caridade. Isso não se pode fazer sem um treino duradoiro na vida evangélica que, na renúncia e no morrer para si mesmo, leva a uma comunhão profunda com o Salvador, crucificado e ressuscitado. Sem cessar, ao mostrar a beleza e a grandeza de Jesus Cristo, o redator deste livro convida-nos a conservar uma alta estima da nossa vocação e da missão confiada.

“Devemos responder-lhe com alegria… Senhor, se tendes necessidade de um pobre, eis-me aqui! Se tendes necessidade de um louco, eis-me aqui! Eis-me aqui, ó Jesus, para fazer a vossa vontade: eu sou vosso! Eu sou teu!” Há realmente uma loucura em tornar-se verdadeiro discípulo de Jesus Cristo! Uma loucura que não se compreende senão quando a vida divina vem transformar uma existência. Podemos meditar estas páginas e deixar crescer em nós a beleza de uma vida transfigurada pelo Espírito Santo, pelo amor corajoso para com os mais pobres, pela configuração progressiva com Jesus Cristo. Para o Padre Chevrier, isso não se pode viver senão em “família”, no apoio, na solidariedade e na exigência de uma vida fraterna fundada sobre Jesus Cristo e sobre uma mesma missão.

Num momento em que a pobreza toca numerosas populações, num momento em que é essencial testemunhar a novidade da fé cristã em toda a sua originalidade, os membros da família do Prado, os padres, tal como muitas outras pessoas, podem encontrar nestas páginas uma fonte viva e fecunda.

“Ó Verbo! Ó Cristo! Como sois belo! Como sois grande!…Fazei que eu vos conheça e vos ame!… Na vossa palavra está a vida, a alegria, a paz e a felicidade. Falai, Senhor. Vós sois o meu Senhor e o meu Mestre e eu não quero escutar senão a vós!”

Robert DAVIAUD

Responsável Geral
da Associação dos Padres do Prado

INTRODUÇÃO

O Verdadeiro Discípulo e a vida do Padre Chevrier

Uma nova edição do livro do Padre Chevrier, O Verdadeiro Discípulo, para quê?

Para pôr à disposição dos que o desejam o texto autêntico desta obra.

Em várias ocasiões, em comentários orais ou escritos, acusou-se de infidelidade os textos editados até agora e fez-se notar que a versão original era, por vezes, mais expressiva, mais vigorosa. Daí o desejo de uma nova edição que reproduzisse exatamente o manuscrito do Padre Chevrier.

Com efeito, pode-se temer sempre, que aquele que transformou um texto transforme igualmente o pensamento que nele se encontra, apesar de uma vontade sincera de fidelidade. E mesmo se estamos certos de obter verdadeiramente o pensamento de um homem por meio de uma adaptação dos seus escritos, preferimos, atualmente, ter os escritos no seu texto autêntico. É uma exigência legítima de exatidão científica.

No entanto, não seria necessário, para exaltar a nossa tentativa, depreciar pura e simplesmente o trabalho dos editores precedentes. Seria injusto.

Injusto antes de mais, porque todo o trabalho sobre os escritos do Padre Chevrier tira necessariamente proveito do labor considerável realizado pelos que foram os primeiros a reunir e classificar tais escritos. O volume impresso em 1923 e reeditado em 1942 e depois em 1948 é um testemunho deste trabalho. É uma compilação, dir-se-á, talvez com uma nuance de displicência. É uma compilação, é certo, mas ela foi guiada pela preocupação de nada perder dos escritos de Antônio Chevrier. Esta acumulação de materiais dá testemunho, à sua maneira, de uma preocupação de fidelidade.

Seria ainda injusto depreciar o trabalho dos nossos predecessores no que se refere à exatidão. É verdade que muitas páginas da edição de 1923 são verdadeiros mosaicos cujos fragmentos provêm de fontes diversas, mas, em geral, cada fragmento é reproduzido exatamente, com raras exceções.

Enfim, importa reconhecer ainda uma outra preocupação de fidelidade nos primeiros editores do Verdadeiro Discípulo. Eles sabiam que o Padre Chevrier queria fazer um livro e que morrera sem ter podido reunir numa só obra as diversas notas, os fragmentos, os cadernos preparados com este fim. Portanto, a própria ideia de compor um livro a partir dos documentos deixados pelo Padre respondia às intenções deste.

Ele queria fazer um livro para, de certo modo, legar a sua missão aos seus herdeiros. Estes agiram legitimamente ao querer terminar o trabalho começado. É dentro da mesma orientação que nos quisemos colocar, mas o nosso método foi diferente. Pareceu-nos que o projeto do livro do Padre Chevrier resultaria melhor renunciando ao procedimento de compilação.

Pensamos que era preciso, antes de mais, deixar aparecer a arquitetura essencial e contentar-se em indicar a armação do edifício nas partes em que o arquiteto não teve tempo de erguer as paredes[1].

Para permitir ao leitor poder situar-se na sequência desta introdução, eis aqui, de imediato, os traços essenciais da vida de Antônio Chevrier.

  • 1826,
  • 16 de Abril, nascimento em Lyon. O pai é um empregado de posto fiscal; a mãe trabalhadora em seda está à frente de um pequeno atelier. A família ainda está próxima das suas origens rurais, sobretudo pelo lado da mãe, oriunda do Dauphiné.
  • 18 de Abril, batismo na igreja de São Francisco de Sales.
  • 1840, Antônio Chevrier fazia até então os seus estudos junto dos Irmãos das Escolas Cristãs. No começo do ano letivo do mês de Outubro, torna-se aluno da escola clerical da paróquia.
  • 1843, Outubro, entra como interno no seminário de Argentière (diocese de Lyon).

  • 1846, Outubro, entrada no seminário de teologia em Lyon.
  • 1850,
  • 25 de Maio, Antônio Chevrier é ordenado padre.
  • 28 de Maio, é nomeado vigário de Santo André da Guillotière, bairro muito povoado de Lyon. Ele entrega-se sem medida neste ministério. (Em Dezembro de 1855, esgotado, deve ausentar-se para quatro meses de repouso). Desde este período, ele mantém uma atenção privilegiada em relação aos pobres e sofre ao ver que o seu ministério não produz bastante fruto.
  • 1856,
  • 31 de Maio, inundações catastróficas na margem esquerda do Ródano, onde está situada a Guillotière. O clero da paróquia de Santo André está na primeira linha dos socorristas e a reputação de devotamento do padre Chevrier aumenta.
  • Junho, Antônio Chevrier tem a oportunidade de encontrar Camilo Rambaud. Este é um jovem burguês de Lyon que se converteu e se pôs ao serviço dos pobres vivendo como eles e com eles. Camilo Rambaud está fundando a Cidade do Menino Jesus. É uma empresa simultaneamente religiosa e social. Ali se constrói habitações para os operários e nela se faz o catecismo para as crianças pobres. O padre Chevrier ficou muito impressionado com o exemplo de Rambaud.
  • Natal, a “Conversão” de Antônio Chevrier. Ele medita diante do presépio a palavra do Evangelho: O Verbo se fez carne e habitou entre nós; compreende então o apelo especial que Cristo lhe dirige a uma vida mais perfeita, mais evangélica, mais apostólica; decide-se a seguir Jesus Cristo na sua caridade infinita para com os homens, nos seus rebaixamentos, na sua humildade e no seu amor à pobreza.

1857,

  • consultas diversas, principalmente junto do Cura d’Ars. É encorajado nos seus projetos. No entanto, o seu pároco e o clero que o rodeia não aprovam as suas ideias.
  • Agosto, ele deixa a paróquia e torna-se capelão assistente da Cidade do Menino Jesus. É ali que nasce o costume de o chamar Padre Chevrier. A sua mãe, muito autoritária, está muito descontente com esta orientação; ela não vai desarmar até à morte de seu filho. Pessoas que se chamam irmãs, dedicam-se ao serviço da Cidade. Naquele ano entra Maria Boisson, uma jovem de 22 anos, operária da sêda, que se tornará a primeira superiora das Irmãs do Prado, Irmã Maria. Na Cidade o padre Chevrier encontra também Pierre Louat, chamado Irmão Pedro, que será co-fundador do Prado, mas que não permanecerá.
  • 1859,
  • Janeiro, primeira estadia em Roma.
  • Nos meses seguintes, o padre Chevrier percebe claramente a divergência de orientação entre Rambaud e ele próprio. Será necessário separar-se, todavia o padre Chevrier permanece na Cidade à espera que Camilo Rambaud receba a ordenação e possa ali assegurar o ministério sacerdotal.

  • 1860, 10 de Dezembro, o padre Chevrier toma posse de um local situado na Guillotière. Era, então, uma sala de dança de má fama que se chamava o baile do Prado. Prado continuará a ser o nome da casa e da família espiritual do padre Chevrier. Neste edifício, o padre instala uma obra de catecismo para as crianças pobres. Nos anos seguintes, apresentam-se vários colaboradores. O mais convencido é o padre Jaricot que será ordenado em 1869, porém, como não tem uma mente bastante sólida, pelo que o padre Chevrier não poderá apoiar-se nele.
  • 1864, Setembro, segunda viagem a Roma. O padre Chevrier quer apresentar ao Papa um pedido. Dele nos deixou o texto no Verdadeiro Discípulo[2].
  • 1865, nascimento da escola clerical do Prado. Na prática, é necessário mandar os alunos continuar os cursos na escola clerical de São Boaventura, paróquia da margem direita do Ródano.
  • 1866, Outubro, o padre Chevrier encontrou um professor para os seus alunos. A escola clerical funciona no Prado.
  • 1867, o padre Chevrier é nomeado pároco da paróquia de Moulin-à-Vent. Esta paróquia da diocese de Grenoble ficava na proximidade da diocese de Lyon e dos arredores lioneses. Estava combinado que o padre residiria habitualmente no Prado e se faria substituir na paróquia pelos padres que viviam com ele. Será, sobretudo, o padre Martinet quem se ocupará desta paróquia. Para o Padre Chevrier, é um terreno precioso de experiência para a sua finalidade principal, A Obra dos padres pobres para as paróquias[3]; mas, em Junho de 1871, sem que tivesse recebido nenhuma notificação oficial, tem conhecimento de que o padre Martinet foi nomeado pároco em seu lugar.
  • 1874,
  • final de Março, uma doença grave exige-lhe repouso até ao fim de Maio.
  • Novembro, no campo, perto de Lyon, em Limonest, instalação de uma pequena comunidade: o Padre Jaricot, quatro irmãs e uma vintena de crianças do catecismo.
  • 1875, Maio, terceira viagem a Roma. Nesta época, o padre Chevrier é aconselhado a organizar a sua casa como congregação religiosa. O Arcebispado de Lyon opõe-se a este projeto e o padre Chevrier não insiste.
  • 1876,
  • o padre está muito mal de saúde e o médico ordena-lhe uma temporada em Vichy (25 de Julho – 15 de Agosto).
  • Outubro, o Arcebispo autorizou o envio a Roma de quatro seminaristas do Prado. São diáconos e vão formar uma pequena comunidade autónoma para viver, na medida do possível, segundo as diretrizas do Padre Chevrier.

  • 1877,
  • 14 de Março, quarta viagem a Roma do Padre Chevrier. Durante dois meses, vai viver com os quatro seminaristas explicando-lhes o Verdadeiro Discípulo.
  • 26 de Maio, ordenação sacerdotal em São João de Latrão.
  • 20 de Junho, regresso a Lyon. O Arcebispo prometeu ao Padre deixar-lhe estes quatro novos padres.
  • 1878,
  • na Primavera, o Padre Jaricot parte para o mosteiro e dois dos novos padres falam também em ir-se embora, enquanto o Padre Chevrier está cada vez mais doente[4]. No entanto, o Padre Jaricot volta ao Prado em Junho.
  • A 31 de Outubro, o Padre Chevrier celebra missa pela última vez. Daqui por diante ficará acamado até ao final.
  • 1879,
  • a 6 de Janeiro, o Padre Chevrier apresenta a sua demissão e o Padre Duret, um dos quatro padres de 1877, torna-se superior do Prado[5].
  • A 2 de Outubro, no Prado, morre o Padre Chevrier. Será enterrado na capela do Prado a 6 de Outubro.

Voltamos agora ao Verdadeiro Discípulo.

O Padre Chevrier queria fazer um livro. A este respeito, os testemunhos são formais, entre eles, o próprio testemunho do Padre[6].

No entanto, a forma precisa deste projeto exige uma explicação.

Quando se fala de livro, pensamos imediatamente numa obra impressa, dada ao público por meio de uma livraria. Por certo o autor tem alguma ideia dos que o lerão, mas, muitas vezes, não tem contato direto com eles.

No que se refere ao Padre Chevrier, não sabemos se ele pensou que um dia o seu livro seria impresso. Não é de excluir, mas parece certo que o assunto não estava planejado para o momento. Com efeito, o Padre Chevrier escrevia em primeiro lugar para os pobres e os seminaristas que viviam com ele. Ele escreveu, aliás, nas mesmas condições outros trabalhos, catecismos, comentários do Evangelho, etc…

Nunca escreveu senão para a sua família espiritual e, na época, dado o pequeno número de pradosianos e a pobreza dos seus recursos, o único procedimento utilizado era a cópia manuscrita[7].

Deste modo, o Padre Chevrier entrevê, para além dos seus primeiros companheiros, todos os que se hão-de juntar a eles e não pensa que o seu número será forçosamente reduzido; por outro lado, pressente que o desenvolvimento se fará esperar longamente.

Ele vê longe e amplamente, pelo que se propõe escrever um livro. Importa edificar algo que seja suficientemente construído para durar e atingir os que vierem mais tarde quando o Padre tiver desaparecido. Isso é tanto mais necessário na medida em que os primeiros discípulos são jovens e ele próprio sabe bem que não ficará muito tempo com eles.

Porém, ao mesmo tempo que vê à distância e largamente, permanece o homem modesto e realista, cheio de bom senso que sempre foi. Não pensa que o seu livro possa interessar, na sua época, fora do Prado e de certo que não se engana. Do mesmo modo, a questão de uma edição impressa não se coloca. Aliás, o Padre Chevrier sabe bem que não tem aptidões especiais para escrever um livro[8], o que é mais uma razão para se limitar ao reduzido público do Prado.

O seu projeto de livro está, por outro lado, ligado essencialmente a um outro projeto, o que ele chama: a obra dos padres pobres para as paróquias[9].

Antônio Chevrier, ordenado padre em 1850, passou seis anos na paróquia de Santo André da Guillotière. À época, a Guillotière era um subúrbio operário.

Durante este período, um amadurecimento se produziu neste jovem vigário. Basta circular pelo território da paróquia para verificar a miséria material e moral de um povo sociologicamente separado do núcleo que formam os frequentadores da igreja paroquial. As inundações de Maio de 1856 e o encontro de Camilo Rambaud em Junho dão, sem dúvida, um novo impulso a esta evolução interior que desemboca na noite de Natal de 1856. É o que ele próprio chamará a sua conversão[10].

Iluminado pelo exemplo d’Aquele que, de rico que era, se fez pobre para

nos enriquecer da sua pobreza[11] compreende a graça que lhe foi dada: tornar-se um padre pobre para anunciar o Evangelho aos pobres. “Dizia para mim próprio: o Filho de Deus desceu à terra para salvar os homens e converter os pecadores. E, no entanto, que vemos nós? quantos pecadores há no mundo! Os homens continuam a condenar-se. Então, eu decidi-me a seguir Nosso Senhor Jesus Cristo mais de perto, para me tornar mais capaz de trabalhar eficazmente na salvação das almas”[12].

O primeiro movimento de Antônio Chevrier é o de se pôr na escola dos que o ajudaram a descobrir a pobreza de Jesus Cristo e dos pobres. Tinha descoberto Camilo Rambaud, este jovem burguês de Lyon que, fundando a Cidade do Menino Jesus, se tinha feito pobre com os pobres. Talvez espera encontrar nele um guia e, possivelmente, é com esta ideia que o persuade a orientar-se para o sacerdócio. A verdade é que o Padre Chevrier sucede aos Capuchinhos como capelão da Cidade do Menino Jesus onde se ocupa especialmente da preparação das crianças para a Primeira Comunhão.

Todavia, progressivamente, dá-se conta de que a sua orientação não coincide com a orientação de Camilo Rambaud. Então, depois de muito hesitar, em Dezembro de 1860, aceita retomar à sua conta a Obra da Primeira Comunhão, instalando-se no local do Prado. Vai poder consagrar-se inteiramente a levar a Boa Nova aos pobres e espera que padres animados das mesmas intenções se hão-de juntar a ele. É que ele sabe, desde o início, que o seu projeto não será conseguido se ele continuar só. Em Maio de 1858, tinha escrito, no decurso de um retiro: “Prometo a Jesus procurar colegas de boa vontade para os associar a mim…”[13].

De 1860 a 1866, novo período de amadurecimento para Antônio Chevrier. Uma coisa torna-se cada vez mais clara: não terá companheiros de trabalho a não ser que ele próprio os forme.

Um certo número de padres andaram à volta do Prado durante estes seis anos, mas nenhum percebeu do que se trata. Talvez um ou outro tivesse podido compreender, mas, então, a autoridade diocesana impede-os de se reunir. Entretanto, ao mesmo tempo, apresentam-se discípulos para formação[14].

Então, o Padre Chevrier decide-se a fundar uma escola clerical. Foram-lhe necessários dez anos para ele próprio aceitar ser o guia, dez anos para se resignar a ser, pessoalmente, formador de padres pobres para os pobres.

Quando estava em causa tornar-se pessoalmente pobre com os pobres, tinha ido consultar o Cura d’Ars, tinha refletido com o seu confessor, com o seu antigo diretor espiritual, o do Seminário Maior. Tais consultas

lhe bastaram para ir, com a licença do Arcebispado, viver na Cidade do Menino Jesus.

Ao contrário, quando se trata da fundação do Prado, hesita durante muito tempo. Escreve a 17 de Outubro de 1860: “Veja-se o que faz o bom irmão Pedro! Sempre me apoquenta este pobre rapaz. Queria muito ser-lhe útil, tão generoso é ele para com Deus; mas tem demasiada confiança em mim, conta sempre comigo, espera sempre que eu empreenderei qualquer coisa, mas eu não tenho bastante confiança em mim para ousar fazer coisas que Deus Nosso Senhor talvez não aprovaria. Assim, não convém que, para o tirar de apuros, me meta eu a mim próprio. Gosto pouco do que atrai oposição, contrariedades da parte da autoridade, não sinto realmente as minhas costas bastante fortes para carregar um tão grande peso. Por outro lado, os acontecimentos têm tão má aparência; a minha saúde não é muito robusta e, acima de tudo, não tenho o espírito suficientemente iluminado e inventivo para tomar a meu cargo semelhantes preocupações. A minha vocação é, de preferência, estar num cantinho desconhecido, ignorado e fazer o trabalho que há a fazer sem adiantar-me demasiado”[15].

Após a instalação no Prado, o Padre Chevrier permanece todavia em ansiedade e, parece que a causa profunda desta ansiedade se revela pouco a pouco. O projeto da escola clerical impõe-se-lhe cada vez mais. Eis aqui algumas manifestações do seu estado de espírito.

“Sinto de tal modo a minha impotência, a minha incapacidade, que digo muitas vezes a Deus: Meu Deus, não será que vos enganastes ao pôr à frente de uma grande Obra um pobre ser tão fraco como eu? Sou tão pobre, tão pecador, tão ignorante, que realmente se Deus Nosso Senhor não envia alguém para fazer o seu trabalho, este não pode senão perecer. Quantas qualidades, quantas virtudes são necessárias para estabelecer qualquer coisa, para fazer como deve ser a Obra de Deus. Sei bem que Deus escolhe os que quer, os menores e os mais pobres muitas vezes para manifestar a sua glória e o seu poder, de tal modo que todo o mundo possa dizer com verdade: com certeza foi Deus que fez isso; mas importa também que este pobre ser corresponda bem à graça; importa que seja um homem de oração e de sacrifício e eu sinto que resisto sempre à santa vontade de Deus, que atraso a sua Obra. Seria necessário alguém aqui, constantemente ao meu lado que me empurre e me lembre o que devo fazer. Como sou infeliz! Como chego a meter dó! Se não faço o que Deus Nosso Senhor quer, que responsabilidade, que julgamento, que condenação para mim! Durante muitos anos eu dizia a Deus: Meu Deus, se tendes necessidade de um pobre, eis-me aqui, se tendes necessidade de um louco, aqui estou eu e sentia que tinha a graça para fazer tudo o que Deus Nosso Senhor tivesse exigido de mim. E, agora, que era necessário agir, sou preguiçoso, sou covarde. Oh! se não há almas que rezem por mim, que me empurrem, estou perdido.


Se Deus Nosso Senhor me enviasse um bom companheiro que percebesse bem a Obra de Deus, então sentir-me-ia com mais coragem, mais força, porém só, sempre só, sinto que não tenho força ou que necessitaria de uma graça extraordinária que ainda não mereci, pois que, as graças de Deus há que comprá-las e para comprar as graças de Deus, nunca se poderia fazer demais, sobretudo, quando elas devem contribuir para a salvação das almas e para a glória da Igreja.

“Perdão, querida filha, se vos falo tão abertamente e vos revelo um pouco a tristeza da minha alma, mas é para que eu possa encontrar em vós uma alma que reze e que me ajude a realizar a santa vontade de Deus, porque se Deus fez o Prado, decerto que não foi para me dar uma propriedade de cem mil francos, para fazer dela o quê? Dei tudo a Deus e não lhe pedi senão a Santa Pobreza por herança, há mais alguma coisa? Pois bem! ajude-me a fazer o que Deus Nosso Senhor pede, sobretudo esta obra de Padres pobres para as paróquias. O Padre, oh! ninguém como o Padre pode fazer qualquer coisa. O Padre é tudo…. É Jesus Cristo na terra. Importa que eu seja um outro Jesus Cristo na terra a fim de que aqueles que vierem aqui possam ser também eles próprios outros Jesus Cristo vivo, só isso pode converter as almas”[16].

As testemunhas contaram, cada qual a seu modo, o que perceberam deste assunto. Camille de Marguerye, impulsiva, dada a tomar as suas imaginações por realidades, afirma sem rodeios:

“Ele dizia-me um dia que a Obra da Primeira Comunhão não tinha sido o seu objetivo principal, mas um meio para preparar e ocultar a obra principal que ele tinha em vista e que era a formação dos clérigos. Esta obra teria encontrado imensos obstáculos se ele a tivesse anunciado desde do começo.”[17].

O Confessor do Padre Chevrier, o Padre Bruno, capuchinho, faz prudentemente uma declaração em sentido oposto:

“Não creio que o Padre Chevrier tenha tido, de início, a ideia de fundar uma escola para os clérigos nem uma congregação de sacerdotes. O seu espírito de fé esperava da Providência que ela lhe indicasse e lhe desse os meios de prover às necessidades da sua obra; foi pouco a pouco, sob uma inspiração sobrenatural que esta ideia germinou nele. A subsistência que a Providência lhe dava em ordem às necessidades materiais permitia-lhe confiar que não seria abandonado no tocante às necessidades espirituais. A obra não recebeu a aprovação canónica de Roma, mas nunca fez nada sem o assentimento e a aprovação do Ordinário”[18].

Não será preferível o testemunho da Irmã Maria que viveu toda a história do Prado, desde o tempo em que entrou na Cidade do Menino Jesus, em 1857?

“O primeiro pensamento do Padre Chevrier foi sempre a formação dos padres, só que a concretização não veio senão depois… Como eu já disse, a criação de uma escola para a formação dos padres era o pensamento primeiro do Padre Chevrier, mas ele não pôde realizá-lo senão a partir de 1865. A minha parte nesta fundação era a de me ocupar com a preparação dos cestos da comida das crianças que eram enviadas numa preceptoria (curso particular) na paróquia de São Boaventura e que ali comiam dos alimentos que haviam levado. Eram, então, apenas três ou quatro. Estas relações das nossas crianças com a preceptoria de São Boaventura foram a causa pela qual o Padre Jacquier se retirou mais tarde para o Prado”.[19]

Françoise Chapuis, com uma simplicidade pitoresca, confirma bem o que diz Irmã Maria:

“ O Padre Chevrier falou-me muitas vezes da escola clerical, muito antes de a fundar. Ele já sonhava com ela, ainda antes de ter tomado os seus primeiros auxiliares e rezou muito por esta intenção. Um dia, então, disse-me:

–     Françoise, tenho desejo de fazer um viveiro de sacerdotes. Tenho desejo de ter padres que sejam educados com as minhas crianças, para que as compreendam bem.

–     Porém, meu Padre, como fareis para os alimentar? Já tendes muito que fazer com as subscrições.[20]

–     É verdade, estas subscrições não rendem, mas tenho uma ideia, uma ideia que me humilhará muito, pois que sou muito orgulhoso. Acho que Deus quer que me humilhe. A minha ideia é ir pedir esmola à porta da igreja da Caridade. Estenderei o meu chapéu ou o meu barrete aos passantes e recitarei o meu terço pelos que puserem algo dentro.

–     Meu Padre, não vos deitarão senão uns centésimos… não haverá nada com que fazer.

–     Não, diz-me ele, porão também moedas e notas.

Nas nossas conversas sobre este assunto, ele insistia muito sobre a necessidade de ter padres piedosos, simples e como eu lhe citasse o nome dos seus colaboradores, respondeu-me: “Ainda não é bem isso, eles não são bastante simples”.[21]

Tratar-se-ia do mesmo assunto de que falou Soeur Marie-Antoinette Laffaye, cozinheira do Prado?

“Quando o Padre teve o projeto de fundar a Obra do Prado, foi nisso muito empurrado pelo Irmão Pedro. Ao no-lo contar mais tarde, dizia-nos: “Fiz tudo o que pude para recusar esta ideia, porém, Deus Nosso Senhor perseguindo-me por todo o lado, apesar de todos os meus esforços fazia-me voltar ao mesmo”. Um dia, perseguido pelos seus pensamentos, retirou-se para um bosque, ficou lá um dia inteiro e lá rezou: “Foi naquele momento, diz-nos ele, que, vencido por esta voz interior, disse a Deus:

Se tendes necessidade de um pobre, eis-me aqui, se tendes necessidade de um louco, aqui estou”. A partir daquele dia já não lutou mais e continuou resolutamente o que Deus queria dele, a sua obra que apenas começava e que encontrava tantas contradições. Ele próprio nos diz isso várias vezes. “Neste momento, diz-nos, vi todos os sofrimentos que teria de sofrer”. [22]

Soeur Antoinette parece ter sido uma espécie de comadre tagarela e curiosa, pelo que não estamos muito certos da sua objetividade. Seja como for, parece provável que a decisão tenha acabado por tomar corpo bastante repentinamente na sequência de um longo e doloroso período de incerteza. Isso estaria totalmente de acordo com o que diremos do caráter do Padre Chevrier.

Em todo o caso, a partir de 1866, se o Padre Chevrier está sempre vivamente convencido da desproporção entre a sua pessoa e a obra a realizar, nunca põe em causa a decisão tomada. Desta vez, para estar certo da vontade de Deus, ele foi mais exigente do que há dez anos atrás. Ele quis sinais particulares. Ele explica-o numa carta de 7 de Novembro de 1865, dirigida ao Padre Gourdon. Este tinha expressado o desejo de se juntar ao Padre Chevrier, o que, aliás, não poderá realizar-se.

“Que a vontade de Deus se cumpra em todas as coisas, tanto em nós como em todos os homens da terra. Se Deus Nosso Senhor o permite, vinde, ficarei feliz de poder contribuir para uma obra que amo e que desejo há muitos anos.

A Providência parece facilitar esta reunião e mesmo pedi-la. Tenho, no Prado, um lugar para alojar os que queiram trabalhar na obra, e isso com tanto maior prazer quanto tenho quatro alunos que me vejo obrigado a mandar para uma escola clerical de Lyon, não tendo professor aqui, e como ficaria feliz de os ter continuamente em casa para lhes dar este espírito de simplicidade e de pobreza que deve ser o nosso fim principal.

Se tendes alunos, podeis trazê-los, posso oferecer-vos um alojamento para 8 ou 10 alunos.

O que me faz desejar isto, é que o Senhor Magand acaba de me escrever precisamente umas horas antes da recepção da vossa, que não podia continuar esta obra dos estudantes pobres, porque os seus recursos não lho permitiam, que tinha somente quatro e que estes quatro lhe pagavam pensão. Não me parece que Nosso Senhor queira deixar perecer uma obra tão agradável que tinha começado. Talvez quer que pobres sacerdotes o façam. Pela minha parte, sinto-me totalmente disposto a continuá-la com a ajuda de um bom companheiro. Temos aqui o começo, os alunos e o local e os recursos da Providência já bastante visíveis para não nos fazer duvidar. Assim, pois, confiança, a benção de Sua Santidade que me abençoou a mim e a ti, pois que a deu a todos os sacerdotes dispostos a aceitar a santa pobreza de Jesus Cristo. Vinde, ficarei muito contente em vos receber. Consegui a permissão de Sua Eminência e começaremos. Quanto às pessoas que formastes na pobreza,

continuai a dirigi-las nesta via de Nosso Senhor e mais tarde ser-nos-ão muito úteis quando nos for dado servir algumas paróquias pobres, se Deus quiser.

Oh! Fiquei muito feliz ao ler a tua carta. Vi que também não estava só. Tenho dois ou três companheiros que têm as mesmas opiniões, porém, como sabeis, mas há alguns em relação aos quais o Espírito Santo parece encaminhar-nos mais. Rezemos muito a Deus durante estes dias, peçamos muito que se faça a sua santa vontade e que se aplanem os obstáculos. Prometo-vos encomendar este assunto no Santo Sacrifício durante todos estes dias…”.[23]

Os sinais que convenceram o Padre Chevrier podem reduzir-se a quatro: a benção do Papa, a autorização do arcebispo, a proteção da Providência sobre a casa do Prado, o encontro de padres orientados no mesmo sentido.

Desde 1864, o Padre solicitou uma aprovação pontifícia. Teve de contentar-se com uma benção. No entanto, tratava-se de uma benção no verdadeiro sentido da palavra. O Papa falou bem do projeto e de quanto esperava dele. “A Obra é boa” declarara.[24]

O Papa, por outro lado, remetia o assunto aos bispos. Eram eles que deviam atestar da oportunidade e do êxito do empreendimento. O Padre Chevrier segue este conselho interpretando-o a seu modo.[25]

Com certeza pediu ao seu arcebispo as autorizações que lhe eram necessárias e quando a aposta lhe parecia séria, sabia insistir para conseguir o que, de início, se lhe tinha negado.

Foi assim que conseguiu organizar, ele próprio, o último ano de formação dos seminaristas Broche, Delorme, Duret e Farissier. Incorporados no Seminário Maior de Lyon, eram diáconos em Junho de 1876. É a eles que, em Roma, na Primavera de 1877, o Padre Chevrier consagra todo o seu tempo e as suas últimas forças explicando-lhes o Verdadeiro Discípulo.

Contudo, em relação a um outro assunto, sério por suas consequências, em que não vê claramente a vontade de Deus, a oposição do arcebispo é para ele um sinal suficiente. Trata-se do projeto de organização do Prado como congregação religiosa. Em 1875, aconselhado sem dúvida por um bispo missionário, Monsenhor Dubuis, e pelos Padres Capuchinhos, o Padre Chevrier tinha levado a cabo um certo número de consultas, mas o arcebispo de Lyon não se mostra favorável a este projeto. O Padre podia, sem desobedecer, ter insistido e ter feito de novo certas diligências, porém, renuncia a seguir a opinião dos que o pressionavam a fundar uma congregação religiosa e decide permanecer secular. Finalmente, perto de morrer, deixa à sua família espiritual um conselho claro e inequívoco: “Olharemos o Senhor Arcebispo como o nosso superior imediato”.3

A referência ao terceiro sinal a lemos sob a pena do Padre Chevrier. Trata-se dos “recursos da Providência já bastante visíveis para não nos deixar duvidar”.

Não é uma simples nota de passagem. Sabemos, por outro lado, a importância que ele lhe atribuía[26].

Relativamente ao quarto sinal, pode-se dizer que o Padre Chevrier não foi muito exigente. Contentou-se com o estritamente necessário neste domínio. Escreve ao Padre Gourdon: “Vi que não estava só”, porém, em toda a sua vida não poderá senão avistar de longe a Terra Prometida, pois que é ao mesmo padre que, mais tarde deve escrever:

“Se somos obrigados a ficar afastados fisicamente, permaneçamos unidos em espírito e pratiquemos cada qual conforme puder a santa pobreza de Nosso Senhor. Esta decisão do conselho, embora não deva espantar-nos, devemos respeitá-la e submeter-nos muito humildemente. Estes senhores não podem adivinhar o motivo que nos faz agir e não vêem também a necessidade de um novo padre para o Prado”[27].

Se se quisesse, agora, esboçar um itinerário espiritual de Antônio Chevrier, poder-se-ia vê-lo plenamente consciente da sua vocação pessoal em 1856, após seis anos de ministério paroquial ordinário. Está decidido a seguir Jesus Cristo mais de perto.

Em 1860, com a fundação do Prado, está firmemente ancorado nesta via descoberta quatro anos antes, mas, ao mesmo tempo, pressente ansiosamente uma nova dimensão da sua missão. Deus quer suscitar através dele vocações semelhantes e, a partir de 1866, não tem dúvidas sobre a amplitude desta missão. Avança doravante humilde mas firmemente. Sabe, particularmente, que não pode e não deve deixar a outros o cuidado de instruir os seus na via do Evangelho.

Mas, para realizar o seu destino, Antônio Chevrier deve dar um novo passo. Deve consentir na destruição da obra à qual ele se entregou completamente. Na verdade, ele tinha receado muito esta obra e não a tinha empreendido senão por ordem divina, pensava ele.

Nesta circunstância fica-se espantado de ver como ele aceita o fracasso com toda a humildade, sem nada perder das certezas adquiridas em 1856 e 1866. A obra é de Deus. É em 1878 que vem a provação, quando o Padre Jaricot partiu para a Trapa de Aiguebelle.

“O vosso exemplo produz efeitos admiráveis! O padre Duret, desde há vários dias, diz-me que não é capaz de fazer o catecismo, que importa primeiro do que tudo tratar da sua salvação, que um homem não é necessário a uma obra tão bela, que Deus saberá bem substitui-lo, que Deus não me abandonará; que sente a necessidade de retiro e de trabalhar, que é necessário que vá à Grande

Cartuxa; que teria feito melhor em ficar como irmão e devotar-se à Obra sem assumir a responsabilidade de sacerdote, que esta responsabilidade lhe mete medo e que receia o juízo de Deus; que, quando tiver passado alguns anos na Grande Cartuxa, voltará mais forte e mais seguro da sua vocação; que no entanto, a vocação do Prado é muito bela, que não escolherá outra, mas que é necessário que se vá embora… Não sei se, depois desta série[28], não se irá ele embora.

O padre Farissier tem sempre o desejo de ser missionário e deixa cair, de vez em quando, o seu desejo de ir para a China.

O padre Broche prefere mais Limonest do que o Prado e ficará, penso eu, com Monsieur Jaillet.

O padre Delorme não tem saúde e não poderá atuar só, apesar do seu valor; necessitaria de passar alguns meses no campo e a partida dos seus companheiros não o encorajará nada.

Se as coisas resultarem assim, pedirei aos latinistas para irem ao Seminário e não poderei retomar crianças para a Primeira Comunhão. Não me acho nem com saúde nem com coragem para fazer agora como antes. Deus Nosso Senhor tinha-me dado ajudantes, bons coadjutores, ele mos retirou: que seja bendito o seu santo nome. Deus Nosso Senhor põe-me à prova de maneira evidente na medida em que não tem necessidade de ninguém para fazer a sua obra. Vós dizeis todos que Nosso Senhor não tem necessidade de ninguém, que tudo resolverá bem sem vós, evidentemente; penso que, depois de nós, Deus Nosso Senhor enviará outros que farão melhor do que nós; é a minha única consolação e a minha única esperança, pois que, de qualquer modo experimentarei uma certa tristeza ao ver o Prado deserto e sem crianças, uma vez que, durante dezoito anos foi o lugar de tantos suores e trabalhos e de conversões.

Ide-vos embora todos rezar e fazer penitência no claustro. Tenho pena de eu próprio não poder ir, até porque tenho muito mais necessidade do que vós, por ser mais velho e, consequentemente, ter muito mais pecados do que vós. Contudo, se não vou para lá, irei possivelmente a Saint-Fons e ficarei com a consolação de ter formado trapistas e cartuxos e missionários, já que não consegui formar catequistas, embora, em minha opinião, deve ser esta a necessidade da época atual e da igreja.

Adeus, meu caro amigo, rezai por nós e, sobretudo, por mim que pensava ter feito alguma coisa, uma obra, e vejo que não fiz nada. Possa esta humilhação ensinar-me e sirva para expiar todos os meus pecados de orgulho e outros da minha vida.

Vosso irmão em Jesus Cristo abandonado na cruz[29].

Vejamos o pensamento exato do Padre Chevrier. Declara-se desgostoso se o trabalho

que se faz no Prado foi interrompido, mas vê claramente que o fracasso afeta o trabalho de formação apostólica começado com a escola clerical. “Pensava ter formado catequistas e vejo que não fiz nada”. E isso dá-se no momento em que não lhe é mais possível começar de novo. Com efeito, a carta ao Padre Jaricot é de 9 de Abril de 1878. O Padre Chevrier está já doente há muito tempo. Não assistirá à destruição da sua obra mas morrerá a 2 de Outubro de 1879 encomendando a Deus o cuidado de consolidar o que não tinha senão começado.

É-nos muito difícil avaliar o alcance da última provação do Padre Chevrier. Só Deus lhe conhece os efeitos. Mas, à luz da Sabedoria divina, esta provação não é para nós um sinal? Não é o selo posto por Deus na vida de Antônio Chevrier chamado para evangelizar os pobres e, sobretudo, para formar outros para esta missão?

Esta provação é também um selo aposto ao Verdadeiro Discípulo. Este livro nasce da experiência de Cristo feita por Antônio Chevrier no Natal de 1856.

Nasce da sua experiência de padre pobre para os pobres na Cidade do Menino Jesus, no Prado, na paróquia de Moulin-à-Vent.

Nasce do seu consentimento à tarefa pedida por Deus: formar catequistas[30].

E ficou inacabado. Os que queriam uma obra de literatura espiritual ou um tratado de teologia pastoral não podem senão ficar decepcionados. Àquele que se sente chamado a seguir a mesma via que Antônio Chevrier, basta dizer: Toma e lê. Se a obra, desde as primeiras páginas te parece inacabada, é providencial. Ao lê-la, não poderás esquecer que Deus pediu ao autor para dar a última demão à sua obra, não acabando um livro, mas unindo-se a Jesus Cristo abandonado na cruz.

Retrato do Padre Chevrier

Importa, agora, tentar fazer um retrato do Padre Chevrier. É necessário para poder compreender este livro ao lê-lo.

É necessário, mas muito difícil de fazer.

Não podemos nunca definir perfeitamente um homem, qualquer que seja ele e ficamos sempre muito longe de exprimir o mistério profundo do seu ser. Todavia, ao viver com alguém adquire-se, por familiaridade, uma certa percepção do seu mistério e pode-se convidar outros a entrar, também eles, nesta familiaridade.

Só um conhecimento deste gênero permite interpretar corretamente o pensamento de um autor através de um livro. Não pretendo que baste ter lido estas páginas de introdução para ler corretamente o Padre Chevrier, apenas quero indicar a via para lá chegar.

Para se familiarizar com Antônio Chevrier, é preciso tempo. O que é verdade para toda a gente. É particularmente verdade para o Padre Chevrier. Personalidade vigorosa, como veremos, mas escondida sob uma aparência apagada, pôde mesmo dizer-se insignificante[31], leva tempo a revelar-se. Não é brilhante e tem horror ao que não é senão brilhante. Prefere o verdadeiro, o sólido, o grande, mesmo se aparentemente não o são e observou que a ostentação é, muitas vezes, uma tentativa para dissimular aos outros e a si mesmo uma indigência no domínio do essencial. “Pobres, simples e limpos, nada do que chama a atenção, do que é vistoso, elegante, que excita a curiosidade; importa que tudo seja grave, modesto, sólido. O belo e o grande podem ser muito simples: assim, um cálice em ouro pode ser muito simples e, ao mesmo tempo, belo e grande[32].

O Padre Chevrier escrevia isso a propósito dos objetos do culto. Sem pensar nisso, traçou o seu próprio retrato. Poder-se-á ver nisso o caráter lyonês de Antônio Chevrier e uma marca de descendência delfinesca? Teria transposto para o plano espiritual uma tendência bem conhecida a reduzir os sinais exteriores da sua riqueza para melhor a preservar? É possível.

Antônio Chevrier é certamente lyonês, muito lyonês; porém, em que o é exatamente? Este tipo de coisas são vivamente sentidas, mas sempre difíceis de precisar.

Os que não são lyoneses parecem reconhecer, com segurança, as lionesices de Antônio Chevrier. Os seus amigos lyoneses são mais circunspectos.

Por exemplo, a pobreza lyonesa do Padre Chevrier. No entanto, as suas concepções econômicas estão nos antípodas das dos seus concidadãos, não quer ter lucros e não tem a religião do trabalho. Quer que, no seu quarto, tudo fale da pobreza de Belém, enquanto que os seus concidadãos preferiam, em casas sem ostentação exterior, encontrar um interior confortável e estético. Não quer lançar-se na construção de igrejas grandes e ricas, enquanto que os seus colegas, com os seus paroquianos, não hesitavam em fazer demonstração de riqueza para manifestar a sua piedade.

No entanto, é verdade que a vida do Padre Chevrier leva a marca do mundo onde nasceu e em que se formou.

É filho único de pessoas simples, laboriosas, desejosas de subir na escala social. Um meio-ambiente levado a pôr-se do lado da autoridade que impõe uma ordem favorável às suas ambições de preferência a solidarizar-se com os revolucionários, sendo, porém, um meio popular; e Antônio Chevrier conservará durante toda a sua vida um fundo de mentalidade popular.

Ora, aos catorze anos, entra no ambiente clerical.

Na época, mais ainda do que nos nossos dias, este ambiente quer formar os futuros padres, não somente na vida espiritual, na cultura humanista greco-latina, na ciência teológica, na prática do ministério, mas também num estilo de relações humanas chamadas “conveniências eclesiásticas”.

Antônio Chevrier simplesmente aceitou o ideal sacerdotal que se lhe apresentou e nunca o renegou. É algo que importa não esquecer. O Padre Chevrier recebeu muito de todos os que contribuíram para a sua formação e foi possível destacar a influência sem dúvida decisiva do Superior do Seminário Maior sobre o seu futuro[33].

Ao mesmo tempo, deixou-se instruir docilmente no tocante às conveniências eclesiásticas e, ao sair do seminário, sabe falar da missa dizendo “o augusto sacrifício”[34].

A sua paixão pelo Evangelho e o seu amor aos pobres farão estalar a capa de verniz e o Padre Chevrier voltará ao seu sentido popular original. Isso vê-se na sua linguagem.

Após 1856, quando voltou a encontrar-se em contato diário com o povo, o seu estilo evolui rapidamente e as suas cartas têm, daqui por diante, uma simplicidade que contrasta com as do período precedente.

“Envio, por Monsieur Broche que tem a bondade de se encarregar disso, um frasco de xarope de lombo de vitela e pasta de malvaísco para o bom amigo Delorme. Cuidai dele e nada deixeis de fazer para o curar. Comprai na casa das irmãs o que for necessário. Se fosse possível fazê-lo comer cada manhã dois ovos frescos e um pouco de vinho, isso poderia fazer-lhe bem ao seu peito frágil.

A respeito disso falai ao Senhor Diretor a quem eu já dei uma palavrinha.

As nossas festas passaram-se muito felizmente.

Rezamos sempre por vós. Sede sempre muito ajuizados.

Em breve seguirá uma carta mais longa. É tarde da noite. Cumprimentos”[35].

Como Antônio Chevrier está à vontade com esta terapêutica popular das pessoas simples da Guillotière!

No entanto, o verniz das conveniências eclesiásticas resiste e, mesmo submetido a rude provação, fica sempre qualquer coisa dele. O Padre Chevrier não hesita em tratar como “Caro e venerado colega” os seus correspondentes sacerdotes e quando estigmatiza as sapatilhas como sinal de aburguesamento, escreve sem pensar em ridicularizar que “este calçado respira delicadeza”[36].

Não há que espantar-se demasiado também por encontrar nele traços de ênfase romântica que estava no espírito do tempo. Este espírito tinha a sua parte de influência na linguagem eclesiástica.

Não há, pois, que se deixar assustar por expressões que se reduzem às suas verdadeiras dimensões colocando-as no contexto romântico da época.

O Padre Chevrier fala do corpo como de um lamaçal, um pântano infecto, ou do alimento necessário ao corpo como colocando-nos ao nível dos animais. Em vez de ver nestas expressões uma influência persistente do jansenismo[37], basta fazer a transposição para reconhecer simplesmente que não temos sempre facilmente o domínio do nosso corpo e que, por outro lado, as funções nutritivas são em nós absolutamente análogas às dos animais.

O valor do conjunto está demasiadamente bem fundamentado para ser posto em causa por estes detalhes.

Que o Evangelho tenha devolvido Antônio Chevrier à sua origem popular é certo. Mas o mais notável não está aí. Importa, antes, admirar como o Evangelho lhe permitiu mostrar tudo do que era capaz. As sementes de grandeza depostas em todo o filho do povo, germinaram, desenvolveram-se em Antônio Chevrier, sob o efeito do Evangelho. Nem servil, nem agressivo em relação aos outros meios sociais, sem deixar de ser ele próprio, podia inspirar respeito às que se julgavam grandes senhoras.

Camille de Marguerye havia notado bem que ele não manifestava nenhuma atenção especial em relação aos ricos, mesmo sendo muito cortês com eles, como aliás, com toda a gente[38]. Parece-me que o seu sentido da dignidade é um aspécto muito característico do que eu queria dar a entender aqui. Tem a dignidade de um homem do povo que não tem nenhum complexo de inferioridade em relação a outras classes sociais, que não se deixa deslumbrar nem pela fortuna, nem pelo poder, nem mesmo pela instrução que os outros possam deter: “Razão por razão, gosto tanto da minha como da vossa”[39].

Nota-se isso, particularmente na independência de juízo no Padre Chevrier: não se deixa encerrar numa única maneira de pensar.

E este sentido popular da dignidade humana foi avivado pela consciência que ele tinha da grandeza da missão sacerdotal. A sua independência de juízo é ditada pela sua fidelidade evangélica e percebeu bem que para ser verdadeiramente padre, não devia submeter a sua missão senão a Cristo, aos enviados de Cristo e a mais ninguém.

Este desenvolvimento humano sob a influência do Evangelho nota-se ainda na sua maneira de escrever. Mais do que uma vez, sob o impulso da convicção e impregnado pelos textos do Evangelho e de São Paulo, exprime-se com uma verdadeira eloquência que leva a marca da sua profunda personalidade. Esperamos que a disposição tipográfica adotada para esta edição do Verdadeiro Discípulo permitirá perceber mais facilmente as passagens em que aparece

o estilo próprio do Padre Chevrier. Aqui vai um exemplo tirado das suas cartas, particularmente impressionante.

“Coragem, pois, queridos filhos, não vos aborreçais com pequenas contrariedades que possam sobrevir, há que habituar-se a elas. São os sofrimentos e as humilhações que formam homens verdadeiros; um homem que não sofreu nada, que não aguentou nada não sabe nada e não serve para nada. Os que são sempre adulados, acariciados e apreciados não são mais que uns queixosos”[40].

Uma frase bastante chã com os “queridos filhos” e as “pequenas contrariedades”. Depois o tom sobe com a referência aos “homens verdadeiros”. E, a seguir, vem a frase lapidar em relação à qual nada há a retocar: “Um homem que não sofreu nada e não aguentou nada não sabe nada e não serve para nada”. Depois disto, quem ousaria gemer e lamentar-se ou quem ousaria contradizer? Colocar-se-ia a si próprio entre os que não servem para nada. E, para nossa alegria, o Padre Chevrier volta à sua linguagem popular de lyonês com os “queixosos”. Em contraste com o homem verdadeiro, vê-se o pobre tipo frouxo como um farrapo.

O Padre Chevrier não escreve sempre com o seu estilo pessoal, faz como a maior parte de nós. Contudo, era necessário trazer à luz este estilo porque é nestes momentos de eloquência pessoal que a boca revela o tesouro escondido no fundo do coração[41].

Dois aspéctos do caráter do Padre Chevrier sobressaem mais através dos seus escritos, em particular das suas cartas e de conhecimento útil para o ler: um fundo de temperamento apaixonado e uma inteligência realista.

Tem um fundo de temperamento apaixonado. Não penso que se possa imaginá-lo como um homem veemente, autoritário, obstinado em conseguir os seus fins. Não é um homem levado por uma paixão sentimental. É naturalmente bastante manso e discreto e é um realista que não gosta do sentimentalismo. Todavia, não deixa de ser profundamente apaixonado. Este caráter apaixonado traduz-se por meio de expressões absolutas que ele emprega muitíssimas vezes para nos dar a sua experiência espiritual. Como todos aqueles cuja vida está unificada por uma paixão, recorre ao tudo e nada para se exprimir, como São João da Cruz[42].

Seja como for, pode-se dizer que uma meditação assídua do Evangelho e de São Paulo proporcionaram ao Padre Chevrier meios de expressão bem adaptados ao seu temperamento.

Tem uma inteligência realista. Isso não significa um homem terra-à-terra, mas

um espírito penetrante que sabe refletir sobre o que viveu. Como bem o mostrou J. – F. Six é, em outros termos, um experimental[43].

Parece que tenha pouca imaginação, o que explica que a sua expressão não seja brilhante. Isso explica também que ele não saiba encontrar títulos atraentes. O seu estilo está nos antípodas do dos jornalistas. Estes, querendo atrair a atenção do público, arriscam consegui-lo em detrimento da verdade e do respeito pelos leitores. Os títulos dos jornais são muitas vezes enganadores. O Padre Chevrier chega, também ele, a colocar títulos enganadores, mas pelo excesso oposto. Sob uma aparência irrelevante escondem-se riquezas. Ele anuncia, por exemplo: Renúncia ao próprio espírito, e trata realmente disso, mas também se trata de nos dizer como o Espírito sopra onde quer, e leva os santos a fazer coisas admiráveis e fá-los tirar todas as suas inspirações e os seus pensamentos do amor infinito de Deus[44].

Pode-se ainda notar a este respeito que ele emprega raramente comparações imaginadas, inventadas. Encontra-se, por exemplo, no Verdadeiro Discípulo, a comparação da árvore artificial. Se bem que o Padre Chevrier consiga fazer-se entender nesta passagem, do ponto de vista literário não é do melhor[45].

Ao contrário, sabe muito bem explorar tudo o que observou e chega, utilizando a sua experiência, a exprimir de maneira breve e impressionante o que quer dizer. Por exemplo, se observamos a eloquência com que um operário que gosta do seu trabalho sabe falar dele, compreendemos o alcance desta simples nota: “Que os mistérios de Nosso Senhor vos sejam tão familiares que possais falar deles como de uma coisa que vos é própria, familiar, como as pessoas sabem falar da sua saúde, da sua vestimenta, dos seus assuntos”[46].

Este dom natural, transformado pela graça, se exerceu especialmente na inteligência da obra de Deus, inteligência que se fez mais penetrante à medida que se alargava e se enriquecia a sua experiência espiritual[47] e apostólica.

Esta característica pessoal do Padre Chevrier ajuda-nos a compreender várias coisas.

Em primeiro lugar, a sua lentidão em tomar uma decisão, depois a sua firmeza para manter as decisões adquiridas, finalmente, a força perseverante para cumprir. Lentidão para se decidir é talvez onde se vê a mais clara lacuna do seu temperamento. Ele pesa longamente os prós e os contras e parece não ousar lançar-se.

Esta prudência é, talvez, o traço de uma ascendência rural do “Dauphiné” (região onde vivia a família materna do Padre Chevrier). Sem dúvida alguma manifesta também um desejo de não fazer senão o que Deus quer. Mas, contrariamente a outros que, tanto como ele, foram também homens de Deus, ele não é o homem que imagina o futuro e que, levado pela sua visão interior, tente realizá-la. Tem necessidade de apoiar-se, digamo-lo de novo, sobre a experiência, sobre o real. Por isso, tem necessidade de sinais, quando se trata de realidades que não podem ser percebidas diretamente.

Todavia, as decisões tomadas assim, fundadas sobre uma experiência humana e espiritual, não são postas em questão pelas dificuldades quotidianas; estas não se situam no mesmo plano e não podem contradizer as certezas adquiridas.

Assim, pois, o Padre Chevrier fica muito tempo perplexo, sobretudo se se trata de um assunto em que é preciso ir às apalpadelas. Mas não é um hesitante e, sem ser teimoso, executa com perseverança o que experimentou como sendo a vontade de Deus. Reveladoras da sua personalidade são estas linhas escritas a propósito de Paul du Bourg, companheiro de Camilo Rambaud: “Ele não conta bastante com a Providência de Deus que vos conduziu sempre, não ousa, não acredita bastante, não tem esta fé na Obra que faz a força de um homem que começa, empreende e prossegue com vigor”[48].

Veremos um pouco mais adiante a procura laboriosa do Padre Chevrier para adotar um plano de composição do seu livro. Pode-se dizer que a sua falta de imaginação e o seu desejo espontâneo de seguir a experiência não lhe facilitava a tarefa. É o absolutamente contrário de um romancista.

Esta inteligência realista explica também a sua maneira de amar a verdade. Não é um especulativo e, se ama a verdade, é como homem de ação. O que pode haver de um pouco temeroso no seu caráter é compensado pelo sentido realista que tem da verdade. A verdade é para ele algo a fazer porque se lhe saboreou a força. Ele o faz pacientemente, como um trabalhador laborioso.

Este sentido de verdade como algo a fazer está bem marcado no Padre Chevrier, pelo uso que faz da palavra verdadeiro do qual se serve muito mais vezes do que do vocábulo verídico. Reconhece-se o verdadeiro por uma certa eficácia que vem do amor: o verdadeiro discípulo segue o seu Mestre, os homens verdadeiros não são pessoas que não servem para nada[49], a família espiritual é verdadeira quando presta os serviços de que os seus membros têm necessidade[50], o verdadeiro pobre vive realmente a pobreza, etc…

Mesmo se tal corresponde a disposições naturais, vê-se também como isso é inspirado pelo Evangelho de São João, onde está muito presente a questão da verdade.

O realismo do Padre Chevrier o conduz a uma espécie de humanismo evangélico. O seu sentido da pobreza, por exemplo, permite-lhe compreender que uma única realidade se impõe a nós neste mundo que é o homem. Está absolutamente na linha do Evangelho: a vida, o corpo, isto é, o homem, são mais que o alimento e do que o vestido[51]. Inclusive na linha de São Paulo[52].

Para ele, o que conta é o Homem-Deus e a transformação do homem à imagem do Homem-Deus, é o emprego dos meios que Deus quis adotar para isso e, acima de tudo, é encontrar os homens que Deus quer enviar para esta obra de restauração do homem.

Ele está atento no homem ao que é mais humano. Por isso, tem espontaneamente o sentido da grandeza incomparável de todos, particularmente dos pequenos que se é tentado a desprezar. O que faz um homem famoso é bem pouca coisa em comparação com o que faz o valor de toda a pessoa humana. E, de novo, esta é uma maneira de prestar homenagem ao homem totalmente evangélico[53].

O Padre Chevrier, um experimental? Não é exagerado dizer que por trás de cada indicação, orientação, comentário dados pelo Padre Chevrier há uma experiência. Ele dá-nos a reflexão suscitada pela sua própria vida. É esta vida, esta experiência que importa agarrar subjacente às frases do seu livro:

“ O conhecimento de Jesus Cristo produz necessariamente o amor!”[54].

“Sobretudo as mulheres devotas convidam muito os padres a vir vê-las, em especial as que não têm nada que fazer”[55].

“Infelizmente, há pessoas que pensam que, porque fazem uma obra, têm este ou aquele cargo, toda a gente deve ajudá-las, recebê-las bem, dar-lhes”[56].

Por vezes, o Padre Chevrier dá-nos simplesmente as observações que fez, contudo, frequentemente, estas observações provocam reflexões um pouco irónicas, uma espécie de tendência para a sátira social de que se encontrará muitos exemplos no Verdadeiro Discípulo. Outras vezes, trata-se de uma intuição psicológica penetrante e lúcida. Finalmente, trata-se da sua experiência espiritual pessoal e da sua experiência apostólica, principalmente da experiência de colaboração apostólica.

Esta abertura do Padre Chevrier à experiência era ainda facilitada pela sua abertura aos outros. Não era sentimental mas era certamente muito sensível. Esta sensibilidade fazia comungar com as alegrias e os sofrimentos dos outros. Encontrar-se-á esta sensibilidade através da importância que ele dá à mansidão e à compaixão no homem apostólico[57], na importância dada ao espírito de família, ao carinho na família espiritual[58].

Para terminar este retrato do Padre Chevrier, importa dizer que era uma personalidade profundamente unificada e pacificada na fé em Cristo. Esta fé era verdadeiramente para ele a prova das realidades que se não vêem[59] e estas realidades eram para ele as mais fundamentais, as mais atraentes. Quando fala delas, gosta de servir-se do adjetivo belo.

Como é belo Jesus Cristo! Quanto é bela a fé! As palavras de Cristo, que belas palavras! O padre pobre, como é belo este homem! Tais expressões eram frequentes na boca e na pena do Padre Chevrier. Assim o atesta o Padre Duret, seu primeiro sucessor ao relatar as suas palavras:

“… Oh meus filhos, Jesus Cristo, o Verbo feito carne, é a carta viva que Deus enviou ao mundo e o mundo ignora-o. Oh! importa lê-la de joelhos, com um grande respeito. Tendes de estudar Jesus Cristo e amá-lo, unir-vos a Ele e segui-lo”. E o Padre Duret continua:

Ele queria que se insistisse muito, no catecismo, sobre a divindade de Jesus Cristo. Exortava-nos a isso, muitas vezes: “É a base da vida cristã, acrescentava ele, não se conhece suficientemente Nosso-Senhor, não se crê ou não se acredita senão muito superficialmente, muito vagamente na sua divindade. É absolutamente necessário levar o mundo a crer em Jesus Cristo-Deus; é a verdade fundamental que importa colocar na alma das nossas crianças. Jesus Cristo é o nosso Mestre, Jesus Cristo é o nosso Modelo, Jesus Cristo é o nosso caminho, a nossa vida”. Estas palavras estavam constantemente nos seus lábios. O estudo de Jesus Cristo fascinava a sua alma e quando nos falava de Nosso Senhor, eu ouvia-o mais do que uma vez exclamar

com entusiasmo e com a intensidade de uma forte convicção: “Como é belo Jesus Cristo, meus filhos! Como é belo!”[60].

Como se pode constatar, este retrato do Padre Chevrier não teve a pretensão de delimitar o que seria da natureza e o que seria da graça. Uma tal empresa seria, aliás, por muitas razões, contestável.

Talvez se possa pensar que o retrato é demasiado adulador. Não tinha nenhum defeito? Certamente tinha deficiências. Destaquei a sua pouca imaginação, a sua lentidão em decidir-se. Notei também como se ressentia dos limites do seu meio e da sua época. Que tenha tido que lutar também, como cada um de nós, contra o orgulho e o egoísmo, é indubitável.

Contudo, é difícil fazer uma ideia exata das limitações dos homens marcantes. Por um lado, os que dão testemunho deles, sobretudo se está em jogo uma reputação de santidade, são levados espontaneamente, não a embelezar, mas a dizer coisas convencionais. Basta escutar os discursos de elogios fúnebres ou outros, em todos os ambientes, religiosos, racionalistas, acadêmicos! Portanto, é muito difícil ter dados fiáveis.

Por outro lado, quando um tipo de homem é bem sucedido, não se pode reprovar-lhe ter limitações. Deseja-se apenas que muitos homens tenham também poucas deficiências.

É minha convicção que Antônio Chevrier se realizou muito bem na sua humanidade. Após ter sido desagradado por alguns aspéctos da sua pessoa, devo confessar sinceramente que quanto mais o conheci, mais me vinculei a ele e melhor compreendi qual valor humano desenvolvera nele a graça evangélica. Disse-se que era um homem ordinário. Diria, antes, que ele tinha tudo para permanecer um homem muito ordinário mas que a sua adesão a Cristo e a sua vontade de o seguir revelaram as verdadeiras virtualidades da sua natureza.

Ao contrário, homens mais brilhantes, aparentemente mais humanistas, entre os seus contemporâneos, não souberam libertar-se do seu tempo e construir uma obra durável para o futuro.

Este próprio destino é uma lição: o valor de um homem não se desenha senão sob o olhar de Deus[61].

Elaboração do Verdadeiro Discípulo

Após ter delineado a história no seio da qual nasceu o Verdadeiro Discípulo, poder-se-ia tentar uma história do próprio livro, a partir das diversas tentativas do Padre Chevrier[62].

Sabe-se, ao certo, que há que começar por um regulamento de vida escrito em Dezembro de 1857.

A continuidade de orientação entre o regulamento de 1857 e o texto no qual trabalha o Padre Chevrier, vinte anos mais tarde, em Roma, é impressionante. Não menos impressionante é constatar que os primeiros escritos abordam de imediato o tema da imitação de Jesus Cristo nosso modelo.

“Estudar Jesus Cristo na sua vida mortal, na sua vida eucarística, será todo o meu estudo.

Imitar Jesus será todo o meu desejo, o único fim de todos os meus pensamentos, o fim de todas as minhas ações.

Quero assemelhar-me a vós, ó meu Divino Salvador, que modelo mais seguro poderia eu tomar. Fazei que eu seja de tal modo semelhante, conforme a vós, que não faça senão um só convosco, que eu seja verdadeiramente e dignamente vosso representante na terra, não só quanto aos poderes mas também quanto às virtudes.

Tomo-vos por meu mestre e meu modelo, serei vosso discípulo e vossa imagem, iluminai-me e fortalecei-me.

O padre é a mais perfeita imagem de Jesus na terra, é o sacerdote do Deus do presépio, do Deus que se humilha até tomar o que há de mais débil, de mais abjecto e se confundir entre as suas criaturas degradadas pelo pecado. Ele é o sacerdote do Deus do presépio, do Deus da cruz, do Deus que entregou o seu sangue pelos seus algozes, que foi paciente nos sofrimentos e nos desprezos.

O padre está feito para fazer reviver todas as virtudes, os exemplos de Jesus Cristo, deve ser a mais perfeita imagem de Jesus Cristo na terra”[63].

“Imitar Jesus, eis a minha única finalidade, o fim de todos os meus pensamentos e ações, o objeto de todos os meus votos e desejos. Sem isso, não serei nunca um bom padre e nunca trabalharei eficazmente na salvação das almas. Estudar Jesus Cristo, eis o meu estudo.

Imitar Jesus, ó meu Deus, quanto sentido encerra esta palavra!”[64].

Em seguida, a insistência incide sobre seguir Jesus Cristo: uma imitação que é o fruto do conhecimento e da união. O Padre Chevrier tornou-se mais conscientemente místico no apostolado e é esta via que ele quer ensinar.

Em que ordem colocar os diversos ensaios? Não é o nosso objetivo. Procuramos, de preferência, designar o texto mais elaborado. Porém, através do conjunto, desenha-se bastante bem a maneira que o Padre Chevrier tem de desenvolver o seu pensamento.

Ele parte sempre da sua intuição essencial que explicita cada vez mais, retomando sem cessar o trabalho.

A maneira de proceder do Padre Chevrier para compor é semelhante, aliás, à que ele emprega para instruir. Quer se trate de pregação aos fiéis, de

catecismo às crianças ou de formação sacerdotal, emprega o que se poderia chamar um método global.

Para justificar este método, o Padre Chevrier pode colocar-se a diversos níveis.

Quando se trata de catecismo, pensando nas crianças quase sempre incultas para as quais era feito o Prado, ele escreve: “É preciso ir sempre do grosso para o fino. Prefere-se sempre ir ao fino. É preciso ater-se ao grosso e não ir ao fino senão na medida em que as pessoas são capazes disso”[65].

Porém, fazendo isto, não se trata apenas de adaptar-se às aptidões intelectuais deficientes de um auditório. Trata-se de encontrar uma lei fundamental do conhecimento religioso (e de todo o conhecimento poderemos nós acrescentar). A fé é, por essência, um conhecimento sintético, global, porque é adesão a alguém. Antes de responder à questão que devemos nós pregar? O Padre Chevrier respondeu a esta: Quem devemos nós pregar?

Ele procede segundo o mesmo princípio com os seminaristas. Compôs vários cadernos para uso dos jovens da escola clerical e estes cadernos muito naturalmente serviram de prelúdio ao que ele queria fazer para os mais velhos, aqueles a quem fez fazer profissão no momento em que iam entrar em filosofia, no Seminário Maior diocesano.

Através dos numerosos escritos do Padre Chevrier, pareceu-nos poder reencontrar o encaminhamento seguinte no desenvolvimento do seu pensamento.

A intuição essencial exprime-se primeiramente sob esta forma: Conhecer Jesus Cristo, é tudo.

Depois, é a palavra conhecer que se desenvolve: conhecer, amar e imitar ou seguir. Conhecer e seguir entrarão, aliás, em concorrência para exprimir numa só palavra todo o conteúdo, conforme o que se encontra na Escritura, por exemplo, em São João.

“A vida eterna é que eles te conheçam, tu o Verdadeiro Deus e o teu enviado, Jesus Cristo”[66].

Quem me segue, não andará nas trevas mas terá a luz da vida”[67].

Em seguida, é o nome de Jesus Cristo o que evoca, não somente a sua pessoa, mas também a sua vida e se desenvolve no “Quadro de Saint-Fons”, o Presépio, o Calvário, o Tabernáculo[68]. Seguir Jesus Cristo, é, pois, tornar-se como ele pobre, crucificado, consumido. Cada um destes três aspéctos será explicitado em si mesmo.

Por fim, o tudo também será desenvolvido ipso fato ao longo do livro como consequência dos desenvolvimentos precedentes. Ficará a saber-se que ter o espírito de Deus é tudo, tudo para si mesmo, tudo para uma comunidade. Ter o necessário e saber

contentar-se com ele, é tudo. Amar a Deus e instruir os pobres, é tudo. E sob mil outras formas menos literais, reencontra-se este “tudo”, o preço inestimável de cada aspécto da vida, dado que se trata da conformidade com Cristo.

Para expor o seu pensamento, o Padre Chevrier, ia buscar voluntariamente a outros os seus esquemas. Estamos praticamente certos de que as três partes do quadro de Saint-Fons não são invenção sua. De resto, esta maneira de abordar o mistério da nossa conformidade a Cristo é mais que clássico e a reflexão espiritual tende para aí mais ou menos espontaneamente.

Com o caderno intitulado o Sacerdócio, o Padre Chevrier põe verdadeiramente em andamento um livro. Ele tentou seguir um plano que parece inspirado, em parte, pelo plano de um tratado de teologia, pois que os primeiros capítulos dão uma divisão abstrata do assunto: Objetivo, excelência… natureza desta união (a Jesus Cristo), sua necessidade, seus efeitos.

Finalmente, o Padre Chevrier adota um plano que encontrou no Evangelho. “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”[69].

O querer vir após ele é o fruto do conhecimento de Jesus Cristo, este conhecimento que produz necessariamente o amor e dá o impulso para responder ao apelo daquele que diz: “Vem”.

Esta resposta realiza-se ao renunciar a si mesmo, ao levar a sua cruz e ao seguir o Mestre.

À força de estudar os Evangelhos e São Paulo, o Padre Chevrier, tendo juntado materiais e recolhido observações, deve completar este plano. Outras palavras de Jesus a isso o convidam. À renúncia a si mesmo é preciso ajuntar a renúncia à família e ao mundo[70] e a renúncia aos bens da terra[71].

Para tratar cada parte, o Padre Chevrier segue métodos diversos. Recorre, por exemplo, a análises psicológicas, quando divide a renúncia a si mesmo segundo quatro partes: corpo, coração, espírito e vontade. Se nota que tira esta divisão de análises sociológicas.

Está sempre à procura de uma certa lógica e esta não é sempre fácil de descobrir nem para ele nem para os seus leitores. Acontece que se possa encontrar uma espécie de progressão espiritual desenhada através deste plano. Neste caso, aliás, pode-se verificar hesitações sobre a ordem a seguir que não é exatamente a mesma nos diversos manuscritos.

Acontece também que a ordem é simplesmente ditada pela sucessão das coisas no Evangelho. Por exemplo, na última parte do Verdadeiro Discípulo trata-se, em primeiro lugar de seguir Jesus Cristo no jejum. Com efeito, o Evangelho mostra-nos Jesus jejuando quarenta dias no deserto antes de inaugurar a sua pregação. Depois vem a oração que está associada ao jejum na Escritura.

Enfim, a ordem do desenvolvimento está ainda marcada pela experiência apostólica

do Padre Chevrier. É o caso, sem dúvida, dos últimos capítulos do livro, como se mostrará mais adiante[72].

Como quer que seja no detalhe da exatidão histórica do encaminhamento que acabamos de traçar, poder-se-á reter que nenhuma linha do Verdadeiro Discípulo tem sentido, senão à luz da intuição original: “Tudo se encerra no conhecimento de Jesus Cristo”[73].

Fora desta luz, não se pode chegar senão a falsas interpretações.

Do mesmo modo está fora de dúvida que o movimento que percorre o Verdadeiro Discípulo é também aquele que se encontra através do Quadro de Saint-Fons.

A primeira parte do Verdadeiros Discípulo está voltada para o mistério da Incarnação e para o que produz o conhecimento deste mistério, uma comunhão com Cristo, fonte de empobrecimento, de abaixamento. É o Presépio. Num mesmo movimento, aquele que soube tornar-se pobre está disponível para tomar a Cruz já presente na sua vida de pobreza. Então, está à altura, tornado bom pão, de trabalhar em perfeita união com o Pão vivo descido do Céu, seguindo-o por todo o lado e em tudo, para dar a vida ao mundo.

A que gênero de livro chega assim o Padre Chevrier?

Já notamos que ele escreve em contato constante com o seu público. O Texto é, por assim dizer, posto à prova à medida que é composto no diálogo com os utilizadores.

Em Roma, na Primavera de 1877, o Padre vive com os seus primeiros discípulos. É neste período que o Padre escreve a Joseph Jaricot: “Trabalho no meu Verdadeiro Discípulo. Explico-o todos os dias. Vamos começar a ver a prática; é aí que provavelmente haverá algumas dificuldades”[74].

As condições nas quais foi elaborado este livro são ainda as condições para as quais ele está feito atualmente. Importa aplicar sem hesitação a este caso o que, em outra parte, diz o Padre Chevrier a respeito do catecismo: “Não é o livro que instrui, é o padre”[75].

O livro do Padre Chevrier está perfeitamente no seu lugar quando está entre as mãos de um padre encarregado da formação sacerdotal que o comenta suscitando o diálogo com os seminaristas.

É um manual, se se quiser, no sentido em que está normalmente feito para ser posto nas mãos do aluno e, sobretudo, mantido à mão de um padre que quer estabelecer uma conversa com os seus alunos[76].

Tudo isto se apoia ainda na concepção da formação que tinha o Padre

Chevrier. Ele o explicou a esse respeito no próprio Verdadeiro Discípulo. O grande método é o de levar a pessoa consigo, para instruir, revisar, pôr em ação, como Jesus fez com os Doze[77].

Assim, pois, este manual de formação sacerdotal está feito para manter o responsável da formação ao nível do mistério escondido nesta tarefa. Cristo leva consigo, para os formar aqueles que chama a segui-lo. Mistério que se realiza através da pessoa dos que têm a missão de formar para a vida evangélica.

O Verdadeiro Discípulo é um livro de formação sacerdotal porque não se contenta com descrever um comportamento exterior do padre, mas está, sobretudo, atento ao espírito que produz este comportamento e à fonte onde se bebe este espírito. Ora, beber nesta fonte e familiarizar-se com este espírito, eis o essencial da formação sacerdotal. Isto explica-nos que um padre possa utilizar este livro até ao fim da sua carreira. Importa beber sempre o mesmo espírito na mesma fonte como dantes, para estar, como se diz hoje, em estado de formação permanente.

Manuel de formação sacerdotal e descrição de um tipo de padre, estes dois aspéctos do livro estão presentes até ao título dado à obra do Padre Chevrier, O padre segundo o Evangelho ou o Verdadeiro Discípulo de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Há que dar preponderância a um ou a outro? Alguns, por razões de fidelidade histórica, outros por razões de adaptação à mentalidade atual, pensam que importa optar pela primeira parte do título[78].

No Prado tem-se o hábito de dizer o Verdadeiro Discípulo. Por ocasião do processo de canonização, o uso já parece estabelecido e, por outro lado, é indiscutível que o Padre Chevrier empregava este título[79].

Uma razão de ordem prática vem a favor deste uso; a locução Verdadeiro Discípulo é mais rápida e mais cômoda de pronunciar do que a outra. O Padre Chevrier, sem dúvida, empregava mais vezes este título, possivelmente por esta razão.

No entanto, importa fazer uma outra sugestão, pois que, em minha opinião, o Padre Chevrier poderia ter razões de muito peso para preferir o segundo título.

Por um lado, está empenhado em caracterizar a atitude essencial do padre ou do futuro padre como sendo a do discípulo que adquire o conhecimento de Jesus Cristo. A abertura do livro é disso a prova clara[80].

Por outro lado, a expressão Verdadeiro Discípulo é empregada por Jesus de forma equivalente em São João e aplica-se aos apóstolos[81].

Finalmente, a família espiritual do Padre Chevrier não é constituída apenas por padres. Os irmãos e as Irmãs estiveram presentes por seu lado antes dos padres. É com todo o direito que eles podem considerar o Verdadeiro Discípulo como escrito também para eles. E, com todos estes, alguns leigos, também encontraram no Verdadeiro Discípulo uma ajuda que continua aquela que o Padre Chevrier pôde dar aos leigos que o rodeavam.

É, para além do mais, evidente que há padres que aceitam viver como verdadeiros discípulos de Jesus Cristo, serão, pelo próprio fato, padres segundo o Evangelho. Por conseguinte, cada qual é livre de preferir um ou outro título.

A que livros se referiu o Padre Chevrier ao escrever o Verdadeiro Discípulo?

Além de uma Bíblia latina, pode ter à sua disposição diversas traduções, mas é preciso lembrar que as edições da Bíblia não eram, na época, o que são hoje.

Para os Evangelhos servia-se muito do volume de Mastaï-Ferretti: Os Evangelhos unidos. Esta maneira de tecer os textos dos quatro Evangelhos uns entre os outros remonta à antiguidade e, por diversas ocasiões no decurso da história da Igreja, tentou-se valorizar assim o texto evangélico.

O Padre Chevrier servia-se assiduamente de Mastaï-Ferretti, porque, assim, tinha à mão o texto integral dos Evangelhos. Ele recomendava esta obra aos que o rodeavam.

Na hora atual, com o progresso dos estudo bíblicos, um tal método de trabalho não está mais em uso. Temos à nossa disposição sinopses dos quatro evangelhos.

O que importa reter do apreço do Padre Chevrier pela obra de Mastaï-Ferretti é o seu desejo de nada deixar de lado do texto evangélico.

Quando se trata do Antigo Testamento, o Padre Chevrier cita-o a maior parte das vezes em latim e faz o mesmo para o Novo Testamento, quando parece citar de memória. A maior parte do tempo trata-se de passagens que lhe são familiares graças ao uso que delas faz a liturgia no missal ou no breviário.

O Padre Chevrier tinha muito o desejo de se referir à Escritura na sua totalidade[82], porém, dá um lugar eminente ao Evangelho e pode-se dizer que a ele recorre sem cessar. No entanto, dá, ao mesmo tempo, um lugar importante a todo o Novo Testamento, particularmente, às epístolas de São Paulo.

Não nos admiremos de encontrar algumas interpretações desacertadas

ou mesmo inexatas dos textos escriturísticos. Por exemplo, página 195, a propósito de Romanos 6,13 “que vossos membros lhe sejam armas de justiça”, o Padre Chevrier comenta: “Armas de justiça para vos punir”. Esta aplicação à mortificação corporal restringe consideravelmente o alcance da palavra justiça para São Paulo.

Outro exemplo, página 149,a propósito da palavra de Jesus a Maria, nas bodas de Caná. Nesta tradução e neste comentário, o Padre Chevrier é simplesmente tributário de Mastaï-Ferretti no qual confia.

Na época, não há ainda curso especial de Sagrada Escritura nos seminários.

No entanto, feitas as contas, as faltas de acerto são raras, porque o Padre Chevrier não procura uma nova interpretação do Evangelho, mas as consequências práticas na sua vida, através da leitura assídua, a meditação, a oração. Assim, a impregnação evangélica conseguida assegura-lhe uma interpretação essencialmente correta.

Para além das referências escriturísticas, encontra-se, no Verdadeiro Discípulo, um certo número de outras referências, mas não podem dar indicações certas sobre as leituras do Padre Chevrier. São alguns adágios escolásticos ou destas máximas latinas de que, antigamente, gostavam os eclesiásticos. Uma delas é uma frase de Santo Agostinho, por sinal deformada[83].

Há algumas alusões a diversos personagens. Alusões ao Cura d’Ars, o que não deve admirar-nos, uma vez que o Padre Chevrier conheceu o santo cura. Referências a Santo Antônio ermitão, a São Bento, a São Francisco de Assis e outros, conhecidos sem dúvida através das Vidas dos Santos clássicas na sua época e das leituras do breviário. O Padre Chevrier recomenda a leitura da Vida dos Santos. Sabe-se que o Cura d’Ars tinha dado lugar importante a este trabalho.

Porém, em definitivo, tudo isso pesa muito pouco em relação à quantidade de citações escriturísticas. O Padre Chevrier estava muito consciente da situação. Ele via-lhe os inconvenientes, mas não tinha escolha. Para desempenhar a sua missão, não podia proceder senão desta maneira[84].

Praticamente, pelo menos no que se refere às partes do Verdadeiro Discípulo intituladas Segui-me, o Padre Chevrier parece ter empregado o método seguinte.

1º – Ele procura pessoalmente, no Evangelho e em São Paulo, as passagens referentes ao assunto estudado. Toma uma folha de papel quase sempre bastante larga, porque gosta das posições verticais. Vai anotando as passagens da Escritura com uma frase que resuma cada passagem e fazendo seguir de um número que reenvia seja aos Evangelhos Unidos de Mastaï-Ferretti, seja a uma tradução de São Paulo. Eis aqui, por exemplo, o início de um estudo deste gênero:

Segui-me nos meus sofrimentos.

Ele nasce num estábulo (27) (quer dizer Lc 2,7).

Os anjos dão aos pastores a sua pobreza como sinal mediante o qual o reconhecerão (28) (quer dizer Lc 2,12).

Etc…[85]

2º – Ele retoma esta lista e procura ordená-la logicamente, por exemplo, distinguindo as ações e os ensinamentos de Jesus Cristo. Entre os manuscritos, encontram-se esboços de planos e também folhas onde o Padre Chevrier anotou de novo as mesmas passagens; porém, desta vez, a ordem não é a mesma; segue o plano esboçado.

3º – Então, o Padre Chevrier faz intervir uma outra mão que não a sua. A um seminarista, ou a uma irmã ou a uma das suas penitentes confia a preparação de um caderno. Nas páginas do caderno (de formato escolar 17X23), faz traçar duas margens de 40 a 50 mm., uma à esquerda e outra à direita.

Na parte central, copia-se o texto integral das citações da Escritura indicadas pelo Padre Chevrier.

Na margem da esquerda, reproduzem-se as frases do Padre que resumem o texto correspondente e que, assim, formam uma sequência de subtítulos.

A margem da direita fica livre, destinada, em princípio, aos comentários do Padre Chevrier… que, por vezes, serão escritos à esquerda ou ao meio da página. Ao fazê-lo, modifica, por vezes, a redação dos subtítulos.

4º – Parece que normalmente, sempre se devia seguir um outro trabalho.

Ao agrupar todos os comentários da margem direita, o Padre Chevrier tem o esboço do texto destinado ao Verdadeiro Discípulo.

Mas, relativamente aos últimos capítulos, esta última fase do trabalho não foi senão esquematizada e, inclusive, em alguns casos, não foi sequer começada.

Por conseguinte, podemos considerar os textos dos últimos capítulos como estudos preparatórios, sobretudo, a partir do Segui-me na minha caridade[86].

Após exame minucioso dos manuscritos, parece-me que esta visão corresponde verdadeiramente à realidade; mas não esqueçamos que o Padre Chevrier não se fechava num único sistema. Quer se trate de compor um livro ou de governar a sua casa, obedecia sempre a dois imperativos: sentia vivamente a necessidade de uma certa organização para ser eficaz e recebia sempre as lições da experiência, modificando sem cessar a organização já posta em marcha.

A nossa edição

Uma vez que o Padre Chevrier recomeçou por várias vezes a redação do seu livro, foi necessário fazer uma opção entre o grande número de manuscritos que deixou. Uma parte muito considerável do trabalho foi adiantada pelo Padre Émile Desroche e pela Irmã Renée de Limairac.

Para uma boa parte, do princípio até ao fim da Renúncia a si mesmo, a escolha já estava feita, pois que um grosso caderno, formado por diversos fascículos atados, representa certamente o estado mais acabado do trabalho do Padre Chevrier. Uma grande parte do caderno permanece em branco. O Padre Chevrier tinha a intenção de reproduzir nestas páginas brancas os textos preparados em outros fascículos[87].

Felizmente, temos também o plano da sua obra; várias vezes modificado, este plano possivelmente teria sofrido ainda alterações numa redação definitiva, mas não se vê o que teria provocado modificações importantes. Nas introduções particulares às diversas partes, indicaremos as possíveis hesitações que se pode ter a este respeito.

Para as partes que não foram reproduzidas no manuscrito principal, tivemos de escolher. Mas, ainda aí, a opção não foi muito complicada, porque os textos mais elaborados apareceram muito facilmente.

Entretanto, ver-se-á que, nos últimos capítulos, a redação está longe de ser tão desenvolvida como na primeira parte. O Padre Chevrier não teve tempo de fazê-lo.

Assim, se não se presta atenção à estrutura geral da obra, pode-se chegar a uma interpretação inexata. De tal modo é assim que a parte que diz respeito às renúncias aparecerá desmesuradamente longa em relação à última parte intitulada Seguir Jesus Cristo, contrariamente à importância desta no pensamento do Padre Chevrier[88].

Ao lado do texto retido como texto fundamental, apresentamos textos paralelos. Não quisemos citar todos os paralelos. Por um lado, este luxo de erudição não teria tido interesse para os presumíveis leitores deste livro e, por outro lado, se alguém tivesse necessidade de fazer um trabalho científico recorrendo à comparação dos diversos manuscritos do Padre Chevrier, teria toda a facilidade em encontrar isso nos arquivos do Prado.

Os textos paralelos reproduzidos foram considerados interessantes porque se exprimem por vezes com mais facilidade do que o texto fundamental.

Apresentamos em Anexo textos do Padre Chevrier que não estavam imediatamente destinados ao Verdadeiro Discípulo. São úteis para bem entender o seu pensamento.

Quisemos que a disposição tipográfica permita seguir, tanto quanto possível, o pensamento do Padre Chevrier. De fato, quando se tem sob os nossos olhos

os manuscritos do Padre Chevrier, percebe-se que a disposição do texto tem uma grande importância.

Coisas reproduzidas na sequência umas das outras numa tipografia compacta não podem permitir captar a atitude meditativa com a qual o Padre Chevrier redigiu as mesmas palavras mas dispondo-as de maneira diferente, em colunas, por exemplo. Vê-se, então, que não se trata de uma enumeração para ler rapidamente, mas de uma sequência de pensamentos que importa meditar. Assim, respeitamos todos os parágrafos que são muito numerosos.

O texto do Padre Chevrier está impresso em caracteres rectos. Tudo o que acrescentamos está entre [ ]. Trata-se de um certo número de conjecturas necessárias para que o pensamento siga o seu curso, ali onde as palavras foram manifestamente esquecidas ou ficaram ilegíveis para nós. Pusemos a pontuação que está quase sempre omitida nos manuscritos.

Os paralelos são reproduzidos da mesma maneira, mas com caracteres menores.

No que se refere aos títulos, respeitamos os que estavam previstos no plano do Padre Chevrier e reproduzimo-los no seu lugar lógico, mesmo se o Padre Chevrier tinha, aqui ou ali, deixado de reproduzir no caderno, um título no lugar que lhe correspondia.

As citações latinas ficaram tais quais. A tradução está em nota. Quando não há tradução em nota, é porque o texto que acompanha a citação lhe dá uma tradução.

Procuramos fazer de tal modo que se tenha o texto exato do Padre Chevrier e que, assim, ele seja diretamente utilizável. Eis porque recorremos a todos estes procedimentos.

Conselhos para o estudo do Padre Chevrier e do Verdadeiro Discípulo

Todos os leitores compreenderão facilmente que esta última parte da introdução é destinada especialmente à família espiritual do Padre Chevrier, a fim de que este volume responda tanto quanto possível às intenções do Padre.

Vimos que este livro é um instrumento a colocar nas mãos de um apóstolo que tem a missão de formar outros apóstolos: Não é o livro que instrui, é o padre. Mas esta condição não pode estar sempre acabada, importa supri-la mediante um trabalho pessoal. Por outro lado, para os que estão encarregados da formação, algumas disposições práticas podem ser úteis.

O estudo de que se trata aqui não é um trabalho de investigação histórica, nem de teologia científica.

É necessário que tais trabalhos se façam, mas estão ao serviço de um outro trabalho indispensável a todo pradosiano: um estudo pessoal para se familiarizar com a pessoa e o pensamento do Padre Chevrier e viver da graça da qual ele viveu transmitida hoje aos seus herdeiros.

As indicações seguintes estão, pois, diretamente destinadas a um trabalho de assimilação espiritual. Não é raro que pessoas se apresentem no Prado sem ter um interesse particular pela pessoa do Padre Chevrier. Outros procuraram ler uma Vida do Padre ou uma parte dos seus escritos e experimentaram uma decepção: Nada atrativo.

Assim, o Padre pode aparecer a alguns quase inútil e, inclusive, para algumas pessoas, seria um obstáculo na medida em que se pretendesse referir a ele para a nossa vida de hoje.

A acreditar no próprio Padre Chevrier, estas dificuldades não são novas. Já em 1866, ele escrevia: “Escrevi ao Padre Merle e não sei o que é dele, não voltei a ver Lainé; estes frutos não estão ainda maduros. Creio que o Prado lhes provocou um pouco de medo. É que, na verdade, não se vê em quem se possa apoiar nesta pobre barraca, verdadeiramente não há quem a sustente senão Deus Nosso Senhor e Ele não se vê, só se vê um pobre miserável que assume tão mal o lugar de Deus, de tal modo que se é mais tentado a afastar-se do que a vir”[89].

Como se exprimem estas dificuldades? Vejo três maneiras principais:

  • 1º Em vez de falar-nos do Padre Chevrier, dir-se-á, falai-nos do Evangelho.
  • 2º Na Igreja, o Padre Chevrier é um homem entre muitos outros que são maiores. Ponde-o no seu justo lugar.
  • 3º Se quereis ser fiéis ao Padre Chevrier, procurai não o que ele disse e fez no seu tempo, mas o que deveis dizer e fazer hoje.

Retomemos cada um destes pontos.

  • 1º Falai-nos do Evangelho e não do Padre Chevrier.

Uma ilusão parece muito subjacente a esta dificuldade: existiria alguém que nos poderia dar o Evangelho puro e simples. Só Jesus podia fazê-lo e o fez. Ele confiou o Evangelho em depósito à Igreja; mas, na Igreja não há ninguém que possa, por si só penetrar o Evangelho na sua totalidade e em perfeita pureza, seja para si próprio seja para o apresentar aos outros.

O tesouro está à nossa disposição; podemos e devemos extrair dele; mas o tesouro ultrapassa infinitamente as nossas possibilidades de investigação e, enquanto não

estamos na plena luz do céu, não vemos nunca o Evangelho senão limitado pelo nosso próprio juízo e pelos daqueles que nos ensinam. Crendo ir ao Evangelho puro e simples, arrisco-me a colocar-me a reboque de um homem ou de me encerrar no meu próprio espírito.

Felizmente o Espírito Santo aí está para suscitar guias espirituais de que temos necessidade, escribas instruídos do Reino dos Céus semelhantes ao dono da casa que tira do seu tesouro coisas novas e velhas[90]. O Padre Chevrier é um desses, por isso a Igreja o reconheceu como fundador do Prado.

Daí podem tirar-se duas consequências:

Em primeiro lugar, quando tenho dificuldade em entrar numa expressão do Padre Chevrier, numa das suas recomendações, impõe-se ver se por acaso o Padre Chevrier não estaria a abrir-me a um sentimento mais profundo, mais largo do Evangelho.

Em seguida, se se tomou o Padre Chevrier verdadeiramente como guia espiritual, é necessário ter o cuidado de recorrer com ele ao Evangelho para discernir em que medida o que ele diz é inspirado pelo conhecimento de Jesus. É necessário que eu me una pessoalmente a Cristo como ele próprio o fez.

  • 2º Na Igreja, o Padre Chevrier não é senão um homem entre muitos outros.

Nada mais verdadeiro, mas, como para qualquer outro, o que interessa é saber o papel que Deus lhe atribuiu. Não há que recusar ao Espírito Santo o poder de suscitar fundadores, homens que recebem uma graça bastante grande para se tornarem guias espirituais da família que nasce deles.

Entretanto, é verdade que não se pode ter o espírito de Deus, o próprio Padre Chevrier o declara, se não se recorre à Igreja e aos santos. Portanto, colocar-se na escola do Padre Chevrier é recorrer largamente a tal autor espiritual importante que nos pareça convir particularmente. De resto, uma ampla cultura sobre este ponto é necessária para um padre. Pode acontecer que um outro mestre espiritual tenha-nos marcado mais, seja ele quem nos introduza no conhecimento do Padre Chevrier e um trabalho de comparação pode ser muito útil em tais casos.

Diga-se que não é de admirar se, num período de formação mais especial, se recorre principalmente ao Padre Chevrier: é questão de fidelidade ao Espírito de Deus, para aqueles que Deus chama a ir pela mesma via.

  • 3º Procuremos o que temos a fazer e a dizer hoje.

É bem evidente que é isso que há a fazer, mas há várias maneiras de se lançar a isso.

Pode-se ser levado a inventar tudo, sem querer inspirar-se em ninguém. Crer que se o consegue é uma ilusão porque, em todas as nossas iniciativas, inclusive as mais pessoais, permanecemos marcados pela mentalidade do nosso meio, pelo nosso passado, pelo nosso próprio temperamento.

Tudo isso nos marca, aliás, de modo providencial, mas convém, no entanto, dar-se conta disso e não resignar-se a ficar neste círculo estreito que, espontaneamente cremos bastante vasto porque aí nos sentimos à vontade.

Se, pelo contrário, temos a garantia de que um homem gozou de uma experiência espiritual e apostólica excepcional para ser o inspirador de toda uma linhagem de continuadores, há que convir que o poder do Espírito Santo se pode servir desta experiência privilegiada para fecundar a nossa vida hoje.

O homem em questão não desencadeia facilmente o entusiasmo? Não é preciso dizer, pois que, então, tanto melhor se lhe atribuirá mais facilmente o seu verdadeiro lugar.

E, no fim de contas, o que nos vai dizer este homem? Não: “No vosso lugar, eis o que eu faria”, mas: “Eis como podeis encontrar o que Jesus faria no vosso lugar” ou, melhor ainda, “o que Jesus quer fazer por vós e convosco, agora”.

Finalmente, este apelo a procurar o que devemos fazer hoje deve despertar-nos também para uma outra coisa muito importante: o recurso ao Padre Chevrier, para ser verdadeiro, deve acompanhar-se de um recurso à sua família tal como ela vive hoje, pois que, graças a Deus! não estamos sós e temos irmãos e irmãs que entenderam alguma coisa desta vida no seguimento de Jesus que nós desejamos.

Não temamos olhá-los, sem excluir voluntariamente um só deles. Todos nos ajudam a entender o Padre Chevrier e, sobretudo, a melhor conhecer Jesus Cristo, a trabalhar melhor na Igreja, com toda a Igreja, na obra de Deus, anunciando o Evangelho aos pobres.

Com a orientação doutrinal vinda do Concílio Vaticano II, retomamos o costume de dar mais importância aos carismas na Igreja e vemos melhor como as famílias espirituais existem para perpetuar, por tanto tempo quanto Deus lhes conceda, a missão especial e os dons particulares dados àquele que é reconhecido como fundador.

O termo fundador não nos leva a encarar as coisas sob este aspécto essencialmente espiritual. Tem uma ressonância acima de tudo jurídica, na linguagem atual e suspeita-se que aqueles que se querem fiéis ao fundador, de quererem perpetuar uma sociedade para si mesma. Importa conceber o fundador acima de tudo como um iniciador, um homem que recebeu um dom particular para o serviço do Povo de Deus, o que se chama um carisma, e este homem é uma testemunha privilegiada para aqueles a quem Deus dá uma graça semelhante. É em referência a ele que podem seguir a graça pessoal que está neles e é também em referência a ele que formam uma mesma família espiritual. “A verdadeira unidade está na união de um mesmo espírito, de um mesmo pensamento, de um mesmo amor e é Jesus Cristo que lhe é o centro, pelo Espírito Santo”[91].

Duas coisas são necessárias para acompanhar o estudo do Verdadeiro Discípulo; conhecer a vida do Padre Chevrier e ler as suas cartas.

Já citamos várias vezes o livro de J. F. Six: Un prêtre Antoine Chevrier.

É a obra mais recente que importa ler se não se quer contentar com uma curta biografia. Tem, entre outras coisas, o grande mérito de situar o Padre Chevrier na história do seu tempo.

As cartas do Padre Chevrier são interessantes, em especial porque mostram como ele aplicava no dia-a-dia as orientações desenhadas no Verdadeiro Discípulo. Foram reproduzidas sob duas formas. Um volume impresso reúne uma seleção de cartas. A seleção foi bem feita; infelizmente para tornar o texto mais apresentável, correções muito importantes foram, por vezes, introduzidas pelo editor[92].

Policopiou-se o texto integral de todas as cartas do Padre Chevrier chegadas até nós. Esta policópia está esgotada.

Para um trabalho progressivo é possível inspirar-se no plano que se segue:

  • a) Para um primeiro contato com o Verdadeiro Discípulo, em geral, é melhor começar por ler as passagens seguintes, pela ordem indicada:
  • Adesão a Jesus Cristo, pg. 109
  • Renúncia aos bens da terra, pg. 275
  • Renúncia ao seu espírito, pg. 205
  • Levar a sua cruz, pg. 325
  • Seguir Jesus Cristo, pg. 335
  • b) Pode-se trabalhar com muita utilidade procurando nas cartas do Padre Chevrier tudo o que se relaciona com os diversos capítulos do Verdadeiro Discípulo, por exemplo: o estudo de Jesus Cristo, a pobreza, a cruz, o catecismo, etc…
  • c) Para um trabalho continuado ao longo do livro, pode-se ler tudo seguido, ajudando-se de um dos temas fundamentais que, neste caso, serve de fio condutor. Eis aqui alguns exemplos:

1)   O amor:

  • O mistério da Incarnação, manifestação do amor de Deus no mundo;
  • O conhecimento de Jesus Cristo que produz necessariamente o amor;
  • As renúncias, expressão do amor que quer libertar-se de tudo o que não leva a Jesus Cristo;
  • A cruz, expressão do amor, sinal distintivo de Cristo e dos seus discípulos;
  • Seguir Cristo, uma vida de amor, tanto no plano pessoal como no cumprimento da missão.

2) A missão:

  • Cristo, Verbo Incarnado, o enviado de Deus;
  • O conhecimento de Jesus Cristo: abrir-se à totalidade da missão de Jesus Cristo a nosso respeito;
  • Adesão a Jesus Cristo: escutar o apelo à missão. Vem, segue-me;
  • As renúncias, especialmente a pobreza, liberdade do missionário;
  • A cruz e o seguir Jesus Cristo: Como o Pai me enviou também eu vos envio a vós. Uma só e mesma missão realizada no mesmo espírito, da mesma maneira.

3) O homem no desígnio de Deus:

  • Conhecimento de Jesus Cristo, enviado de Deus, porque Filho de Deus feito homem;
  • Adesão a Jesus Cristo: Deus chama outros homens por meio de seu Filho;
  • Renúncias: para a obra de Deus, basta que um homem seja enviado por Deus aos homens. Toda a missão, toda a força do enviado se apoiam no fato de ser enviado. Ser livre em relação a todo o resto;
  • A cruz: o apóstolo que foi provado é um homem que sabe sofrer, para tal tem a força e a inteligência, o saber como fazer;
  • Seguir Jesus Cristo: a ação do homem enviado de Deus em favor dos homens a salvar, uma ação sempre querida em proveito do homem e não por causa das obras.

4) A palavra:

Este tema é, sem dúvida, o mais essencial do Verdadeiro Discípulo.

  • Em Deus há a Palavra, o Verbo por quem tudo foi feito;
  • O Verbo fez-se carne, tirou tempo para nos falar, entrou e permanece em diálogo com os homens;
  • É necessário unir-se a este Mestre recebendo a sua palavra com a simplicidade do verdadeiro discípulo;
  • A palavra de Deus, o Evangelho de Jesus Cristo, produz em nós um efeito de purificação, de transformação, com a ação interior do Espírito Santo, a fim de que possamos pensar e agir segundo Deus;
  • A palavra do Senhor dá-nos força interior para levar a cruz com alegria;
  • É necessário seguir Jesus Cristo no anúncio do Evangelho, começando por onde começou, oração, jejum, apresentando-se aos homens com a sua mansidão, a sua humildade, a sua bondade;
  • Importa anunciar a Palavra com autoridade, fidelidade, simplicidade, a todos, sempre e por toda a parte;
  • É preciso ir até ao fim desta missão aceitando as consequências inelutáveis da pregação do Evangelho: os combates, as perseguições;

  • É necessário realizar a obra de Deus no sacrifício da própria vida como fez o próprio Jesus: é através do seu ministério que o enviado de Deus se encaminha para a Páscoa que o introduz na glória.
  • d) Para estudar um capítulo particular, uma passagem do Verdadeiro Discípulo, é necessário tentar reencontrar, em todas as partes, duas referências, a Sagrada Escritura e a experiência do Padre Chevrier, isto é, o que ele viu, escutou, viveu.

Por exemplo, tomemos simplesmente a página da abertura[93].

“Nosso Senhor fala muitas vezes, no Evangelho, dos seus discípulos”. Vamos ver no Evangelho anotando, se possível, todas as passagens onde a palavra discípulo é empregada e as características que a acompanham. Depressa teremos ante os nossos olhos um quadro eloquente.

“O nosso primeiro trabalho é, pois, conhecer Jesus Cristo para, em seguida, ser todo dele”. Donde tira o Padre Chevrier esta certeza? A sua experiência pessoal e a sua vida apostólica mostraram-lhe que os frutos que permanecem brotam do conhecimento de Jesus Cristo. Por uma outra via não se obtém nada ou apenas resultados efêmeros.

Em certas passagens, é o recurso à Escritura que aflora imediatamente. Ao contrário, em outras, é o recurso à experiência. Mas vale a pena procurar sem cessar um e outro. Graças a esta procura, encontrar-se-á mais facilmente as transposições a fazer ou se poderá mais facilmente ultrapassar as coisas que apresentam dificuldades.

Para terminar, importa acrescentar, que é absolutamente inútil ler este livro como se lê um romance. Se não se o recebe como uma meditação, não revelará o seu segredo.

Abertura[a]

Nosso Senhor Jesus Cristo fala muitas vezes, no Evangelho, dos seus discípulos. Escolheu discípulos, fala aos seus discípulos, os instrui à parte, dá-lhes leis particulares.

Numa palavra, é uma escolha especial de homens que são dele e que vão com ele.

O que é um discípulo em geral?

Um discípulo em geral é um homem que tomou outro por seu mestre, que o segue, escuta a sua palavra, dá-lhe a sua confiança, admite a sua doutrina e a põe em prática.

O que é um discípulo de Jesus Cristo?

Um discípulo de Jesus Cristo será, portanto, um homem que toma Jesus Cristo como seu Mestre; que o segue, lhe dá toda a sua confiança, escuta a sua doutrina e a põe em prática e não tem outro desejo senão servi-lo, amá-lo e fazer tudo o que ele lhe ensinou[94].


O que é necessário fazer para se tornar um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo?

Para se tornar um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo é necessário, primeiro, conhecê-lo, saber quem é ele. O conhecimento que temos dele nos ajudará a entregar-nos a ele e quanto mais nós o conhecermos, mais nos uniremos a ele, mais amaremos a sua doutrina, mais desejosos seremos de o seguir e de praticar o que nos ensinar.

O nosso primeiro trabalho é, pois, o de conhecer Jesus Cristo para, em seguida, ser totalmente dele.

PRIMEIRA PARTE

O CONHECIMENTO
DE JESUS CRISTO

I – A TRINDADE

Desde as primeiras palavras, o Padre Chevrier surpreende-nos ao abordar logo à primeira o mistério da Santa Trindade.

Fá-lo recorrendo à teologia clássica no Ocidente, a que, na sequência de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, reconheceu, no exercício das nossas faculdades intelectuais, uma semelhança com a vida íntima de Deus. É a própria Escritura que vai neste sentido ao designar Jesus Cristo como o Verbo, a Palavra.

O Padre Chevrier não se mostra muito hábil para apresentar esta teologia. É possível talvez que o seu professor tivesse procedido com uma semelhante inabilidade nas aulas de teologia do seminário.

Mas o mais importante não está aí. Importa sublinhar a expressão em Deus, que surge muitas vezes e a frase final: Agora podemos dizer o que é Jesus Cristo. O Padre Chevrier notou muito bem que o conhecimento de Jesus Cristo, enviado do Pai, é inseparável do conhecimento do único Deus verdadeiro[b]


Noções preliminares sobre a existência das três pessoas divinas

É necessário saber que, em Deus como em nós próprios, pois que fomos criados à imagem de Deus, há o ser, o pensamento, o amor; que estas três coisas são absolutamente necessárias para constituir um ser inteligente e completo.

Como em Deus tudo existe em estado perfeito, porque, se algo imperfeito existisse em Deus, já não seria infinito, nem perfeito, o pensamento que vem de Deus, que sai de Deus como princípio é perfeito como o próprio Deus e forma uma pessoa distinta do princípio que a gerou.

Como, em mim, sinto que o meu pensamento é meu, que sai de mim mesmo, que vem de mim, que é alguma coisa de mim e que, no entanto, é distinto do ser que o produziu em mim e distinto também do amor que o segue.

Em Deus, este pensamento que se chama Verbo e Verbo interior enquanto não é produzido fora e que é algo de Deus, que emana de Deus, que é o próprio Deus pensando, forma uma pessoa divina em estado perfeito, que é a segunda pessoa em Deus, que gera o seu pensamento ou o seu Verbo divino.

Esta segunda pessoa em Deus é o seu pensamento eterno e divino, é a expressão interior do seu pensamento eterno e imutável e é tão antigo como o próprio Deus, porque Deus pensa deste toda a eternidade e não pode existir sem o seu pensamento que é tão essencial a Deus como o próprio Deus.

Existe, pois, em Deus, Deus e o seu Verbo, que não é outra coisa senão o seu próprio pensamento em estado de pessoa.

Este pensamento ou pessoa não pode existir sem relações íntimas com o princípio que o produziu.

Deus vê o seu pensamento gerado por ele próprio, vindo dele, saindo dele, perfeito como ele, contempla-o como um outro ele próprio e ama-o como um outro ele mesmo, porque ele encerra toda a sua luz, a sua inteligência, a sua sabedoria; nada é mais belo, mais perfeito

que este pensamento infinito que é uno, perfeito e infinito; ele ama-o necessariamente.

Por seu lado, o Verbo ou o pensamento de Deus vê o seu autor e o seu princípio do qual sai em estado perfeito, vê este princípio que o gerou e admira todas as suas perfeições infinitas e eternas e ama este princípio com um amor infinito;

e, do amor destas subsistências perfeitas e infinitas, nasce uma terceira pessoa que se chama o Amor ou o Espírito Santo, porque emana dos dois primeiros princípios e que procede de um e de outro.

E, como este amor procede destas duas pessoas e as duas primeiras pessoas não puderam existir sem se conhecer e amar e como as duas primeiras pessoas são eternas, necessárias na sua própria existência, segue-se que a terceira pessoa que é o Amor ou o Espírito Santo, existe ao mesmo tempo que as duas outras pessoas;

e, como este amor procede de dois princípios perfeitos, infinitos, segue-se daí que o Espírito Santo é eterno, infinito, como o Pai e o Filho e que o amor infinito destas duas primeiras pessoas de uma para com a outra não pode produzir uma pessoa inferior às outras duas;

e que em Deus mesmo não pode haver nada de imperfeito, nada finito, de outro modo não seria Deus.

Eis o que há em Deus e não pode ser de outro modo, mesmo aos olhos da razão.

Necessidade destas três pessoas para um Deus perfeito

Coexistência destas três pessoas que não podem existir uma sem a outra

Igualdade destas três pessoas

Três pessoas inseparavéis

Comparação da nossa alma e da chama que produz necessáriamente luz e calor

Eis o que há em Deus e não pode ser de outro modo e estas três pessoas em Deus não são senão uma única e mesma coisa.

Deus, princípio de tudo, pensa e ama; o seu pensamento infinito como o próprio Deus torna-se uma pessoa infinita e eterna como o seu princípio.

E o seu amor torna-se uma pessoa infinita e eterna como o princípio donde emana.

E que tudo em Deus é perfeito e infinito.

E estas duas pessoas são eternas como o princípio donde emanam, porque o Pai ou o princípio destas duas pessoas não pode existir sem o seu pensamento e o seu amor.

Estas duas pessoas divinas recebem tudo do primeiro princípio por uma geração infinita; princípio infinito que comunica às duas outras pessoas tudo o que tem sem se destruir a si próprio, sem se diminuir, porque é um princípio infinito e que tendo uma vida infinita, comunica tudo o que tem de si sem nada perder de si mesmo.

Bem compreendidas estas primeiras noções, podemos agora dizer o que é Jesus Cristo.

II. O que é Jesus Cristo

Será possível comparar as páginas que se seguem com as precedentes. Se o Padre Chevrier era inábil em teologia especulativa, quando volta ao comentário direto da Escritura, está, pelo contrário, muito à vontade e não hesita perante fórmulas bastante ousadas (por exemplo, página 62, a propósito da necessidade que Deus tem de se comunicar).

Por trás destas páginas, especialmente, das últimas linhas mais vibrantes, há a experiência espiritual do Natal de 1856 que revive sem cessar no contato da alma com esta frase da Escritura: O Verbo fez-se carne e habitou entre nós.

São João responde muito claramente a esta questão no primeiro capítulo do seu Evangelho, quando diz:

No Princípio era o Verbo

Quer dizer, ao mesmo tempo que Deus era, o Verbo era também,

porque Deus não pode existir sem o seu pensamento ou o seu Verbo, um ser inteligente não pode existir sem pensar e Deus que é a própria sabedoria, a própria inteligência, não pode existir sem pensar, sem o seu pensamento.

No princípio era; não diz: foi criado, mas era.

Há uma diferença entre este começo do Evangelho de São João e o começo do Génesis onde Moisés diz: in principio Deus creavit[c].

E o Verbo estava em Deus

Quer dizer que ele não tinha ainda saído de Deus como mais tarde.

Estava em Deus como o meu pensamento está em mim, fazendo parte de mim próprio, eu sinto-o, sinto a sua existência. Assim o Verbo estava em Deus como Verbo interior, estava em Deus como o meu pensamento está em mim próprio, e, como eu não posso existir sem o meu pensamento; assim, Deus possui desde toda a eternidade o seu Verbo em si mesmo, que é o Verbo interior ainda não manifestado ao mundo.

E o Verbo era Deus

Este Verbo gerado pelo Pai que é Deus, sendo o pensamento perfeito de Deus, o seu pensamento, o seu conhecimento, a sua ciência, a sua sabedoria, este Verbo que recebeu tudo do Pai por uma filiação infinita e divina, sem nenhuma abstenção, forma uma pessoa divina que é Deus, como o princípio donde ela procede, como o filho que sai de seu pai, é semelhante a seu pai, recebe tudo de seu pai, torna-se, por consequência, homem como seu pai.

Assim, o Verbo que é originado do Pai de um modo infinito, recebe tudo dele e reconhece-se semelhante a ele, perfeito como ele, Deus como ele.

No princípio, ele estava com Deus

Desde o princípio, antes de todas as coisas, ele estava em Deus, não fazendo senão um com ele, o próprio Deus, não tendo senão uma natureza com ele. Estava em Deus como o meu pensamento está em mim, não fazendo senão um comigo, e isso desde o começo, isto é, desde toda a eternidade; assim, nestas palavras, vê-se a unidade da sua natureza e a eternidade do Filho de Deus e a sua existência, entretanto distinta, porque ele era, e a palavra precedente diz que era Deus.

No princípio, quer dizer, antes de se manifestar ao mundo, como o fez mais tarde, já existia, estava em Deus.

Todas as coisas foram feitas por ele e sem ele nada foi feito

Foi pela sua palavra ou pelo seu Verbo que Deus-Pai criou todas as coisas. Com efeito, não é pela nossa palavra que nós ordenamos, que mandamos fazer as coisas?

Quando temos alguma coisa a fazer, a produzir fora de nós, dizemos, falamos e fazemos por meio da nossa palavra. Um general do exército comanda e é obedecido.

Assim Deus faz tudo por meio do seu Verbo, ipse dixit et facta sunt[d].

Tudo o que foi feito fora de Deus, foi feito pelo seu Verbo ou pela sua palavra poderosa e infinita. Os anjos, o céu, a terra, os homens, tudo foi feito pelo seu Verbo divino que é a expressão divina da vontade do Pai e que, sendo o seu Verbo, tem o mesmo poder que o Pai e não pode querer e fazer senão o que o próprio Pai pode querer e fazer, pois que está nele e não faz senão um só com ele.

Nele estava a vida.

A vida do Pai como a vida dos homens. Não é no pensamento que se encontra a vida?

Tirai o pensamento de um ser inteligente: em que se torna ele? num ser morto. E do mesmo modo que ele recebe a vida do Pai que é a vida por essência, assim comunica esta vida do pensamento, da inteligência a todos os seres aos quais dá o ser, e, ao dar-lhes o ser, dá-lhes a vida, a inteligência, e o Espírito Santo dá-lhes o amor.

Assim, cada pessoa comunica alguma coisa:

o Pai dá o ser por seu Filho

o Filho dá a vida e a inteligência

e o Espírito Santo comunica o amor.

e estes três benefícios são, pois, absolutamente necessários para fazer de nós seres bons e capazes de bem.

Nele está o princípio de vida que nos comunica ao criar-nos, a inteligência, o pensamento, a razão, a fé.

vida natural,

vida espiritual.

Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens

Nesta vida que o Verbo comunica aos homens ao criá-los, encontra-se a luz, luz verdadeira que ilumina todo o homem que vem a este mundo.

Com efeito, não é no Verbo que está o pensamento de Deus, onde se encontra a verdadeira luz que nos faz conhecer Deus e as coisas celestes?

Não é neste Verbo que se encontram toda a sabedoria do Pai, a ciência, o conhecimento de Deus e todas as ciências divinas e humanas?

É deste Verbo divino que saem os raios deste sol divino que se estende sobre todas as criaturas inteligentes e cristãs para as elevar, iluminar e as fazer conhecer as coisas espirituais e divinas sem as quais o homem fica na ignorância e nas trevas da sua própria razão.

Luz dos anjos, dos homens, de Adão, de Moisés, dos profetas, dos santos.

E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós

Este Verbo interior que é o pensamento de Deus, que está em Deus desde toda a eternidade, que é Deus, revestiu-se de uma forma exterior para se manifestar aos homens.

O pensamento é essencialmente interno e para se tornar exterior, para se manifestar para fora, tem necessidade de revestir uma forma exterior. Assim, enquanto não falamos ou escrevemos, o nosso pensamento é interior, escondido e não é conhecido de ninguém e para o manifestar é necessário dar-lhe uma forma exterior.

Assim, em Deus, o seu pensamento ou o seu Verbo ficou escondido no interior e desconhecido, enquanto não foi revestido de forma e, para se manifestar, foi necessário que tomasse uma forma exterior.

Note-se que a manifestação do nosso pensamento é uma necessidade para nós que não podemos viver sem nos manifestar os nossos pensamentos. É uma necessidade para nós, os próprios mudos encontram meio de manifestar os seus pensamentos interiores.

O pensamento não pode ficar cativo e encadeado, de outro modo, os nossos pensamentos seriam inúteis para nós próprios e para os outros.

Ora, esta necessidade que temos de manifestar os nossos pensamentos, os nossos desejos, as nossas vontades, os nossos sentimentos aos outros, quem no-la dá senão Deus?

Se Deus nos deu esta necessidade, que é boa, porque Deus não teria esta necessidade de se comunicar a nós que somos criaturas, suas criaturas inteligentes, criaturas que formou à sua imagem e semelhança? Porque nos teria criado à sua imagem e à sua semelhança e nos teria dado um fim sobrenatural se não tivesse tido nada a dizer-nos ou a ensinar-nos? Deus não pôde criar-nos inteligentes e formar-nos à sua imagem e semelhança sem nada dizer à sua criatura e sem lhe dar um sinal da sua vontade sobre ela.

Que se diria de um pai que põe filhos no mundo e os deixa tranquilos sem lhes manifestar de nenhum modo a sua vontade e os seus deveres? Isso seria indigno de um pai e mais valeria nada do que semelhante situação.

Deus deveu falar aos homens e falou-lhes certamente.

E falou-lhes pelo seu Verbo porque o Verbo é o seu pensamento, a sua sabedoria.

E, assim como para manifestar o nosso pensamento nós o revestimos de uma forma exterior, da palavra ou da escrita, de uma carta ou de um mensageiro que leve as nossas vontades aos outros,

assim o Verbo divino tomou uma forma para se manifestar aos anjos e aos homens.

Manifestou-se a todas as criaturas inteligentes: primeiro aos anjos tomando uma forma espiritual, pois que eles próprios eram espírito, não tinha necessidade de assumir uma forma material.

Manifestou-se a Adão tomando uma forma visível e material. Qual? A Escritura não o diz, e quando lemos que Deus fala a Adão, é já o Verbo que começa a sua missão sobre a terra, de falar aos homens e de lhes manifestar as vontades de seu Pai.

Ninguém viu Deus senão o Filho que no-lo deu a conhecer (Jo 1,18).

Ele falou a Abraão sob a forma dos anjos.

Falou a Moisés

e aos profetas sob formas mais ou menos sensíveis.

Finalmente, no decurso dos séculos, no momento decretado pela Providência, falou a todos os homens, pessoalmente, revestindo-se de uma forma humana.

É o que o próprio São Paulo nos diz: multifariam multisque[e]

E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós.

Oh, inefável mistério! Deus está conosco,

Deus veio falar-nos, veio habitar conosco para nos falar e nos instruir.

O que não tinha feito outrora senão de passagem, por assim dizer, e depressa, fê-lo nestes últimos tempos de uma maneira bem sensível, duradoura.

Ele próprio assumiu a forma de homem a fim de habitar conosco e ter tempo de nos falar e nos dizer tudo o que o Pai queria ensinar-nos por ele.

Não somos seres abandonados por Deus.

Temos um Deus que é verdadeiramente um Pai, que ama os seus filhos e quer instrui-los e salvá-los.

III. A DIVINDADE DE JESUS CRISTO

Tudo nele nos prova que ele é este Verbo eterno que vem à terra…

Após esta afirmação, vem uma acumulação de referências evangélicas. De vez em quando brota um comentário. Alguns títulos manifestam um desejo de pôr em ordem as citações extraídas do Evangelho.

O conjunto mostra bem que não se trata nem de demonstrar a divindade de Jesus Cristo, nem de fazer uma teologia bíblica a respeito de Cristo. No prolongamento do comentário precedente sobre o prólogo de São João, somos convidados a um olhar contemplativo sobre toda a página do Evangelho, certos de aí encontrar a pessoa do Filho de Deus.

Isto é, aliás, confirmado explicitamente pela importante nota final[95]. Esta atenção à divindade de Jesus Cristo manifestada no Evangelho, exercita a fé que se torna assim mais viva e mais capaz de guiar o crente em tudo, capaz também de encontrar-se com a incredulidade para um labor verdadeiramente apostólico.

Por fim, é interessante notar a menção da Igreja como sinal da divindade de Jesus Cristo. Em 1870, o Primeiro Concílio do Vaticano proclamou: “A Igreja… é por si mesma um grande e perpétuo motivo de credibilidade e um testemunho irrefutável da sua missão divina”[96].

Hoje, somos convidados mais claramente a ir mais longe ao olhar a Igreja, não apenas como um sinal que confirma a divindade de Cristo e nos reenvia à sua vida passada tal como o mostra o Evangelho. A Igreja é, mais ainda, uma manifestação atual da presença de Jesus aos seus e podemos lançar sobre ela o mesmo olhar contemplativo que sobre o Evangelho, para aí reconhecer “Jesus Cristo, ontem e hoje, o mesmo para a eternidade”[97]. De resto, a Igreja nunca se apresenta a nós sem o Evangelho nas mãos.


Este Verbo feito carne, é Jesus Cristo

Tudo nele nos prova que ele é este Verbo eterno que vem à terra para nos manifestar os pensamentos e as vontades de Deus.

Tudo nos mostra que ele vem do céu e que nele não há nada de terrestre, senão este corpo que assumiu no seio de uma Virgem[f] e de que se revestiu para nos falar e nos mostrar o caminho do céu.

Em primeiro lugar foi nomeado e declarado tal pelo Anjo Gabriel no dia da sua conceção (Lc 1,26)

O anjo Gabriel tendo saudado a Virgem Maria, escolhida por Deus para dar o nascimento corporal ao Verbo de Deus, diz-lhe: Não temas, Maria, porque achaste graça diante de Deus, hás-de conceber no teu seio e darás à luz um filho e dar-lhe-ás o nome de Jesus. Ele será grande; e será chamado o Filho do Altíssimo e o Senhor lhe dará o trono de seu pai David.

Maria, temendo pela sua virgindade, pergunta ao anjo como poderá acontecer tal coisa, uma vez que ela se consagrou a Deus pela virgindade. O anjo tranquiliza-a dizendo-lhe:

O Espírito Santo virá sobre ti e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra, eis porque o que nascerá de ti, sendo santo, será chamado Filho de Deus.

A Deus nada é impossível.

Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.

tem uma virgem por mãe

foi concebido pela ação do Espírito Santo

ele é santo

é chamado o Filho do Altíssimo

é chamado o Filho de Deus.

É, pois, o Verbo eterno que nasce, vive no seio de uma virgem e isso devia ser assim, porque um homem não pode gerar um Deus.

Só Deus pode gerar o seu Filho.

Somente aquele que pensa tem o direito e a possibilidade de o expressar exteriormente; um estranho não pode exprimir o pensamento de um outro.

Portanto, só o Pai é que tem o direito de gerar o seu Verbo exteriormente pelo seu Espírito que é amor e que produz exteriormente os atos de amor. Só ele tem o direito de o gerar no tempo, porque só ele o gerou desde toda a eternidade.

Um homem não pode dizer: eu dei o dia a um Deus, gerei um Deus.

É um anjo quem o anuncia a São José

Enquanto São José, esposo de Maria, surpreendido com o estado de Maria sua esposa, pensava deixá-la e afastar-se dela, um anjo apareceu a José e diz-lhe: não temas ficar com Maria como tua esposa, porque o que nasceu nela é do Espírito Santo, ela dará à luz um filho e dar-lhe-ás o nome de Jesus porque é ele que salvará o povo dos seus pecados; e tudo isto aconteceu em cumprimento do que o Senhor disse pelo seu profeta ao anunciar: eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho e dar-lhe-ão o nome de Emanuel, que significa Deus-conosco.

E José ficou com Maria como sua esposa.

Os anjos o proclamam-no no seu nascimento

No seu nascimento, os anjos descem do céu e proclamam-no ao mundo, ensinando-lhe que este menino traz a paz ao mundo e vem procurar toda a glória de Deus.

Vão advertir os pastores de Belém e anunciam-lhes que um Salvador lhes nasceu, que este menino, deitado num presépio em Belém é o Cristo, o Senhor.

Uma estrela anuncia-o aos habitantes do Oriente e uns reis magos acorrem mediante este sinal e vêm adorá-lo reconhecendo-o como seu rei e seu Deus.

É Deus o Pai que o proclama seu Filho no dia do seu batismo

Depois de ter recebido o batismo de João, enquanto Jesus estava em oração, eis que os céus se abriram e o Espírito Santo desce sobre ele em forma de pomba e repousa sobre ele.

E uma voz fez-se ouvir do céu dizendo: tu és o meu Filho bem-amado, em ti pus as minhas complacências.

E na transfiguração

Quando Jesus se transfigurou no Tabor, na presença de três dos seus apóstolos que eram testemunhas de tudo o que de grande e maravilhoso se passava entre Jesus, Moisés e Elias, uma voz saía da nuvem que os envolvia e disse:

Este é o meu Filho bem-amado no qual pus todas as minhas complacências, escutai-o.

É S. João Batista que o proclama o Cristo, o verdadeiro Cordeiro de Deus e atesta que ele é o Filho de Deus. (Jo 1,15)

São João, levantando a voz diante dos seus discípulos e da multidão diz:

Deste é que eu disse: aquele que deve vir depois de mim foi posto antes de mim e é da sua plenitude que nós todos recebemos, graça sobre graça,

porque a fé veio-nos por Moisés, a graça e a verdade vieram-nos por Jesus Cristo,

ninguém viu Deus

mas o Filho único que está no seio do Pai é quem no-lo deu a conhecer.

(Jo 1,19): Quando os fariseus perguntam a Jesus quem ele é, responde que não é nem o Cristo, nem Elias, nem profeta, que é a voz do que clama no deserto.

Eu batizo na água, mas há alguém que está no meio de vós e que vós não conheceis, que virá depois de mim, que foi posto antes de mim. Esse é que batiza no Espírito Santo e eu não sou digno de desatar-lhe as correias das sandálias.

(Jo 1,29): João, vendo Jesus vir em direcção a ele, diz aos seus discípulos:

Eis o Cordeiro de Deus,

eis aquele que tira os pecados do mundo,

eis aquele de quem eu disse:

depois de mim vem um homem que foi posto acima de mim, porque era antes de mim,

e foi para que fosse conhecido em Israel que eu vim batizar em água.

Eu vi o Espírito Santo descer do céu como uma pomba e permanecer sobre ele.

E aquele que me enviou a batizar na água disse-me: Aquele sobre quem vires o Espírito Santo descer, esse é que batiza no Espírito Santo.

E eu vi e atestei que este é o Filho de Deus.

São João

(Jo 3,28): Em outro lugar, falando aos judeus ele diz:

Vós sabeis o que eu vos disse: eu não sou o Cristo, porém fui enviado à sua frente.

É preciso que ele cresça e que eu diminua.

O que vem do alto está acima de tudo.

O que vem da terra é terrestre.

O que veio do céu está acima de todos: atesta o que viu e ouviu e, no entanto, ninguém acolhe o seu testemunho.

Aquele que aceitou o seu testemunho, declarou que Deus é verídico, porque aquele que Deus enviou fala a linguagem de Deus, porque Deus lhe dá o seu Espírito sem medida[g].

O Pai ama o Filho e depôs todas as coisas nas suas mãos.

Quem crê no Filho tem a vida eterna.

Mas quem não crê no Filho, não verá a vida[h].

Mas a cólera de Deus permanece nele.

É a multidão que o segue que proclama a sua divindade.

É a multidão de doentes que acorrem de todas as partes para pedir a sua cura. (Mc 1,32)

São os próprios demônios que não podem deixar de o chamar o Cristo e o Filho de Deus. (Mc 3,11)

É a natureza inteira que obedece à sua palavra e se inclina diante dele como perante o seu criador. (Mc 4,31)

São os apóstolos que confessam que ele é o Cristo e vão pregá-lo por todo o lado após a sua morte. (Mt 16,16)

O mais brilhante testemunho é aquele que ele dá de si mesmo, através das suas palavras e das suas ações.

Fala como um Deus, como o Verbo de Deus

Ele é o Verbo divino, a palavra mesma de Deus, deve, pois, falar como Deus mesmo ou antes, como

o próprio pensamento de Deus, expresso para fora sob uma forma humana, ou melhor: a forma não é nada, é o pensamento, a inteligência que é tudo.

Como Verbo ou pensamento eterno de Deus, sai verdadeiramente de Deus. Deus é que o gerou desde toda a eternidade e ele tornou-se visível, sensível, desde que tomou um corpo para se manifestar aos homens, mas, é sempre o mesmo Verbo, o mesmo pensamento; deste modo não é o som da voz ou a escrita que eu examino, que é o essencial, é o pensamento que estes sinais exprimem. Está aí tudo; é o essencial.

E o Verbo, expresso exteriormente ao mundo, é sempre o verdadeiro Verbo interior do Pai que ele chama verdadeiramente seu Filho, porque é, nesta forma exterior de homem, o seu Verbo eterno que ele gerou desde toda a eternidade.

Por isso é que também Jesus Cristo pode sempre verdadeiramente chamar Deus seu Pai, porque foi ele que o gerou verdadeiramente desde toda a eternidade, embora tendo tomado uma forma exterior desde há algum tempo.

Também chama sempre Deus seu Pai e não lhe dá outros nomes porque saiu realmente dele e é sempre o Verbo interior, ainda que expresso para fora sob uma forma sensível…

Da mesma maneira que o meu pensamento é sempre o meu pensamento, embora seja expresso para fora por meio de sinais exteriores.

Ele sempre chama Deus seu Pai

E Deus o chama-o seu Filho

Este é o meu filho amado, em que pus as minhas complacências.

Ele chama Deus o seu Pai em sentido estrito e verdadeiro

Não é por adopção, como nós, que ele chama Deus seu Pai, mas sim, em sentido estrito e verdadeiro.

Assim como o filho vem de seu pai, sai de seu pai, tem a mesma natureza de seu pai, a mesma vida, o mesmo poder, assim Jesus Cristo tem a mesma natureza, o mesmo poder, a mesma vida, porque realmente saiu do pai.

Como o meu pensamento sai de mim, assim Jesus Cristo sai de seu Pai.

É o que ele exprime pelas suas palavras divinas.

Ele saiu de Deus

Antes de deixar o mundo, dizia aos seus apóstolos: saí de Deus e vim ao mundo.

Deixo o mundo e volta para meu Pai.

Responde aos judeus que dizem que Deus é seu Pai: se Deus fosse vosso pai, amar-me-íeis.

Pois é de Deus que eu procedo e que vim,

porque eu não vim de mim mesmo,

mas ele é que me enviou.

E São João exprime esta verdade ao dizer: jamais alguém viu Deus.

O Filho único que está no seio de Deus é aquele que o fez conhecer.

Tem a mesma natureza que o Pai

E Nosso Senhor diz aos judeus: meu Pai e eu não somos senão um, quer dizer, uma só e mesma coisa.

Não acreditais que eu estou em meu Pai e meu Pai está em mim? Acreditai-o ao menos por causa das minhas obras.

Crede nas minhas obras para que conheçais e acrediteis que meu Pai está em mim e que eu estou em meu Pai.

Tem a mesma vida que o Pai

Como o Pai tem a vida em si mesmo, deu também ao Filho o ter a vida em si mesmo,

vida eterna: antes que Abraão fosse, eu sou.

Ele chama-se o Princípio,

nele estava a vida e a vida era a luz dos homens.

No princípio ele estava em Deus, no princípio era o Verbo.

Em tudo é semelhante ao Pai

Quem me vê, vê o Pai.

Aquele que me vê, vê aquele que me enviou.

Eu estou em meu Pai e meu Pai está em mim.

É Igual ao Pai em poder e grandeza

Todo o poder me foi dado, no céu e na terra.

Meu Pai trabalha sem cessar e eu trabalho com ele.

Tudo o que o Pai faz, o Filho fá-lo igualmente.

Todas as coisas foram feitas por ele e sem ele nada foi feito.

Igual em riquezas

Todas as coisas me foram dadas por meu Pai.

Tudo o que é de meu Pai, é meu.

É digno das mesmas honras que o Pai

O Pai entregou todo o juízo ao Filho a fim de que todos honrem o Filho como honram o Pai.

Quem não honra o Filho, não honra o Pai que o enviou.

Merece a mesma confiança que o Pai

A vontade de meu Pai que me enviou é que todo o que vê o Filho e acredita nele tenha a vida eterna.

Quem crê mim, não crê em mim, mas naquele que me enviou.

Credes em Deus, crede também em mim.

Ele pode pois se chamar-se com justiça o Filho de Deus

Responde a Caifás que lhe pergunta se ele é o Filho de Deus, o Cristo,

responde com autoridade e verdade: Eu o sou, tu o disseste.

Responde aos judeus: vós me dizeis a mim a quem o Pai santificou e enviou ao mundo: tu blasfemas, porque eu disse: eu sou o Filho de Deus.

Se não faço as obras de meu Pai, não me acreditais.

Mas se as faço, ainda que não queirais acreditar, crede nas minhas obras,

para que conheçais e acrediteis que eu estou em meu Pai e meu Pai está em mim.

Fala verdadeiramente como um Deus

Na verdade qual é o homem que pode falar assim?

Qual é o homem que pode dizer com verdade: Deus é o meu verdadeiro Pai? Eu saí de Deus. Eu venho de Deus.

É de Deus que eu procedo.

Deus e eu não somos senão uma só e mesma coisa.

Deus está em mim e eu estou em Deus.

Eu sou a vida, o princípio de todas as coisas e tal como Deus tem a vida em si mesmo, também eu tenho a vida em mim mesmo e ninguém pode roubar-me a minha vida, se eu próprio não quero.

Quem me vê, vê o próprio Deus em mim. Porque eu estou em Deus e Deus está em mim.

Tenho todo o poder de Deus no céu e na terra.

Tudo o que Deus faz, faço-o eu mesmo também.

Tudo o que Deus tem, eu próprio o tenho também.

Quem crê em mim, crê em Deus e eu dou a vida eterna àquele que crê em mim, tal é a vontade de Deus.

Eu sou o Filho de Deus vivo.

Aquele que crê em mim, não morrerá jamais e eu o ressuscitarei no último dia e ele terá a vida eterna.

Que homem jamais ousou falar assim?

O que há de mais forte e de mais convincente, é que ele faz apelo às suas obras como testemunho das suas próprias palavras.

Com efeito, por mais que um homem dissesse: eu sou tal, sou filho de um tal… conde, operário, alfaiate, arquiteto, se não prova quem é pelos seus papéis ou pelas suas obras, as suas palavras são olhadas

como nulas e não é senão um mentiroso, porém, se as suas obras correspondem às suas palavras, então é digno de crédito e é-se forçado a acreditar no que ele diz e a admitir o seu testemunho, os seus títulos e a sua identidade.

É o que faz o próprio Jesus ao apresentar as suas obras como segundo testemunho da sua divindade, como Verbo de Deus.

Ele próprio não tem medo de dizer: crede nas minhas obras.

Se não faço as obras de Deus meu Pai, não me acrediteis, mas se as faço, estais obrigados a acreditar-me.

Crede nas minhas obras, para que conheçais e acrediteis que meu Pai está em mim e que eu estou em meu Pai e que nós não somos senão um só e a mesma coisa.

Não somente fala como um Deus, mas age como um Deus.

Ele põe em execução esta palavra que disse ao mundo: todo o poder me foi dado no céu e na terra. Tudo o que o Pai faz, o Filho fá-lo igualmente. Meu Pai trabalha sem cessar, e eu trabalho com ele.

Os Judeus poderiam bem provocar Jesus Cristo e dizer: tu dizes e não fazes o que prometes.

Mas Jesus diz, para responder a tudo: Crede nas minhas obras e as minhas obras não estão escondidas, faço-as diante de toda a gente; a multidão, o povo e vós próprios que sois testemunhas disso todos os dias.

Ordena à natureza e a natureza obedece-lhe como ao seu criador; acalma as tempestades.

Quando está no mar com os seus apóstolos e a tempestade ameaça submergi-los, os apóstolos assustados gritam: Senhor, salvai-nos, que perecemos. Jesus despertando do seu sono porque dormia, diz-lhes: Que temeis, homens de pouca fé? E, levantando-se, ameaçou o vento e disse ao mar: acalma-te; e imediatamente o vento cessou e fez-se uma grande calma; e toda a gente, em admiração, estava apoderada de temor e diziam uns aos outros: quem é este? ordena aos ventos e ao mar e os ventos e o mar obedecem-lhe.

Ah! era o criador do mundo.

Ipse dixit et facta sunt. Omnia per ipsum facta sunt et sine ipso factum est nihil[i].

Caminha sobre as águas e faz caminhar Pedro.

Uma outra vez, só os apóstolos atravessavam o mar e Jesus tinha ficado na margem com o povo para o despedir depois da multiplicação dos pães,

e eles cansavam-se muito a remar porque o vento lhes era contrário. Após terem remado durante uns 25 ou 30 estádios de noite, viram Jesus caminhando sobre as águas aproximando-se do barco e ultrapassando-os.

Eles, perturbados, pensaram que era um fantasma e lançaram um grande grito. Mas Jesus diz-lhes: tende confiança, sou eu, não temais.

Pedro, tendo ouvido a voz do seu Mestre, disse: Senhor, se és tu, manda que eu vá ter contigo sobre as águas.

E Jesus diz-lhe: vem.

E Pedro descendo do barco, caminhava sobre a água para ir ter com Jesus. Mas, teve medo, por um instante, por causa da violência do vento e como começava a afundar-se, gritou: Senhor, salva-me e Jesus, estendendo a mão, agarra-o e diz-lhe: homem de pouca fé, porque duvidaste?

Eles tomaram-no, então, com eles e, quando esteve no barco, o vento amainou e neste momento foram para terra; então, os que estavam no barco vieram adorá-lo dizendo: na verdade, és o Filho de Deus e a sua admiração crescia cada vez mais.

De fato, encontravam-se ali diante do Senhor do mundo, o Verbo eterno que criou o céu e a terra, que sabe ordenar aos ventos e ao mar, e sabe firmar as águas debaixo dos seus pés e sob os pés dos seus discípulos quando quer.

Com efeito, quem não se teria atemorizado ao encontrar-se em semelhante companhia, a do Filho de Deus?

Ordena aos peixes do mar que venham à rede de Pedro.

Jesus tinha subido ao barco de Pedro para ensinar o povo que estava na margem, quando terminou, disse a Pedro que se fizesse ao largo e lançasse as redes para pescar.

Mestre, disse Pedro, trabalhamos toda a noite sem nada apanhar, mas à tua palavra, lançarei a rede.

Eles apanharam uma tão grande quantidade de peixes que a sua rede se rompia e encheram dois barcos ao ponte de quase se afundarem.

À vista disto, Pedro cai aos pés de Jesus e diz-lhe: afasta-te de mim, porque não passo de um homem pecador.

É que eles estavam tomados de espanto por causa da pesca de peixes que tinham feito.

Ele multiplica os pães no deserto

(Jo 6,1)

Ele muda a água em vinho

(Jo 2,1)

Ele seca um figueira que não tinha frutos

(Mt 21,19)

É o Senhor da Vida e da morte;
Ordena às doenças e aos mortos e as doenças e os mortos obedecem-lhe.

É o cumprimento desta palavra que ele disse: Eu sou a ressurreição e a vida.

Confirma esta palavra com as suas obras.

dá a saúde aos doentes

dá a vida aos mortos

e devolve-a a si mesmo.

Cura a sogra de São Pedro.

(Mc 1,29)

Cura um cego de nascença.

(Jo 9,1)

Cura dois cegos.

(Mt 9,27)

Cura um leproso.

(Mc 1,40)

Cura um surdo-mudo.

(Mc 7,31)

Cura todos os enfermos que se apresentam.

(Mt 15,29)

Cura uma mão ressequida.

(Lc 6,6)

Cura um paralítico.

(Mc 2,1; Jo 5,1)

Cura uma mulher com hemorragia.

(Mc 5,25)

Cura todos os que tocam a sua túnica.

(Lc 6,19)

Cura o servo do centurião.

(Mt 8,5)

Cura o filho de um oficial.

(Jo 4,46)

Cura dez leprosos.

(Lc 17,12)

Cura a filha da cananeia.

(Mt 15,21)

Resumo de todos os milagres onde se nota o poder infinito daquele que os faz.
Só um Deus é que pode agir [assim].
Senhor da vida.

Ele é Senhor da morte.

Ressuscita o filho da viúva de Naím.

(Lc 7,11)

Ressuscita a filha de Jairo.

(Mc 5,21)

Ressuscita Lázaro.

(Jo 11,1)

Não só é Senhor da vida dos outros,
é também senhor da sua própria vida.

Ele próprio o diz:

Como o Pai tem a vida em si mesmo, deu ao Filho também o ter a vida em si mesmo.

Eu entrego a minha vida para a retomar, ninguém me a tira, sou eu próprio que a dou.

Tenho o poder de a dar e o poder de a retomar. (Jo 10,18).

Fica 40 dias e 40 noites sem tomar nenhum alimento.

Em Nazaré, quando os seus inimigos o expulsam da Sinagoga e o conduzem a um alto monte para o precipitar de lá abaixo, chegado à montanha, volta-se, e, passando pelo meio deles, foi-se embora sem que ninguém ousasse dizer-lhe mais nada; torna-se o senhor de todas estas vontades rebeldes e inimigas; elas nada podem sobre a sua vida, a sua hora não chegou.

Várias vezes os seus inimigos vêm para o prender, mas não podem pôr a mão sobre ele; uma força invisível impede-os de se aproximarem dele: não era ainda a hora em que devia deixar-se prender.

Quando o vêm prender no jardim das oliveiras não diz senão uma palavra aos que o interrogam para o prender: sou eu, e, neste vocábulo, caem para trás.

Para lhes mostrar que é mais poderoso do que todos eles e que, se se deixa prender, é porque muito bem quer. E quando se deixa prender, fá-los compreender claramente que agora é a sua hora e o poder das trevas.

Se morre na cruz, lança um tão grande grito ao expirar, a tal ponto que os soldados se espantaram e gritam: verdadeiramente este é o Filho de Deus, verdadeiramente este era o Filho de Deus. E o mais espantoso milagre de todos, é que ele próprio retoma a sua vida depois que os homens a tiraram, tal como tinha predito desde há muito aos seus apóstolos.

Reflexão sobre este poder que ele tem sobre si mesmo[j]

Pela sua ciência infinita conhece todas as coisas, o futuro e o que há de mais secreto nos corações dos homens:

Lê no coração da samaritana.

(Jo 4,17)

Conhece Natanael sem o ter visto.

(Jo 1,48)

Distingue os que crêem realmente nele e os que não crêem.

(Jo 6,64)

Conhece os murmúrios interiores

dos seus discípulos a propósito da Eucaristia.

(Jo 6,61)

Prediz a Pedro a sua tríplice negação.

(Mt 26,34)

Anuncia a Pedro a sua morte.

(Jo 21,18)

Anuncia aos seus apóstolos toda a sua paixão e como ele próprio deve morrer.

(Mc 10,33)

Prediz a traição de Judas.

(Mc 14,18)

Conhece os que são puros e os que não o são.

(Jn 13,10)

Não só é Senhor do tempo, mas ainda Senhor da eternidade:

Perdoa os pecados ao paralítico.

(Mc 2,5)

À mulher pecadora.

(Jo 8,11)

Promete a salvação à mulher hemorroissa.

(Mt 9,22)

Promete o céu ao leproso agradecido.

(Lc 17,19)

Dá o céu ao bom ladrão.

(Lc 23,43)

Promete o céu àquele que crê nele.

(Jn 11,25)

Promete-o aos seus apóstolos que deixaram tudo por ele.

(Mt 19,27)

O que há de mais espantoso é que comunica o seu poder aos seus apóstolos.

(Lc 9,1)

E os apóstolos fazem os mesmos milagres que o próprio Jesus Cristo.

(Lc 10,17; At 3)

A existência da Igreja é o maior milagre existente e a confirmação dos milagres precedentes.

Finalmente não esquecer o grande ato de fé em Jesus Cristo, Verbo e Filho de Deus[k].

IV. Títulos de Jesus Cristo

Esta maneira de abordar a pessoa de Cristo é tradicional[98].

Aqui, trata-se dos laços que estabelece conosco o Filho de Deus na sua Incarnação: Deus nos dá o seu Verbo. Este é tudo para nós[99].

Estes títulos de Jesus Cristo no-lo mostram na sua obra de Salvador. Não se pode nunca negligenciar este aspécto essencial dos laços que existem entre Cristo e nós.

O Padre Chevrier encontrou estes títulos na Escritura. Alguns não se encontram lá senão implicitamente, é o caso, por exemplo, do título de centro.

Um lugar preponderante é dado ao título de Mestre que o Padre estudou muitas vezes como o testemunham os seus manuscritos.

Veja-se, por exemplo, o que ele tinha escrito numa folha de papel que fixou numa parede ou numa prancha, segundo um procedimento que lhe era familiar. É assim que fazia para amadurecer um argumento a partir de um esboço que podia ter imediatamente sob os olhos, logo que se apresentava um momento de trégua no meio de uma vida sem cessar ocupada por uns ou por outros:

Necessidade de um Mestre

necessidade – que diversidade de ideias!

necessidade de um mestre – ninguém pode conduzir-se só por si mesmo – profissão, aprendiz, ciência, estudo.

A razão, o mundo, os homens, os filósofos.

É deixar todos os pretensos mestres para se unir a Jesus Cristo: a razão, os homens, a sua imaginação, a si mesmo. Necessidade de um mestre.

Viver sem mestre, que se faz? Nada ou tudo enviesado, apesar de si, procura-se um mestre, fica-se contente por ter encontrado um.

Sente-se a sua incapacidade, a sua pequenez – limitado, erro[100].

Em alguns escritos do Padre Chevrier encontram-se outras listas de títulos, por exemplo, esta:

Enviado de Deus ou Messias

Filho de Deus

Filho do homem

Salvador – Jesus

Redentor

Sacerdote

Cristo

Rei

Mestre

Juiz[101]

Por que razão o Padre Chevrier não retomou títulos tão importantes ao redigir o Verdadeiro Discípulo? Eis aqui uma explicação.

Algumas listas de títulos eram preparadas com vista ao catecismo. As crianças que vêm ao Prado para se prepararem para a Primeira Comunhão nem sempre têm fé, ao menos não têm uma fé explícita. O Padre Chevrier procurou no Evangelho como fazê-las descobrir progressivamente a pessoa de Jesus:

Com que sabedoria, humildade e prudência, Jesus Cristo se apresenta ao mundo; como vai mansamente, prudência, caridade!

Ele chama-se o Enviado de Deus, o título mais simples, o mais inteligível, diz que não diz nada de si mesmo, não se impõe, porém, vem da parte de Deus, não manda, não diz: Eu sou o Filho de Deus, é necessariamente crer em… contudo, dispõe os espíritos para este grande ato de fé nele: Deus é seu Pai. Assim é que Moisés e os profetas agiam, eles diziam: É da parte de Deus que vos falo, é Deus quem vos ordena: sempre o mesmo procedimento, o mesmo espírito[102].

Não seria surpreendente que o mesmo caminho tivesse sido proposto aos jovens alunos da escola clerical. Diversos manuscritos o sugerem.

Estes diversos títulos passaram implicitamente ao Verdadeiro Discípulo. Basta notar que o comentário do prólogo de São João apresenta Jesus como o enviado do Pai e que o presente capítulo enumera os traços de Jesus Cristo Salvador. Pense-se na exclamação de São Paulo: “Ante os vossos olhos foram desenhados os traços de Jesus Cristo na cruz”[103].

A experiência espiritual de 1856 está sempre presente nesta meditação dos títulos de Jesus Cristo. Manifesta-se particularmente quando se trata da beleza de Cristo, da sua luz.

Para nos fazer comungar nesta experiência, o Padre Chevrier convida-nos à oração. Compõe a oração – Ó Verbo! Ó Cristo![104]. O exercício da fé de que falamos[105], desenvolve-se na oração. No mesmo sentido outras orações serão propostas em diversas passagens[106].

Ele nos foi dado por Deus para ser
a nossa Luz,
a nossa Sabedoria,
a nossa Justiça,
a nossa Santificação
e anossa Redenção (1 Co 1,30)

Deus não nos podia oferecer um dom maior, dar-nos um maior tesouro, do que dar o seu Verbo, o seu Filho adorável, porque Ele é tudo para nós.

1° Nossa sabedoria

Ele é a nossa sabedoria ao irradiar à nossa volta esta luz divina que nos ilumina e nos mostra a verdade e o justo valor de todas as coisas. Desde o pecado, o homem perdeu a sabedoria, pois que já não está iluminado por Deus, antes conduziu-se pelas suas próprias luzes: caiu em toda a espécie de erros, de infelicidades e de crimes.

Ao dar-nos a verdadeira luz que deve guiar-nos no caminho da vida e instruir-nos.

Jesus Cristo foi-nos dado para reparar esta infelicidade e torna-se nossa Sabedoria ao iluminar-nos com as suas divinas luzes, para nos ensinar a distinguir o verdadeiro do falso, o bem do mal, o justo do injusto e a julgar cada coisa pelo seu justo valor, a saber pôr no seu lugar o terrestre, o espiritual, o tempo e a eternidade.

Por isso, Ele é a verdadeira luz que ilumina todo o homem neste mundo.

É o Verbo divino, nele se encontra a vida e a vida é a luz dos homens.

Ele vem do alto, com toda a beleza, a glória, o esplendor dos céus.

Por isso é chamado

Oriens ex alto

sol justitiae

candor lucis aeternae

splendor patris (Heb 1,3)[l].

Não é somente um raio de luz que nos vem do alto, como nos santos e nos profetas, mas é toda a luz divina que vem iluminar-nos com o seu esplendor.

Por isso a Escritura diz que o povo que andava nas trevas viu uma grande luz. (Mt 4,16).

A luz brilhou nas trevas. (Jo 1,5).

Nunc lux in Domino[m].

A fim de que caminhemos como filhos da luz, para saber distinguir e conhecer o verdadeiro, o bom, o justo, e o bem.

In lumine tuo videbimus lumen[n].

Para que sejais os filhos da luz e do dia. (1 Tes 5,5).

Nosso Senhor não teme dizer-nos, ele próprio, que ele é a luz do mundo: Ego sum lux mundi.

Quando Deus criou o mundo, fez o sol para iluminar os olhos do nosso corpo.

Mas quando Deus criou as nossas almas, deu-nos Jesus Cristo, o seu Verbo, para iluminar as nossas almas e as nossas inteligências,

porque Ele era a vida e a vida era a luz dos homens.

Por Jesus Cristo recebemos a vida e a luz, e a verdadeira luz, Lux vera, para distinguir esta luz do alto de todas estas pequenas luzes humanas e terrestres que vêm iluminar muitas vezes com a sua falsa luz as nossas almas obscurecidas.

Jesus Cristo é a luz das nossas almas, como o sol é a luz dos nossos corpos. Tal como o sol alegra os nossos olhos, ilumina-nos, descobre-nos os objetos, faz-nos conhecer e apreciar cada coisa, cada objeto e nos mostra o caminho que importa seguir, mostra-nos o valor, a cor das coisas, o uso que devemos fazer delas – qual imenso benefício como o sol para os nossos corpos! –, assim Jesus Cristo é o Sol das nossas inteligências e das nossas almas.

É à sua luz que devemos aprender a conhecer cada coisa, a conhecer a verdade, o valor espiritual de cada coisa terrestre, a conhecer o verdadeiro do falso, o justo do injusto, o bem do mal.

Quanta vantagem não tem este conhecimento espiritual das coisas sobre o conhecimento material que nos dá o sol relativamente às coisas visíveis e criadas!

Com efeito, quando queremos conhecer alguma coisa, avaliá-la, julgá-la, dar-lhe o seu valor, não temos senão que procurar a luz, Jesus Cristo, e Ele nos iluminará e nos ensinará o que isso vale e como devemos avaliá-la, saber o que disse delas, o que faz delas e teremos a verdadeira luz… o verdadeiro juízo das coisas.

Do mesmo modo que ele é a nossa verdadeira luz, ele é a nossa sabedoria, dado que, se agimos segundo esta luz, não nos enganaremos; se nos conduzimos segundo esta luz, não nos perderemos.

Se apreciamos as coisas segundo esta luz, julgaremos corretamente porque ele é a verdadeira luz que vem do céu e que saiu do próprio Deus para nos iluminar.

É a luz do céu! É a divina sabedoria!

Nele estão todos os tesouros da ciência e da sabedoria. (Col 2,3).

Ele crescia em idade e sabedoria diante de Deus e dos homens, e a graça estava nele.

Cheio de graça e de verdade[107].

2° A nossa justiça

É ele que nos torna justos, quem nos faz justos.

É chamado o sol da justiça. Sol justitiae, e São Paulo diz-nos: Que, por Jesus Cristo, sejais repletos dos frutos da justiça para o louvor e a glória de Deus (Fil 1,11).

Tornamo-nos justos por ele ao cumprir a lei que nos deu, foi ele que nos deu a lei divina que devemos seguir, os preceitos e os conselhos que devemos observar e que nos tornarão justos aos olhos de Deus fazendo-nos caminhar na via que o próprio Deus nos traçou por seu Filho.

Por nosso amor, Deus tratou o seu Filho que de modo nenhum conhecia o pecado, como se ele tivesse sido o próprio pecado, fazendo morrer sobre a cruz o seu próprio Filho, a fim de que nele nos tornássemos justos com a justiça que vem de Deus. (2 Cor 5,21).

3° A nossa santificação

É também Ele que nos torna santos, comunicando-nos a graça que purifica e santifica as almas.

É da sua plenitude que nós recebemos graça sobre graça, diz São João. A graça e a verdade vieram-nos por Jesus Cristo. (Jo 1,17).

Ele próprio está cheio de graça e de verdade. (Jo 1,14).

Ele santifica-nos, torna-nos santos, pelos sacramentos que estabeleceu.

Desde que o pecado entrou no mundo, o pecado reinava em nós. Mas Jesus Cristo expulsou-o pela sua graça.

Tornamo-nos santos aos olhos de Deus por Jesus Cristo. De ímpios, de maus que éramos, tornamo-nos santos por Jesus Cristo.

Ele é o nosso santificador.

4° A nossa redenção

Foi Ele quem nos resgatou entregando-se por nós, pagando a nossa dívida a seu Pai, fazendo a penitência que tínhamos merecido pelos nossos pecados, morrendo por nós numa cruz, como um culpável, como o último criminoso do mundo, porque quis carregar os nossos pecados.

Eis o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo. Jesus resgatou-nos da maldição da lei, tornando-se ele próprio maldição por nós. (Gál 3,12).

Por nosso amor, Deus tratou o seu Filho que de modo nenhum conhecia o pecado, como se ele tivesse sido o próprio pecado, fazendo morrer sobre a cruz o seu próprio Filho a fim de que nele nos tornássemos justos pela justiça que vem de Deus. (2 Cor 5,21).

Jesus foi entregue à morte para expiar os nossos pecados. (Rom 3,25).

Ele aboliu o decreto da nossa condenação ao uni-lo à cruz. (Col 2,14).

5° Ele é o nosso Rei

Caderno de Jesus Rei[o].

Ele vem para nos governar, para nos mandar.

O nosso único Rei

Deus, o grande e único rei do mundo estabeleceu-o rei dos homens, como nós o vemos nos salmos e nos profetas.

Dar-te-ei as nações em herança.

Dominará de um mar até ao outro.

No dia da sua concepção, o anjo anuncia a sua grandeza e a sua realeza futura.

Ele será grande, será chamado o Filho de Deus e o Senhor lhe dará o trono de David, seu Pai e reinará na casa de Jacob e o seu reino não terá fim (Lc 1,32).

São João Batista prepara o seu reino.

Ao seu nascimento, os próprios reis vêm adorá-lo e perguntam em Jerusalém onde está o que nasceu rei dos judeus.

Durante a sua vida, foi proclamado rei pelo povo que bendisse o seu nome e o seu reino.

Uns o proclamam, outros o negam.

Não temos outro rei senão César.

Nolumus hunc regnare super nos[p].

Quando Pilatos lhe pergunta se ele é rei, ele responde que sim, eu o sou. Se eu nasci e se vim ao mundo, foi para dar testemunho da verdade.

Quem é da verdade escuta a minha voz. (Jo 18,37).

Explica em que consiste a sua realeza, ele é rei da verdade.

O meu reino não é deste mundo, se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros combateriam certamente por mim, mas o meu reino não é daqui.

Esta realeza de Jesus Cristo não está nos soldados, nas fortalezas, nas casas, nas fronteiras.

É uma realeza totalmente espiritual.

É o reino da verdade.

É o rei da verdade. Ego sum veritas.

Eu vim para dar testemunho da verdade.

Este reino não é limitado, a verdade não tem limites, nem fronteiras, está em toda a parte.

É a herança das almas. Quem ama a verdade toma Jesus por rei.

Este reino não é defendido por armas, fortalezas e soldados.

É o reino das almas, está em todo o universo, e todo o mundo é chamado a ele, todo o mundo pode entrar nele.

É a única realeza verdadeira, é o único reino verdadeiro, os outros não são senão reinos terrestres que se disputam um palmo de terra, que não procuram senão a terra e homens.

O reino de Jesus Cristo é muito diferente, muito superior.

O chefe deste reino espiritual é muito diferente dos outros reis.

Os reis da terra têm magníficos castelos, ele não tem senão um estábulo por habitação e durante a sua vida não tem onde repousar a sua cabeça.

Os outros reis têm uma coroa de ouro na cabeça, ele tem uma coroa de espinhos, [o seu] trono: uma cruz.

Os outros têm mantos de ouro e de púrpura, ele não tem senão farrapos para se cobrir.

Os outros têm um cetro de ouro, ele não tem senão uma cana como sinal do seu império.

E, no entanto, apesar desta veste tão pobre, tão desprezível, Pilatos mostra-o ao povo e diz-lhes: Eis aqui o vosso rei.

O verdadeiro sentido destas insígnias reais: são verdadeiras e justas para este rei da verdade.

Como existe este reino no mundo?

Este reino da verdade existe realmente, está estabelecido há 1870 anos e ninguém pôde destrui-lo, funciona.

Tem seus chefes, os seus oficiais, os seus soldados, os seus súbditos, os seus inimigos e estende-se pelo mundo inteiro.

Que belo reino o de Jesus Cristo!

Que grande rei é Jesus Cristo! Como são pequenos os reis da terra diante de Jesus Cristo, o único e verdadeiro rei do universo e dos homens!

Inclinemo-nos, pois, diante de Jesus Cristo, o nosso rei e saudemo-lo como nosso verdadeiro e único rei.

Rex regum, Dominus dominantium; sedenti in throno et agno benedictio honor et gloria saecula saeculorum[q].

No fim do mundo, então é que ele aparecerá sob o belo título de rei, quando vier julgar o mundo, recompensar os que o tiverem servido e punir os que lhe tiverem desobedecido.

Então dará o paraíso aos bons e condenará os maus ao inferno.

É então que começará o reino eterno de Jesus Cristo no céu.

Como será grande este reino! Como será belo esse reino! Que numeroso será este reino! Desde Jesus até ao fim do mundo, e antes dele todos os que tiverem esperado nele.

Reino santo, puro.

Onde já não existirá mais o reino de Satanás,

em que tudo estará na justiça e na caridade,

em que [nos] inclinaremos com os 24 anciãos para cantar, [com] as virgens, os mártires, os santos… Oh! O belo reino de Jesus Cristo!

6° Ele é o nosso Mestre, o nosso único Mestre[108].

Chama-se mestre aquele que nos ensina e nos instrui.

Ora, só Jesus Cristo é o nosso único Mestre.

Ele é o Verbo de Deus, nele estão todos os tesouros da ciência e da sabedoria.

Como Verbo, ele é o próprio pensamento de Deus, possui toda a ciência de Deus, todos os conhecimentos do Pai.

Ele é a palavra do Pai, revestida de uma forma exterior para nos falar; é ele que vem do céu para nos falar e nos fazer conhecer as vontades de Deus seu Pai.

Ele próprio é a carta viva que o Pai nos enviou a fim de que nós a leiamos e a cumpramos.

É o próprio Deus que no-la ensina: Eis o meu servo que eu escolhi, o meu bem-amado em quem pus as minhas complacências, farei repousar o meu espírito sobre ele e anunciará a justiça às nações. (Is 42,1).

No dia da transfiguração, é o Pai que o proclama ao dizer: Eis o meu Filho bem-amado em quem eu pus as minhas complacências, escutai-o. (Mt 17,5).

Deus amou de tal maneira o mundo que deu o seu Filho único a fim de que todo o homem que nele crê não pereça mas tenha a vida eterna. (Jo 3,16).

A sua grande função é a de instruir o mundo

É o que explica aos habitantes de Nazaré, quando explica as palavras do profeta Isaías.

O espírito de Deus está sobre mim.

Por isso me consagrou pela sua unção divina e me enviou para evangelizar os pobres. (Lc 4,18).

Ele dizia aos seus apóstolos: vamos a pregar, para isso é que eu vim.

Ad hoc veni.

É preciso que evangelize o reino de Deus, para isso é que fui enviado. (Lc 4,43).

Se eu nasci e vim ao mundo, foi para dar testemunho da verdade, para ensinar na verdade. (Jo 18,37).

Eu sou a luz do mundo; enquanto estou no mundo, eu sou a luz do mundo. (Jo 9,5).

Eu sou o caminho, a verdade, a vida. (Jo 14,6).

É o seu Título

E aos seus apóstolos dizia: me chamais Mestre e Senhor; dizeis a verdade, porque o sou. (Jo 13,13).

Um só é o vosso Mestre, é o Cristo. (Mt 23,8).

A Samaritana diz-lhe: Quando o Messias vier, ensinar-nos-á todas as coisas. Jesus responde-lhe: sou eu mesmo que te falo. (Jo 4,25).

O que ensina não o ensina senão de acordo com o Pai que o enviou.

A minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou. (Jo 7,16 ).

Aquele que me enviou é verdadeiro e o que eu ouvi dele, digo-o no mundo. (Jo 8,28).

As palavras que eu vos disse, não as digo de mim próprio, mas meu Pai que está em mim é ele próprio que faz as obras. (Jo 14,10).

Eu falo do que vi em meu Pai, eu, homem, que vos disse a verdade que ouvi de meu Pai. (Jo 8,38).

A palavra que eu vos disse não é minha, mas de meu Pai que me enviou. (Jo 14,24).

Nunca falei por mim próprio, mas meu Pai que me enviou, ele mesmo me prescreveu o que devo dizer e aquilo de que devo falar e eu sei que o seu mandamento é a vida eterna; por isso, o que eu digo, digo-o como meu Pai me ordenou. (Jo 12,49).

Ele conhece Deus-seu-Pai

Ele conhece Deus-Seu-Pai, é o seu Verbo, por consequência, está sempre com ele e nele. (Jo 8,35).

Ninguém viu Deus, mas o Filho único que está no seio do Pai é que no-lo fez conhecer. (Jo 1,18).

Ninguém subiu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho de Deus que está no céu. (Jo 3,13).

Aquele que me enviou está comigo e não me deixou só, porque eu faço sempre o que lhe agrada. (Jo 8,29).

Vós sois cá de baixo; eu sou do alto. Eu não sou deste mundo. (Jo 8,23).

Ele pode, por isso, dizer com verdade: Credes em Deus, crede também em mim. (Jo 14,1).

Quem crê em mim, não crê em mim, mas crê n’Aquele que me enviou. (Jo 12,44).

Em verdade, em verdade vos digo: aquele que escuta as minhas palavras e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, passou da morte à vida. (Jo 5,24).

Ele é, pois, verdadeiramente nosso Mestre. Só ele tem o direito de nos ensinar as verdades eternas. Ele recebeu de Deus a grande função de ensinar os homens Foi enviado para isso. Só ele nos pode instruir, porque só ele conhece Deus e recebeu as ordens para isso.

Escutando-o, nós escutamos o próprio Deus e crendo nele, temos a vida eterna.

É o nosso Mestre.

Os apóstolos não o chamam de outro modo a não ser por Mestre

Quando navegavam sobre o mar e a tempestade ameaçava engoli-los, eles gritavam: Mestre, salva-nos, que vamos perecer. (Lc 8,24).

Quando Jesus pergunta à multidão quem foi aquele que o tocou, Pedro diz-lhe: Mestre, a multidão aperta-vos e vos empurra e perguntais ainda quem vos tocou? (Lc 8,45).

João, falando a Nosso Senhor, diz-lhe: Mestre, vimos um homem que expulsa os demônios e que, no entanto, não está conosco e nós o impedimos. (Lc 9,49).

Os apóstolos, vendo um cego de nascença interrogam Jesus dizendo-lhe: Mestre, quem pecou, ele ou seus pais, para que seja cego? (Jo 9,2).

Quando Jesus diz aos seus apóstolos: regressemos à Judeia, eles dizem-lhe: Mestre, os judeus querem apedrejar-vos e quereis regressar à Judeia? (Jo 11,8).

Tiago e João querem obter um favor de Jesus e dizem-lhe: Mestre, queremos que tudo o que vos pedirmos, o façais. (Mc 10,35).

Ao passar diante da figueira seca, Pedro diz a Jesus: Mestre, eis que a figueira que amaldiçoastes, secou. (Mc 11,21).

Os apóstolos não tendo compreendido o sentido de uma parábola, dizem a Jesus: Mestre, explicai-nos esta parábola. (Mt 15,15).

Vendo as belas pedras do templo, os apóstolos dizem-lhe: Mestre, vê como são belas as pedras e que construção! (Mc 13,1).

Os apóstolos querendo saber o fim dos tempos, dizem-lhe: Mestre, quando acontecerão então estas coisas? (Lc 21,7).

O próprio Judas, quando o saúda para o trair, também lhe diz: Mestre, eu te saúdo. (Mt 26,49).

Enfim, é sempre este título que eles lhe dão porque tinham reconhecido nele este direito de os instruir e de os ensinar que era a grande missão do Messias Salvador.

Os outros também lhe davam este título e não o chamavam de outro modo, de tal maneira a sua palavra tinha autoridade, de tal modo estavam penetrados todos desta grande função do Salvador em relação a eles.

Marta

Quando Marta chama sua irmã para lhe dizer que Jesus estava ali, ela diz-lhe: Maria, o Mestre chama-te. (Jo 11,28).

Madalena

Madalena, reconhecendo Jesus após a ressurreição não tem outro nome nos lábios senão o de Rabboni, Mestre. (Jo 20,16).

Escribas e fariseus

Os escribas e os próprios fariseus não lhe davam outros títulos quando falam dele.

Um escriba quer tornar-se seu discípulo e diz-lhe: Mestre, seguir-te-ei por onde quer que fores. (Mt 8,19).

Os fariseus dizem aos apóstolos: Porque razão o vosso Mestre come com os pecadores? (Mc 2,16).

Os fariseus e os escribas dizem a Jesus: Mestre, queremos ver um sinal. (Mt 12,38).

A multidão, após a multiplicação dos pães, tendo encontrado Jesus que se tinha refugiado em Cafarnaüm dizem-lhe: Mestre, como chegaste aqui? (Jo 6,25).

O pai do lunático tendo trazido o seu filho para obter a sua cura, diz-lhe colocando-se de joelhos: Mestre, trouxe-vos o meu filho. (Mc 9,16).

Os leprosos, levantando a voz, diziam a Jesus: Mestre, tende compaixão de nós. (Lc 17,13).

Os fariseus, levando aos pés de Jesus uma mulher adúltera para a fazer condenar, dizem-lhe: Mestre, esta mulher acaba de ser detida. (Jo 8,4).

Um jovem quer saber de Jesus o que é preciso fazer para ir para o céu e diz: Bom Mestre, que devo fazer para ter a vida eterna? (Lc 18,18).

O cego de Jericó grita: Mestre, que eu veja! (Mc 10,51).

Os fariseus indignados com os aplausos que Jesus recebia, diziam: Mestre, repreende os teus discípulos. (Lc 19,39).

Um doutor da lei interroga Jesus e diz-lhe: Mestre, qual é o maior mandamento? (Mt 22,35).

Era, pois, o título ordinário que se dava a Jesus. Este deve ser também aquele que lhe devemos dar. A sua palavra para nós deve ser a palavra do Mestre, palavra verdadeira, palavra infalível, palavra de Deus.

O Mestre disse: isso basta.

A quem iremos? Vós tendes palavras de vida eterna.

Verba mea spiritus et vita sunt[r].

Aquele que crê em mim tem a vida eterna.

7° Ele é o nosso Chefe

Para nos conduzir é ele que é a nossa cabeça. O nosso primeiro. O nosso condutor. E nós devemos segui-lo.

E tu, terra de Judá, não és a menor entre as cidades de Judá, porque de ti deve sair o chefe que deve conduzir o meu povo. (Mt 2,6).

Nele habita a plenitude da divindade e é ele que é a cabeça (Col 2,10).

Deus falou-nos ultimamente por seu Filho e como ele é o esplendor, a glória, a perfeita imagem da sua substância, ele elevou-o acima dos anjos, porque o seu nome é mais excelente que o deles. (Heb 1,2-4).

Ele está antes de todos. (Col 1,17).

Deus elevou-o acima de todas as coisas e deu-lhe um nome acima de todos os nomes. (Fil 2,9).

Deus pôs todas as coisas debaixo de seus pés. (Heb 1,13).

e deu-o como chefe a toda a Igreja. (Ef 5,23).

Jesus é o chefe da Igreja que é o seu corpo. (Ef 5,23).

Quero que saibais que o Cristo é o chefe de todo o homem. (1 Cor 11,3).

[Que] nós cresçamos em todas as coisas em Jesus Cristo, como em nosso chefe. (Ef 4,15).

Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos, a fim de que em tudo tenha a Primazia, porque agradou ao Pai que residisse nele toda a plenitude. (Col 1,17).

Quero que saibais que Jesus Cristo é a cabeça de todo o homem. (1 Cor 11,3).

Ele é a cabeça da Igreja. (Ef 5,23).

É na cabeça que se encontra a inteligência, o olho que vê, o ouvido que ouve, a palavra que ordena. Nós somos seus membros.

Pertence a ele conduzir-nos.

Ego sum via[s].

Segui-me.

Aquele que me segue não anda nas trevas.

Não tenhamos outro chefe senão Ele.

8° Ele é o nosso Modelo

Ele é a própria perfeição. Ele é a imagem do Deus invisível. (Col 1,15).

A imagem de Deus. (2 Cor 4,4).

A figura da sua substância. (Heb 1,3).

Splendor patris[t].

Speculum[u], quem me vê, vê meu Pai.

Ao vê-lo, pois, nós vemos o Deus invisível com todas as suas perfeições.

Ao imitá-lo, estamos certos de agir com sabedoria.

Eis o meu Filho bem-amado, em quem pus as minhas complacências. (Mt 17,5).

Ele tomou, na terra, a forma de homem, para nos dar o exemplo.

Dei-vos o exemplo para que, como eu fiz, vós façais também. (Jo 13,15).

Sicut et ipse ambulavit et nos debemus ambulare[v].

Imitatores mei estote sicut et ego Christi[w]

Ele mesmo é a própria perfeição.

Ego sum via, caminho.[109]


9° É o Princípio e o Criador de todas as coisas

Quando os judeus lhe perguntam quem ele é, responde: o Princípio, eu que vos falo. (Jo 8,25).

Foi por ele que tudo foi feito no céu e na terra, as coisas visíveis e as invisíveis, os tronos, as dominações, os principados, as potestades, tudo foi criado por ele e para ele. (Col 1,16).

No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus. Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito. (Jo 1,1).

Ele é o princípio, o primogênito, porque foi do agrado do Pai que nele residisse toda a plenitude. (Col 1,18-19).

Só há um Deus, que é o Pai do qual todas as coisas têm a sua origem e que nos fez para ele; não há senão um único Senhor que é Jesus Cristo, por quem todas as coisas foram feitas e por quem nós somos tudo o que somos. (1 Cor 8,6).

10° Ele é o fundamento de todas as coisas

Quer dizer que todas as coisas devem sustentar-se nele.

Ninguém pode colocar outro fundamento senão aquele que foi posto, e este fundamento é Jesus Cristo. (1 Cor 3,11).

Omnia in ipso constant. (Col 1,17).

Tudo repousa sobre ele, tudo se apoia nele, nada de sólido pode subsistir sem ele.

Fostes edificados sobre o fundamento dos apóstolos, unidos a Jesus Cristo que é ele próprio a pedra angular, sobre a qual todo o edifício estando colocado, se eleva e se desenvolve para formar um templo. (Ef 2,19).

Andai pelos caminhos de Jesus Cristo Nosso Senhor, enraizados e edificados sobre ele, como sobre o vosso fundamento. (Col 2,6).

Tirai Jesus Cristo da terra, que fundamento sólido resta? Nenhum. Não ficam senão homens; ora, os homens não podem ser fundamentos sólidos se não têm Deus para apoio deles próprios.

Nisi Dominus aedificaverit domum, in vanum laboraverunt qui aedificant eam.

Nisi Dominus custodierit civitatem, frustra vigilat qui custodit eam[x].

Aqueles, pois, que queiram construir, edificar o que quer que seja, sem Jesus Cristo, enganam-se e não constroem senão ruínas.

Ele é a pedra que se tornou a pedra angular de todo o edifício de Deus, no céu e na terra.

Quem cair sobre esta pedra quebrar-se-á e aquele sobre quem ela cair será esmagado. (Mt 21,44).

Comparação de que Jesus Cristo se serve no final do seu sermão da montanha: aquele que escuta a sua palavra e a põe em prática, é semelhante a um homem que constrói sobre a rocha, nada poderá demolir esta casa.

Porém, aquele que escuta e não faz, constrói sobre a areia: a sua casa cairá.

Importa, pois, construir sobre Jesus Cristo, sobre a sua palavra e pô-la em prática, e a nossa casa será construída sobre a rocha[110].

11° Ele é a raiz donde devemos tirar a seiva que deve dar a vida

Numa árvore, é a raiz, que se não vê que é a parte mais essencial da árvore. É ela que dá a vida a toda a árvore. É ela que envia a seiva a todas as folhas e as faz viver.

Assim também Nosso Senhor.

Ele é para nós esta raiz, esta seiva vivificante que nos comunica a vida espiritual e divina.

Eu sou a videira, vós sois os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele, dá muitos frutos, porque sem mim nada podeis fazer. (Jo 15,5).

Eu sou o pão vivo que desceu dos céus. Se alguém come deste pão, viverá eternamente. (Jo 6,51).

Aquele que me recebe viverá por mim.

Nele está a vida e a vida era a luz dos homens. (Jo 1,4).

O pão vivo é aquele que desceu do céu e dá a vida ao mundo. Sou eu o pão da vida. Quem vem a mim nunca mais terá fome. Quem crê em mim nunca mais terá sede. (Jo 6,35).

Andai pelos caminhos de Jesus Cristo, enraizados nele e edificados sobre ele, como sobre o vosso fundamento. (Col 2,6).

É necessário que, praticando a verdade pela caridade, cresçamos em Jesus Cristo, nosso chefe, por quem todo o corpo, assim estreitamente unido por cada ligação dependente, aumenta e se edifica na caridade, segundo a eficácia e a medida de cada membro. (Ef 4,15).

12° É o centro para o qual tudo deve convergir

Numa circunferência, há um centro donde partem todos os raios e para o qual todos os raios se dirigem.

É o centro onde tudo se encontra e donde tudo parte.

Jesus Cristo é também o centro onde tudo se encontra e donde tudo parte.

Para ir ao céu, é preciso passar por este centro.

O presépio, o calvário, o tabernáculo não são os centros onde se devem encontrar todos os homens para receber a vida, a paz, e partir de novo para ir a Deus?

É o que São Paulo nos explica: Deus derramou sobre nós as riquezas da sua graça com abundância, enchendo-nos de inteligência e de sabedoria, para nos fazer conhecer o mistério da sua vontade, fundado sobre o seu beneplácito, segundo o qual ele mesmo se propôs, após o cumprimento dos tempos marcados,

reunir tudo em Jesus Cristo, tudo o que há no céu e na terra. E é nele que fomos chamados. (Ef 1,1-10).

É ele a nossa paz, quem dos dois povos não fez senão um, rompendo na sua carne o muro de separação, esta inimizade que os dividia e formar nele mesmo um só homem destes povos, fazendo a paz entre eles para os reconciliar com Deus pela sua cruz, unindo-os ambos num só corpo.

É por ele que temos acesso uns e outros junto do Pai num mesmo espírito. Vós não sois mais estrangeiros, nem hóspedes, mas concidadãos. (Ef 2,19).

Já não há nem grego, nem cita, nem bárbaro. (Col 3,11)

Não somos senão um só em Jesus Cristo.

In ipso. Per ipso et cum ipso[y].

Omnia vestra sunt. Vos autem Christi.

Christus autem Dei[z].

Não há mais judeus, nem gentios, nem escravos, nem livres, nem homens nem mulheres: vós todos não sois senão um só em Jesus Cristo. (Gál 3,28).

Admirável fusão que nos reúne todos em Jesus Cristo, único centro no qual devemos fundir-nos todos por inteiro.

13° Ele é o fim para o qual tudo deve tender

Ele é o nosso fim, deve ser o fim dos nossos pensamentos, o fim dos nossos desejos, o fim das nossas ações, o fim da nossa vida e aquele para o qual devemos tender com todas as forças da nossa alma.

É em Jesus Cristo que todas as promessas de Deus têm a sua verdade e é também por ele que elas se cumprem todas, para honra de Deus e nossa glória. (2 Cor 1,20).

Um dia compareceremos diante dele para lhe dar conta de todas as nossas ações; então, será ele mesmo a nossa recompensa, se nós o amamos e o servimos.

Aquele que crê em mim, tem a vida eterna.

Ver Jesus Cristo, possuir Jesus Cristo, será a nossa felicidade eterna.

Quer vivamos, quer morramos, pertencemos a Jesus Cristo. (Rom 14,8).

Quem não vai para Jesus Cristo, vai para a morte.

É necessário, pois, que ele seja o fim dos nossos trabalhos, das nossas ações, o fim de toda a nossa vida, nós lhe pertencemos a todos os títulos.

14° Ele é a ressureição e a vida

Primeiramente a ressurreição neste mundo, fazendo-nos passar da morte do pecado à vida da graça; a ressurreição, chamando-nos, um dia, do túmulo para nos dar a vida eterna. Ressurreição das almas, ressurreição dos corpos; vida espiritual, vida eterna.

Eu sou a ressurreição e a vida.

Aquele que crê em mim, ainda que venha a morrer, viverá e o que vive e crê em mim, não morrerá jamais. (Jo 11,25).

Em verdade, em verdade vos digo: o que escuta a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna e não será julgado, mas passou da morte à vida. (Jo 5,24).

O Pai levanta os mortos e dá-lhes a vida, assim também o Filho dá a vida a quem quer. (Jo 5,21).

Como o Pai tem a vida em si mesmo, assim também deu ao Filho o ter a vida em si mesmo.

Chegou a hora em que os mortos escutarão a voz do Filho de Deus e os que a ouvirem viverão. (Jo 5,25).

Tal como todos morrem em Adão, todos voltarão à vida em Jesus Cristo. (1 Cor 15,22; Ef 2,1).

Eu o ressuscitarei no último dia. (Jo 6,40).

Eu sou a vida.

Eu sou o pão vivo, descido do céu. Aquele que come deste pão tem a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia.

Resumo dos títulos e das grandezas de Nosso Senhor Jesus Cristo

Jesus Cristo é o verbo eterno.

Este verbo divino que estava desde o início em Deus e que, gerado pelo Pai, é eterno como o Pai e Deus também como Ele.

Por Ele é que todas as coisas foram feitas e sem ele nada foi feito. Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens.

Ele veio à terra para iluminar o mundo com a sua divina luz.

Ele é a verdadeira luz, porque ele próprio é o sol do alto, o raio da luz eterna,

o esplendor do Pai,

a figura da sua substância infinita,

a imagem do Deus invisível,

a sabedoria eterna,

a beleza infinita do céu tornada visível na terra.

É o espelho no qual Deus se contempla e ele mesmo se encontra reproduzido.

É esta luz divina que nos abre os olhos à verdadeira luz, para nos fazer conhecer Deus e no-lo fazer amar.

Ele foi-nos dado para ser

a nossa sabedoria,

a nossa justiça,

a nossa santificação,

a nossa redenção,

Ele é o caminho, a verdade, a vida.

Ele é o nosso rei, o nosso mestre, o nosso chefe e o nosso modelo.

Ele é o princípio e o criador de todas as coisas, o fundamento sobre o qual tudo deve assentar, a raiz donde devemos tirar a seiva que nos deve dar a vida, o centro para o qual tudo deve convergir, o fim para o qual tudo deve tender.

Ele é, finalmente, a ressurreição e a vida.

Eis aí Jesus Cristo!

Ó Verbo! Ó Cristo!

Como sois belo! Como sois grande!

Quem será capaz de vos conhecer? Quem vos poderá compreender?

Fazei, ó Cristo, que eu vos conheça e vos ame.

Pois que sois a luz, deixai vir um raio desta divina luz

sobre a minha pobre alma, a fim de que eu vos possa ver e compreender.

Ponde em mim uma grande fé em vós, a fim de que todas as vossas palavras sejam para mim outras tantas luzes que me iluminem e me façam ir a vós e vos seguir em todos os caminhos da justiça e da verdade.

Ó Cristo! Ó Verbo!

Vós sois meu… e meu só e único Mestre.

Falai, eu quero escutar-vos e pôr em prática a vossa palavra. Quero escutar a vossa divina palavra, porque sei que ela vem do céu. Quero escutá-la, meditá-la, pô-la em prática, porque, na vossa palavra está a vida, a alegria, a paz e a felicidade.

Falai, vós sois meu Senhor e meu Mestre e não quero escutar-vos senão a vós[111].

V. Apego A JESUS CRISTO

Esta parte expõe os efeitos do conhecimento de Jesus Cristo. Naquele que se entrega a ele, este conhecimento produz necessariamente o amor[112].

Pode-se comparar as primeiras páginas[113] aos graus do amor em São João da Cruz[114] ou aos graus da humildade de Santo Inácio de Loyola[115].

Este capítulo obriga-nos a dar um sentido espiritual a todo o livro. Quer dizer que todas as exigências da vida evangélica expostas a seguir não são concebíveis senão como frutos visíveis de uma graça em si mesma invisível. E não se trata apenas de um amor consequente consigo próprio, trata-se de uma graça especial que vem fazer frutificar a graça[116].

O resultado primordial ao qual deve chegar o conhecimento de Jesus Cristo é uma atitude de simplicidade. Esta simplicidade evangélica é a disposição requerida para levar a cabo, como homem espiritual, o ministério sacerdotal[117].

O Padre Chevrier esboça esta concepção espiritual, carismática, poderia dizer-se, do ministério, através das explicações, em parte contestáveis, sobre os bons sacerdotes, os maus e os perfeitos. Pôs-se em nota de rodapé um texto mais antigo em que ele aborda a questão pela distinção clássica entre as duas vias, a dos preceitos e a dos conselhos.

Ainda aqui, trata-se de um esforço de teologia especulativa em que ele não está à vontade. Tenta afastar as objeções que ouviu e que é necessário detectar por detrás do seu texto: se quereis manter-vos no plano do clero secular, fazei como todos os outros, caso contrário, dirigi-vos a uma congregação religiosa[118].

Uma certa impaciência contra tais objeções o faz dizer coisas inexatas a respeito dos religiosos


que não se reconhecerão nelas[119]. O Concílio Vaticano II renovou a maneira de abordar esta questão[120].

Importa, pois, não se ficar na refutação mais ou menos hábil e um tanto polêmica, mas sim na convicção que ele quer comunicar: a identidade do sacerdote feito para viver no meio dos homens, é por si mesma um convite à perfeição evangélica.

Conhecer Jesus Cristo é tudo

Tudo se encerra no conhecimento de Deus e de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Haec est vita aeterna ut cognoscant te solum Deum verum et quem misisti Jesum Christum[aa].

Jesus Cristo é o Verbo eterno,

é a palavra viva do Pai sobre a terra,

é a sua ciência e a sua sabedoria.

Nele estão todos os tesouros da ciência e da sabedoria.

Assim também São Paulo não deseja outra coisa aos seus fiéis que não seja conhecer Jesus Cristo.

“Dobro os meus joelhos diante do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, a quem pertence toda a paternidade no céu e na terra. A fim de que vos conceda, segundo as riquezas da sua glória, que sejais fortalecidos pelo seu Espírito no homem interior, faça que Jesus Cristo habite pela fé nos vossos corações, de tal modo que enraizados e fundados na caridade, possais compreender com todos os santos a largueza, a longitude, a altura e a profundidade deste mistério e conhecer o amor de Jesus Cristo para conosco, que excede todo o conhecimento, a fim de que sejais repletos dos dons de Deus em toda a sua plenitude. Àquele que pelo poder com que atua em nós pode fazer infinitamente mais do que nós pedimos e de tudo o que possamos pensar, a ele glória na Igreja por Cristo Jesus, pelos séculos dos séculos”. (Ef 3,14).

Nenhum estudo, nenhuma ciência deve ser preferida àquela.

É a mais necessária, a mais útil, a mais importante, sobretudo para aquele que quer ser sacerdote, seu discípulo, porque só este conhecimento pode fazer os sacerdotes. As outras ciências não são senão acessórias e de circunstâncias.

Quem encontrou Jesus Cristo, encontrou o maior tesouro

O resto é nada.

O céu e a terra passarão, porém as minhas palavras não passarão.

Encontrou a sabedoria, a luz, a vida, a paz, a alegria, a felicidade na terra e no céu, o fundamento sólido sobre o qual pode edificar; o perdão, a graça, encontrou tudo.

Super aurum et topazion[bb].

(qui me invenerit inveniet vitam)[cc].

Aquele que crê em mim, tem a vida eterna.

Nunca mais terá fome, nunca mais terá sede.

Não morrerá jamais e ainda que morra, viverá.

Eu sou o caminho, a verdade e a vida.

Vinde a mim vós todos que andais fatigados e eu vos aliviarei.

Não quereis vir a mim para terdes a vida? – dizia ele aos judeus.

Ut vitam habeant et abundantius habeant[dd].

Não coloca nada acima de Jesus Cristo

Porque Jesus Cristo é tudo para ele.

São Paulo exprime-o muito bem: o que, antes da minha conversão, era para mim um ganho, considerei-o, agora, por Jesus Cristo, como uma perda. Digo mais, tudo me parece uma perda ao lado desta alta ciência de Jesus Cristo, meu Senhor, por amor do qual me privei de todas as coisas, considerando-as como lixo “stercora”, a fim de poder ganhar Jesus Cristo, conhecer Jesus Cristo com a força da sua ressurreição e a participação nos seus sofrimentos, sendo configurado com a sua morte. (Fil 3,7).

Não quero saber outra coisa senão Jesus Cristo e Jesus Cristo crucificado. (1 Cor 2,2).

Deixa tudo para possuir Jesus Cristo

Porque Jesus Cristo é tudo para ele e nada coloca acima de Jesus Cristo.

O reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido num campo; aquele que o encontrou esconde-o e alegre por tê-lo encontrado, vai, vende tudo o que tem e compra o campo para o possuir. (Mt 13,44).

O reino dos céus é semelhante a um negociante que procura pedras preciosas;

ora tendo encontrado uma preciosa, foi-se embora, vendeu tudo o que tinha e comprou-a para a possuir. (Mt 13,45).

Foi o que os apóstolos fizeram quando encontraram Jesus Cristo: abandonaram as suas redes e os parentes e seguiram-no. (Mc 1,38). E tendo deixado tudo, seguiram-no. (Lc 5,11).

Os apóstolos disseram a Jesus: deixamos tudo e te seguimos. (Lc 18,28).

Não queira agradar senão a Jesus Cristo

Porque ele é a sua alegria, a sua felicidade, o seu Mestre, o seu Deus.

Desejo agora, – diz São Paulo – ter a aprovação dos homens ou de Deus?

Tenho como objetivo agradar? Se eu quisesse ainda agradar aos homens, não seria servidor de Jesus Cristo. (Gál 1,10).

O conhecimento de Jesus Cristo produz necessariamente o amor e quanto mais conhecemos Jesus Cristo, a sua beleza, a sua grandeza, as suas riquezas, mais o nosso amor cresce por ele e mais lhe procuramos agradar e mais atiramos para longe de nós tudo o que não leva a Jesus Cristo.

Tal é o que fazia São Paulo dizer: se alguém não ama Jesus Cristo, seja anátema, (1 Cor 16,22) e considerava como lixo e estrume tudo o que o desviava de Jesus Cristo.

O amor de Jesus Cristo nos separa de tudo o que não tende para ele, de tudo o que não vai para ele; mesmo nos nossos pais, nos nossos amigos, nos nossos próximos, não podemos suportar qualquer coisa que não leve à glória e ao amor de Jesus Cristo e dizemos como o próprio Jesus Cristo a Pedro que não pensava segundo Deus: retira-te, Satanás, és para mim um escândalo.

Não teme desagradar aos homens e ao mundo para agradar a Jesus Cristo.

Como os santos: São Francisco de Assis.

Por amor a Cristo não teme passar por louco.

Que ninguém se engane a si mesmo, diz São Paulo aos fiéis. Se algum dentre vós parece sábio segundo o mundo, que se torne louco para vir a ser sábio.

Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus, conforme está escrito: surpreenderei os sábios nas suas próprias artimanhas; e em outro lugar: o Senhor conhece os pensamentos dos sábios e sabe que são vãos. Que ninguém coloque a sua glória nos homens. (1 Cor 3,18).

Nós somos loucos por causa de Jesus Cristo; vós sois sábios em Jesus Cristo. Nós somos fracos; mas vós sois fortes. Vós sois honrados; nós somos desprezados. (1 Cor 4,10).

Nesta parte, São Paulo distingue as duas espécies de pessoas ou sacerdotes que

são de Jesus Cristo: os que agem um pouco segundo o mundo e os que pertencem inteiramente a Jesus Cristo.

O mundo não pode receber Jesus Cristo, o seu espírito. (Jo 14,17).

Quanto a mim, a Deus não agrada senão que eu me glorifique em nenhuma outra coisa a não ser na cruz de Jesus Cristo, porque o mundo foi crucificado para mim e por quem estou crucificado para o mundo. (Gál 6,14).

Aquele que é de Jesus Cristo deve pôr de lado inteiramente a estima do mundo, da glória do mundo. Que o mundo pense o que quiser, pouco me importa; que me olhe como um louco, pouco me importa, eu sou de Jesus Cristo. Sigo-o. Sigo as suas pegadas, qui pie volunt vivere in Christo persecutionem patientur[ee].

Nada o poderá separar de Jesus Cristo

São Paulo, após ter falado do que Jesus Cristo fez pelos seus eleitos, exclama: quem nos poderá separar do amor de Jesus Cristo? A aflição, as angústias, a fome, a nudez, o perigo, a perseguição, a espada, segundo o que está escrito: todos os dias somos entregues à morte por vós, somos olhados como ovelhas destinadas ao matadouro. Porém, no meio de todos estes males, permanecemos vitoriosos por aquele que nos amou.

Porque estou certo que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem as coisas presentes nem as futuras, nem o poder dos homens, nem tudo o que há de mais alto ou de mais profundo, nem nenhuma criatura nos poderá separar do amor de Deus que está em Jesus Cristo Nosso Senhor. (Rom 8,35).

Toda a sua felicidade está em seguir Jesus Cristo.

Ouviu e compreendeu esta palavra do Mestre: segui-me.

Compreendeu esta outra palavra: não tendes outro mestre senão Cristo. Ego magister. O Mestre disse-o.

Aquele que me ama, guarda a minha palavra e meu Pai o amará e nós viremos a ele e faremos nele a nossa morada.

Compreendeu estas outras palavras: exemplum dedi vobis ut quemadmodum ego feci ita et vos faciatis[ff].

E quer conformar-se à imagem de Jesus, seu Mestre e seu Modelo. (Rom 8,29).

E diz com generosidade e sacrifício: Senhor, seguir-te-ei por onde quer que fores.

Senhor, estou pronto a dar a vida por ti.

Vamos e morramos com ele.

Quando se ama alguém sinceramente, se é feliz em segui-lo, em caminhar nos seus passos; gosta-se de o ver, de o ouvir e faz-se tudo para o imitar.

Não vive senão para Jesus Cristo

A caridade impulsiona-me, considerando que se um só morreu por todos, consequentemente todos morreram, e que Jesus morreu por todos a fim de que os que vivem, não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que morreu e que ressuscitou por eles. (2 Cor 5,14).

Já não sois vossos, vós sois de Jesus Cristo que vos resgatou. (1 Cor 6,19).

Nenhum de nós vive para si mesmo e nenhum de nós morre para si mesmo; mas, quer vivamos, quer morramos, morremos para o Senhor; portanto quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor.

Por isso mesmo é que Jesus Cristo morreu e ressuscitou, para ter uma soberania sobre os vivos e os mortos. (Rom 14,7).

Jesus Cristo é a sua vida

Mihi vivere Christus est[gg].

Já não sou que vivo, é Cristo que vive em mim. (Gál 2,20).

Jesus Cristo deve ser a nossa vida, quer dizer que Jesus Cristo deve ser o nosso pensamento habitual e constante, que para ele se dirijam, dia e noite, todos os nossos desejos, os nossos afetos.

A mãe vive para o seu filho,

a esposa para o seu esposo, o esposo para a sua esposa,

o amigo para o seu amigo,

o avarento para o seu dinheiro,

o egoísta para si mesmo,

o negociante para o seu comércio.

Esta é a vida de cada um destes seres, põe a sua vida no que procura, no que ama e, quando está separado do seu objeto, chora, lamenta, geme até que se junte aos objetos do seu amor.

Para nós, a nossa vida é Jesus Cristo.

Num relógio há uma mola que faz mover todas as rodas e dá a hora.

É Jesus Cristo que deve ser em nós o recurso invisível, escondido e que deve fazer mover todo o nosso ser e nos fazer mostrar sempre o próprio Jesus Cristo.

Onde está o vosso tesouro, aí também está o vosso coração. Se Jesus Cristo é o nosso tesouro,

o nosso coração e os nossos pensamentos estarão sempre com ele.

Mihi vivere Christus est.

Cupio dissolvi et esse cum Christo[hh].

Não tem outro pensamento, outra ocupação senão Jesus Cristo. Jesus Cristo ocupa, toma todos os seus pensamentos.

Tudo isso é muito belo, compreendeis todos?

Non omnes capiund verbum istud sed quibus datum est[ii].

Quis potest capere capiat[jj].

Que aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça. (Mc 4,23).

Verbum velatum[kk]. Quando Jesus Cristo fala da sua paixão aos seus apóstolos, as palavras que ele lhes dizia eram: verbum velatum.

Mesmo a Santíssima Virgem e São José não compreenderam o que o Menino Jesus lhes dizia no momento em que lhes falava: Et ipsi non intellexerunt verbum quod locutus est ad eos. (Lc 2,50).

Para o seguí-lo requer-se uma graça especial de Deus

Ninguém pode vir a mim se meu Pai não o atrai. (Jo 6,44).

Importa que seja o próprio Deus quem nos faça compreender a sua palavra e o que ele próprio disse. Porque ninguém sabe o que há em Deus, a não ser o espírito de Deus. O homem animal e carnal não concebe as coisas que são do espírito de Deus, parecem-lhe uma loucura e não as pode compreender porque devem ser julgadas mediante uma luz sobrenatural. (1 Cor 2,11).

Nós não somos capazes, por nós mesmos, de ter um pensamento bom; é Deus que nos torna capazes disso. (2 Cor 3,5).

É necessário que seja o Espírito Santo que nos dê o sentido das coisas espirituais e divinas e que nos descubra Jesus Cristo, que nos dê olhos para ver, ouvidos para ouvir e, sobretudo, um coração para sentir e nos atrair a ele.

E se sentimos ou compreendemos qualquer coisa, saber que todo o bom sentimento, todo o bom pensamento de fé e de amor vêm de Deus e dar-lhe graças por eles.

É o que Jesus dá a entender a Pedro quando fizera a sua profissão de fé em Jesus Cristo, ao dizer: Eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo.

Então Jesus diz-lhe: Tu és feliz, Pedro, porque não foi nem a carne nem o

sangue que te revelaram estas coisas, mas meu Pai que está nos céus. (Mt 16,17).

Ego plantavi, diz São Paulo, Apollo rigavit, sed Deus incrementum dat. Neque qui plantat est aliquid, neque qui rigat, sed qui incrementum dat Deus[ll].

Assim pois, podemos fazer e dizer coisas bonitas, se Deus não faz frutificar em nós o que dizemos ou fazemos, tudo isso não serve de nada. No entanto, se há algumas plantas perdidas, ordinariamente nem todas o são e nem sempre em todas elas o hortelão vê o seu trabalho perdido. Há que esperar que conosco também seja assim.

É necessário fazer-se alguma violência, rezar, pedir, fazer penitência.

O reino dos céus foi anunciado e cada qual deve fazer violência para entrar nele. (Lc 16,16).

O reino dos céus sofre violência e só os que se fazem violência entram nele. (Mt 11,12).

Sentis nascer em vós esta graça?

Quer dizer, sentis uma atração interior que vos empurre para Jesus Cristo?

Um sentimento interior que é cheio de admiração por Jesus Cristo, pela sua beleza, sua grandeza, a sua bondade infinita que o leva a vir a nós, sentimento que nos toca e nos leva a dar-nos a Ele.

Um pequeno sopro divino que nos impulsiona, que vem de cima, ex alto, uma pequena luz sobrenatural, que nos ilumina e nos faz ver um pouco Jesus Cristo e a sua beleza infinita.

Se sentimos em nós este sopro divino, se nós percebemos uma pequenina luz, se nos sentimos atraídos por pouco que seja por Jesus Cristo, ah!, cultivemos esta atração, façamo-la crescer com a súplica, a oração, o estudo, a fim de que cresça e dê frutos.

E digamos com o esposo do Cântico: trahe me post te, curremus in odorem unguentorum tuorum[mm].[121]


Se temos esta graça, devemos sentir em nós o chamado de Jesus Cristo.

Vem. Segue-me

Eu sou a Sabedoria. Eu sou o teu Mestre.

Ego Magister.

Eu sou o Caminho, a Verdade, a Vida.

Segue-me. Eu sou a luz do mundo. Aquele que me segue não anda nas trevas.

Vim trazer um fogo à terra e que desejo eu, senão que ele arda?

A glória de meu Pai consiste em que vos torneis meus discípulos e dês muito fruto.

O discípulo não é mais do que o Mestre; basta-lhe ser como o seu Mestre.

Dei-vos o exemplo, para que, como eu fiz, vós façais também.

Nolite timere, ego sum[nn].

Venite ad me omnes, jugum meum suave est et onus meum leve[oo].

Chama-nos para que?

À perfeição.

Há três classes de cristãos no mundo: os bons, os maus e os perfeitos.

Há também três classes de sacerdotes na Igreja: os bons, os maus e os perfeitos.

Os bons são os que cumprem o seu dever de sacerdote, que seguem as leis da Igreja, dizem a sua missa, o seu breviário, pregam no momento próprio, evitam o pecado mortal, o escândalo, fazem o bem que se lhes apresenta; numa palavra, não há nada a dizer da sua conduta, são inclusive, edificantes.

Os maus são os que vivem no pecado e na indiferença perante o seu dever, negligenciam as obrigações sagradas do seu ministério e, por vezes, dão com muita frequência, infelizmente, escândalo na Igreja. Há os maus escandalosos que são a vergonha da Igreja. Há também os maus escondidos, que vivem no pecado, sem ser conhecidos e nem por isso fazem menos mal às almas pela sua negligência e pelo seu esquecimento da oração e de toda a vida espiritual.

Os perfeitos, ou melhor, os que tendem à perfeição, que procuram seguir Nosso Senhor mais de perto, que têm o desejo de trabalhar para a glória de Jesus Cristo, que sentem neles o seu amor e desejam imitá-lo na sua pobreza, na sua doçura, na sua caridade, no seu zelo pelas almas, nos seus sofrimentos, na sua cruz.

Há uma grande diferença entre os bons padres e os que procuram ser perfeitos; os bons permanecem neste [estado] bom mas não procuram seguir Nosso Senhor de perto, imitá-lo seriamente; recusam mesmo a pobreza,

a entrega e o sacrifício; preocupam-se muito com a sua pessoa e não querem opor-se demasiado ao mundo e aos gostos dos seus colegas, enquanto que aquele que procura a perfeição não vê senão Jesus Cristo, ama Jesus Cristo e coloca Jesus Cristo primeiro que tudo. Ama e procura imitar o mais fielmente possível aquele que ama.

É, pois, a esta perfeição que Jesus Cristo nos chama e não apenas a um estado bom, que é o estado da maioria.

A perfeição é o estado de um pequeno número. Há poucos que o seguem assim.

No entanto, um sacerdote santo faz mais bem do que cem somente bons.

Um sacerdote santo dá mais glória a Deus do que cem dos outros e converte mais almas para Deus do que outros cem convertam por si sós[122].

As graças particulares de que temos sido objeto no-lo provam bastante claramente. Graça de escolha, vocação particular, cuidados muito particulares da Providência, espirituais e temporais, tudo nos compromete a seguir Jesus Cristo na sua vida perfeita.

Aliás, este é o nosso objetivo e nada mais peço do que respondais ao apelo de Nosso Senhor e ao nosso.

Se escutais a sua voz.

Não endureçais o vosso coração, não fecheis o ouvido à sua voz.

Devemos respondê-lo com alegria

Ecce adsum[pp]. Ego tuus sum[qq]. Ecce ego[rr].

Falai, Senhor, que o vosso servo escuta. Senhor, a quem irei? Vós tendes palavras de vida eterna.

Vós sois a minha luz, sois o meu caminho, a minha vida, a minha sabedoria e o meu amor.

Seguir-te-ei, Senhor, para onde quer que vás.

Estou pronto a morrer contigo, darei a minha vida por ti, irei até ao cárcere, até à morte.

Vós sois o meu rei, o meu chefe e o meu mestre.

Senhor, se tendes necessidade de um pobre, eis-me aqui!

Se tens necessidade de um louco, eis-me aqui!

Eis-me aqui, ó Jesus, para fazer a vossa vontade. Sou vosso! Ego tuus sum.

Escutemos o primeiro aviso que Jesus Cristo nos dá a fim de escutar a sua Palavra e chegar ser seu verdadeiro discípulo.

Em verdade vos digo: se não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino de Deus. (Mt 18,3).

Quem não receber o reino de Deus como uma criança, não entrará nele. (Mc 10,15).

Eu vos dou graças, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondestes estas coisas aos sábios e prudentes deste mundo e as revelastes aos pequenos e humildes. (Mt 11,25).

Deixai vir a mim as criancinhas, porque é delas o reino dos céus! (Mc 10,14).

Bem aventurados os pobres de espírito porque é deles o reino dos céus! (Mt 5,3).

Aquele que se humilhar e se tornar como uma criança, esse será grande no reino dos céus. (Mt 18,3).

Explicação das palavras precedentes

É preciso receber o reino de Deus, isto é, a palavra de Jesus Cristo que deve estabelecer em nós o reino de Deus. Receber esta palavra como uma criança recebe a palavra do seu mestre, com atenção, submissão, respeito e amor.

Atenção para compreender o que nos diz, compreendê-lo, captá-lo.

Submissão, sem discutir, tal qual é. Não temos que discutir com os nossos mestres; a eles compete ensinar-nos, a nós escutá-los e aceitar.

Submissão de criança, eis o que nos recomenda, sobretudo, Nosso Senhor na audição da sua palavra.

Que havemos de discutir com Jesus Cristo, o divino Mestre? Ou quereis ser perfeitos, ou não. Se não o quereis, dizei simplesmente: não quero seguir este caminho, mas ficar no caminho inferior e acabou-se.

Mas, se quereis ser perfeitos, aceitai a sua divina palavra, tal qual no-la dá e procurai pô-la em prática com a graça de Deus e não façais como o jovem rico do Evangelho a quem Jesus Cristo diz: se queres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá aos pobres; ele discute dentro de si mesmo e não aceita a palavra.

Esta submissão de espírito à palavra de Jesus Cristo é absolutamente necessária para entrar no reino dos céus onde não entram senão as almas privilegiadas do bom Mestre[123].

Escutar como uma criança.

Uma criança vai à aula para aprender e não para discutir, procura compreender o que se lhe diz. Não vai para discutir e raciocinar, mas para aceitar. Se não compreende, interroga não para discutir, mas para se instruir e aceitar.

Que se diria de uma criança, de um ignorante, que discutisse com um astrónomo ou um geógrafo sobre a posição das estrelas ou de um lugar terrestre, quando o sábio lhe diz: é assim?

O mesmo se diga de nós com Jesus Cristo, não podemos discutir com ele sobre o que nos ensina.

A criança recebe, aceita a palavra do mestre, ela entra no seu coração como o dedo na cera fundida, recebe a palavra.

Enquanto que aqueles que não são crianças e querem discutir, raciocinar, escutam a palavra mas não a recebem. Faz como uma pedra que cai sobre uma outra pedra, salta e volta ao lugar donde partiu[124].

Há espíritos subtis, estreitos, esquisitos, embirrentos,

que encontram dificuldades por todo o lado e raciocinam sobre tudo, não aceitam nada senão aquilo que vai com eles, lhes convém e entra no seu espírito[125].

Nada é mais oposto ao espírito de Deus e a este título de criança que Nosso Senhor pede para entrar no seu reino.

Aquele que é de Deus escuta a minha palavra. Se não escutais a minha palavra, é porque não sois de Deus, dizia Nosso Senhor aos judeus.

Eles não escutaram a palavra de Deus, não a recebiam, não a escutavam senão para discutir e raciocinar sobre esta palavra e, inclusive, procurar surpreendê-lo para o acusar e o condenar.

As crianças não têm ainda paixões, não encontram ainda oposição à palavra de Deus nas suas almas jovens, aceitam-na simplesmente, sem oposição.

Nada é mais oposto a esta submissão de espírito do que as nossas pequenas paixões[126].

A palavra de Deus é tão elevada, tão pura, tão celeste, tão acima de nós que, quando a ouvimos, as nossas mil pequenas paixões se levantam e se revoltam contra ela, porque se encontram em oposição direta com esta mesma palavra que as condena e as destrói.

O nosso coração e o nosso espírito gritam.

A nossa preguiça, a nossa avareza, a nossa negligência, o desejo do bem-estar, das suas comodidades, o orgulho, a procura de si, das suas satisfações, tudo isso se levanta ao mesmo tempo contra esta divina palavra e trata-a como exagerada, impossível, que o Evangelho é uma loucura e que não é possível praticá-lo.

Então, diz-se que não há que ser exagerado, que há que ter prudência, que o Evangelho não é bom senão para um pequeno número, só para os santos, que é demasiado difícil chegar a ele[127].

Então escuta-se com precaução e reserva e, a pretexto da prudência, deixa-se o Evangelho para seguir a sua pequena razão.

Isto vê-se todos os dias no que diz respeito à pobreza, à penitência, ao sacrifício, à entrega, às virtudes verdadeiramente evangélicas.

O Espírito Santo diz em certa parte que está à porta e bate; diz mais ainda: diz que empurra a porta para entrar, ecce sto ad ostium et pulso.

O nosso coração é, pois, como uma porta à qual o Mestre bate e pela qual ele procura entrar.

Ora, uma porta pode estar em várias posições. E quando alguém bate a esta porta e alguém vem ver para abrir,

Pode-se deixá-la fechada e não deixar entrar de modo nenhum,

pode-se entreabri-la apenas e deixar à porta os que vêm,

finalmente pode-se abri-la completamente e deixar entrar os que batem.

É também o que podemos fazer a Jesus Cristo, nosso Mestre, essa relação à porta do nosso coração, quando ele procura entrar.

Aquele que não abre a sua porta é o que recusa deixar entrar o Mestre, e que recusa inteiramente receber o seu Mestre para o seguir, o que prefere seguir as suas ideias, as suas paixões, o mundo.

Aquele que não abre senão metade é o que escuta sem deixar entrar inteiramente o Mestre em sua casa, permanece dono da sua casa e do seu coração.

Ele escuta, mas toma só o que quer, faz disso o que quer, pega no que lhe convém e deixa o resto que não lhe agrada.

Recebe o Mestre com reserva e prudência e escuta mais a sua razão, as suas pequenas paixões que são os seus mestres, do que o Mestre verdadeiro que quer entrar, desconfia, tem medo, não abre o seu coração senão pela metade.

E o Mestre não pode entrar para dispor como o deveria fazer[128].

O último abre a sua porta completamente e deixa entrar em sua casa o Mestre que bate.

Está feliz por recebê-lo e dar-lhe um lugar de honra, escuta com prazer e não tem senão um desejo, o de compreender o que ele diz e pô-lo em prática.

Não discute, antes procura como poderá praticar o que ouve.

Coloca-se em espírito aos pés do seu Mestre, como Maria e não se deixa apanhar nem pelo raciocínio, nem pelas paixões que se revoltam. O Mestre fala, ele não tem outros pensamentos, outros desejos senão compreender o que ouve e pô-lo em prática, alimentar dele a sua alma.

É o amor que o guia e nenhuma outra coisa.

Ele quer entrar no reino dos céus, este é todo o seu desejo.

Ele calca aos pés tudo o que a razão e as paixões lhe podem dizer.

Não tem senão Jesus Cristo como Mestre e não quer seguir senão a ele.

Alma submissa e generosa, não diz: isso é difícil, isso é impossível, isso é oposto à prudência, ao que é comum fazer, nada disso; o Mestre falou, o Mestre disse-o, isso me basta.

Exemplos de simplicidade

Zaqueu que sobe a uma árvore para ver Jesus Cristo, seu Mestre; ele, homem rico, no entanto, bem poderia dizer: o que faço eu? Comporto-me como uma criança; subir a uma árvore para ver passar um homem! Nada disso, quer ver Jesus Cristo, seu Mestre: não se inquieta com os homens.

Os pastores que vão visitar o presépio à voz dos anjos.

Os magos que deixam os seus países e empreendem uma viagem longa e desconhecida para ir ver um recém-nascido.

Santa Madalena que vai a casa de Simão o fariseu onde Jesus jantava, para lhe pedir o perdão dos seus pecados.

Santo Antônio não raciocina quando houve numa Igreja esta palavra do Evangelho: Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o ao pobre e terás um grande tesouro no céu. Ele vai, vende o que tem, dá-o aos pobres e retira-se para a solidão.

São Francisco de Assis ouve também esta palavra de Jesus Cristo numa igreja: Não tenhais nem ouro, nem prata, nem sandálias, nem duas túnicas. Toma isso para si e deixa tudo para se fazer o verdadeiro pobre de Jesus Cristo no mundo.

Eis a simplicidade de criança que Nosso Senhor pede para os seus verdadeiros discípulos.

Quantos raciocínios teriam podido fazer todos os santos que seguiram o caminho evangélico, para os impedir de entrar num caminho tão elevado, tão perfeito, tão difícil para a natureza e se eles se tivessem deixado apanhar por todos estes raciocínios, nunca se teriam tornado santos.

Nosso Senhor tinha, pois, muita razão de dizer: Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus.

Isto é, se vós vos conduzis por raciocínios humanos, se consultais a vossos raciocínios, o mundo, as vossas ideias, as vossas paixões, nunca escutareis a minha palavra e nunca a poreis em prática, porque a minha palavra vem do alto e os vossos raciocínios vêm de baixo.

Eu sou do alto, vós sois de baixo, dizia ele.

Se, portanto, é do alto, deixemo-nos, pois, conduzir simplesmente e não procuremos pôr-nos ao nível dele, pois que está acima de nós e não rebaixar a sua doutrina com os nossos pequenos raciocínios.

É o raciocínio que mata o Evangelho e que tira à alma este impulso que nos levaria a seguir Jesus Cristo e a imitá-lo na sua beleza evangélica.

Os santos não raciocinam tanto.

E é porque há tantos raciocinadores que há tão poucos santos!

Não tenhamos medo, nolite timere, sou eu.

E quando fosse necessário caminhar sobre o mar como Pedro, não seria preciso ir a Jesus, se Ele nos dissesse como a Pedro: VEM.

Mantenhamo-nos, pois, em espírito aos pés de Jesus Cristo,

como crianças aos pés do seu mestre,

com um sincero desejo de escutar a sua palavra,

e de pô-la em prática.

Por fim, é necessário uma grande força de vontade

Regnum Dei vim patitur et violenti rapiunt illud[ss].

Não vai com pessoas moles, efeminadas.

Segunda parte
as cinco condições
a cumprir
para se tornar
um verdadeiro discípulo de Jesus

Viu-se, na Introdução geral, como o Padre Chevrier tinha elaborado progressivamente o seu plano[129]. A redação da passagem que se segue ressente-se dos esforços particularmente laboriosos desenvolvidos nesta procura de um plano.

A orientação é totalmente apostólica: trata-se de cumprir os deveres do cargo apostólico[130], dando os sinais que devem acompanhar o anúncio do Evangelho.

A referência às três partes do Quadro de Saint-Fons é explícita. Não aparece de passagem, mas como resumo destas páginas, no final. Isso confirma o que já dissemos a este respeito[131].

Jesus, vendo uma grande multidão que o seguia, tira daí ocasião para aprender a segui-lo realmente, não só de espírito e mas também de coração. Como uma grande multidão de gente ia com Jesus, voltou-se para eles e disse-lhes:
Se alguém vem a mim e não odeia seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs

e até a sua própria vida,

não pode ser meu discípulo.

E quem não quer levar a sua cruz e seguir-me, não pode ser meu discípulo. (Lc 14,26-27)

 

Antes de o seguir realmente é preciso refletir bem antes se se o pode. Quem de entre vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro para calcular as despesas que são necessárias, e se tem com que terminá-la?

 

Trata-se de construir uma torre muito elevada, a da perfeição. Com medo de que, após ter posto os fundamentos e não tenha podido acabar, os que o virem não se ponham a gozar dele dizendo: este homem começou a construir e não pôde terminar.

 

Trata-se de combater inimigos poderosos.

E para construir esta torre, para combater estes inimigos poderosos, é tão necessário renunciar à própria família, a si mesmo e aos bens da terra,

 

Ou qual é o rei que, antes de ir fazer guerra a um outro rei, não se senta antes e não pensa se pode com dez mil homens ir contra aquele que vem ao seu encontro com vinte mil?

 

como é necessário a um homem ter dinheiro para construir uma casa e a um rei ter soldados para fazer a guerra.

 

De contrário, envia-lhe embaixadores quando ainda está longe e lhe faz propostas de paz. (Lc 14,28-32)
E aquele que empreendesse esta guerra ou este edifício sem ter o que é necessário, seria semelhan-te a um homem que quisesse construir sem dinheiro ou fazer a guerra sem soldados.

 

Assim, quem quer que entre vós que não renuncie a tudo o que possui não pode ser meu discípulo.

O sal é bom, mas se o sal se torna insípido, com que se salgará? Não será bom nem para a terra, nem para o fumeiro, mas para ser lançado fora.

Que aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça! (Lc 14,35).

E, noutro lugar, Nosso Senhor diz-nos: Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo tome a sua cruz e siga-me. (Mt 16,24).

 

As cinco condições exigidas por Nosso Senhor Jesus Cristo para se tornar seu verdadeiro discípulo.

 

Segundo estas palavras do divino Mestre, vemos claramente como para se tornar seu verdadeiro discípulo, é preciso primeiro

renunciar à sua família e ao mundo,

renunciar a si mesmo,

renunciar aos bens da terra.

Depois, quando se renunciou a todas estas coisas, é preciso, em seguida, tomar a sua cruz e segui-lo na prática de todas as virtudes evangélicas[132].

Necessidade de estudar estas cinco condições para se tornar um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo. Tais são as condições impostas pelo divino Mestre a todo o que quer tornar-se seu discípulo.

Sem o cumprimento destas condições, não se cumpre senão a meias, ou de modo nenhum, os deveres do cargo apostólico que consistem em ser

o sal da terra

e a luz do mundo. (Mt 5,13).

Não se é mais do que um sal insípido, uma chama apagada, e não se serve senão para ser deitado fora, segundo a palavra do Mestre.

Resta-nos, pois, saber como importa praticar,

esta renúncia às criaturas e ao mundo

esta renúncia a si mesmo,

esta renúncia aos bens da terra.

Qual é esta cruz que é necessário levar?

 

Qual é este caminho que é preciso tomar para seguir verdadeiramente Jesus Cristo e tornar-se seu discípulo?

É o que o próprio Jesus Cristo nos ensina no seu santo Evangelho e que nós vamos estudar nas páginas seguintes.

 

Explicação destas palavras:
Vós sois o sal da terra

Sal das almas.

O sal tem a propriedade de preservar da corrupção, de conservar e de dar sabor aos alimentos.

É o que devemos ser para as almas cristãs: preservá-las da corrupção do pecado, conservá-las na graça de Deus e dar-lhes o sabor espiritual pondo nelas a fé e o amor de Deus.

Vós sois o sal da terra, se o sal perder a sua força com que se salgará? Não serve para nada senão para ser lançado fora e pisado pelos homens.

Vós sois a luz do mundo.

Sois a luz do mundo.

Uma cidade situada sobre um monte, não pode estar escondida e a lâmpada que se acende, não se a coloca debaixo do alqueire, mas no candelabro, para que ilumine todos os que estão em casa. Assim, que a vossa luz brilhe aos olhos dos homens, a fim de que vejam as vossas boas obras e dêem glória ao vosso Pai que está nos céus. (Mt 5,13).

Devemos, pois, brilhar no mundo através da nossa luz, quer dizer, pelos nossos bons exemplos e pelas nossas virtudes.

Devemos praticar as virtudes opostas aos vícios do mundo e quanto mais o mundo estiver corrompido, estragado, mais devemos brilhar a seus olhos pelas virtudes opostas e arrastá-lo, espantá-lo pelas nossas palavras e, sobretudo, pelos nossos exemplos.

Quanto mais o mundo ame o luxo e a riqueza, tanto mais devemos amar e praticar a pobreza.

Quanto mais o mundo ame o bem-estar e a moleza, tanto mais devemos brilhar pela mortificação e a penitência.

Caridade, entrega, sacrifício: é preciso que o mundo veja as nossas boas obras.

A diferença entre o religioso enclausurado: vive para si, e o sacerdote no mundo: vive para os outros e deve-se a toda a gente pela entrega, o sacrifício e o bom exemplo.[133]

Há diferentes luzes: [o] sol, a lua, o gás, a lâmpada, a lamparina e a tocha extinta, sem óleo, sem mecha.

Se não acreditais nas minhas palavras, crede nas minhas obras, dizia Nosso Senhor aos judeus.

Pudéssemos nós dizer o mesmo e mostrar aos homens as nossas obras para os levar a crer e a converter-se.

Vede como sou pobre,

Vede como estou pregado na cruz,

Vede como me deixo comer por vós, sem dizer nada, para vosso bem[134]

primeira condição:
é necessário renunciar
à própria família e ao mundo

Após o Natal de 1856, Antônio Chevrier quis imediatamente pôr em prática o gênero de vida sacerdotal que acabava de conceber. Encontrou duas oposições, a de sua mãe e a de seus companheiros. Já tinha experimentado a oposição materna quando, seminarista, pensava em partir para as missões estrangeiras.

Estes dois tipos de oposição não são obstáculos, mas provações mais ou menos dolorosas, na condição de que se procure a liberdade espiritual em relação à própria família e a todo o meio sociológico, inclusive o meio eclesiástico. Com efeito, quando os sacerdotes tendem a conformar-se coletivamente a um determinado meio sociológico, cria-se entre eles uma mentalidade coletiva que os submete inconscientemente aos preconceitos desse meio: o mundo encontra-se até mesmo nas reuniões dos companheiros[135].

Uma luta particularmente dura, sustentada contra uma mãe dominadora, explica por um lado a importância dada pelo Padre Chevrier à renúncia à família. Mas ninguém pode iludir esta questão e a maior parte dos que foram postos à parte para o Evangelho[136], encontraram-se uma vez ou outra na dolorosa necessidade de fazer sofrer algum dos seus seres queridos ao decidir livremente responder ao apelo de Deus.

Por outro lado, importa saber que, após a morte de seu pai, Antônio Chevrier levou sua mãe consigo para o Prado, tendo muito em conta o que sabia dela e organizando as coisas de tal modo que ela não interviesse no andamento da casa, mas que de algum modo se sentisse útil.

Aqui, as duas preocupações ,maiores do Padre Chevrier são as de pôr em relevo com toda a sua força a família espiritual e a de conquistar a liberdade. Liberdade para anunciar o Evangelho e para viver próximo dos pobres.

Por esta razão, a renúncia ao mundo é, sobretudo, uma recusa do enfeudamento a um certo mundo que exerce o seu império sociológico sobre o clero do tempo, e, talvez, mais ou menos em todos os tempos.

Será, conforme o caso, o grande mundo, o belo mundo, o mundo culto, os mundanos, etc… Corre-se sempre o risco de procurar com o sacerdócio


uma promoção social. Ora, sublinha o Padre Chevrier, Jesus não eleva a sua família segundo a carne[137].

Esta renúncia ao mundo, é também, para o Padre Chevrier, uma exigência de liberdade em relação a sistemas e grupos políticos. É o que ele quer afirmar ao recusar ir passar a sua tarde num salão a falar… de política[138]. Ele sabe, com efeito, quantos obstáculos cria entre os pobres do seu tempo, o conluio do clero com as opções políticas de certas classes sociais. Não lhe exijamos, no entanto, tratar das relações da Igreja e do mundo à maneira do Vaticano II. Não tem ideias pessoais sobre a questão.

Ele deu-se conta que seria necessário precisar os diferentes sentidos da palavra mundo, mas anuncia uma explicação sem a dar[139]. O Evangelho é responsável por uma parte desta falta de clareza. O mundo designa, em São João, quer o universo, quer o gênero humano, quer ainda os que recusam Cristo. Digamos que, no Verdadeiro Discípulo o mundo é toda a influência humana que nos poderia impedir de tomar inteiramente a sério o Evangelho. Quando se encontrou Cristo, como São João, como São Paulo, não se pode senão achar intolerável uma tal pretensão.

Outros termos são também fonte de ambiguidade: celeste e terrestre[140]. Para compreender o Padre Chevrier, importa referir-se, como ele, a São Paulo[141], que opõe o homem terrestre ao homem celeste. Este é o homem novo, recriado na graça de Cristo, vivificado, conduzido pelo Espírito e que, certamente, não está dispensado de ter os pés na terra. O homem terrestre, o homem velho, é aquele que ainda está entregue às suas cobiças como descendente de Adão pecador.

Se a referência do Padre Chevrier à Escritura é indiscutível quando emprega os termos mundo, celeste, terrestre, pode-se no entanto admitir que a sua linguagem é influenciada pela retórica da época[142].

Entretanto, ele coloca-nos uma questão que ninguém pode evitar: somos livres espiritualmente em relação ao mundo e, em particular, à nossa família?


É o primeiro ato de renúncia que Nosso Senhor Jesus Cristo exige daquele que quer seguir os seus passos.

Com efeito, não se pode dedicar-se a Deus e ao mundo e impõe-se necessariamente deixar um para se dar ao outro.

E como diz Jesus Cristo, não se pode servir a dois senhores.

Ou se amará um e [se] odiará o outro; ou se unirá a um e se desprezará o outro.

Não se pode estar unido a Deus e ao mundo por causa da oposição que há entre Deus e o mundo. E se, na Sagrada Escritura, Deus diz que a esposa deixará o seu pai e a sua mãe para se unir ao seu marido, com muito mais razão aquele que quer unir-se a Deus deverá deixar todas as criaturas.

É o primeiro ato que Deus exige de Abraão, quando o chama.



Doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a renúncia à família e ao mundo.

Pensais que eu vim trazer a paz à terra? Não, vo-lo digo, mas a separação.

Porque, eu vo-lo digo, doravante numa casa, cinco estarão divididos, três contra dois, dois contra três.

estarão divididos,

o pai contra o filho,

a mãe contra a filha,

a filha contra sua mãe,

a sogra contra a nora,

e a nora contra a sua sogra. (Lc 12,51).

Não acreditais que eu vim trazer a paz à terra.

Não vim trazer a paz mas a espada.

Eu vim separar o homem contra seu pai,

o filho contra a sua mãe

e a nora contra a sua sogra

e os inimigos do homem serão

os da sua casa.

(Mt 10,34).

Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim e quem ama seu filho ou sua filha, mais do que a mim, não é digno de mim. (Mt 10,37).

Se alguém vem a mim e não odeia seu pai e sua mãe,

sua mulher e seus filhos,

seus irmãos e suas irmãs

e até a sua própria vida,

não pode ser meu discípulo. (Lc 14,26).

Renunciar ao mundo

Ai do mundo, por causa dos escândalos! (Mt 18,7).

Não ameis o mundo, nem o que há no mundo.

Se alguém ama o mundo, o amor de Deus não está nele. (I Jo 2,15).

O amor do mundo é uma inimizade contra Deus.

Quem quer ser amigo do mundo, torna-se inimigo de Deus. (Tg 4,4).

Não vos conformeis com o século presente. (Rom 12,2).

Vós não sois do mundo, dizia Jesus Cristo aos seus apóstolos.

Ninguém pode servir a dois senhores.

Ninguém pode servir a dois senhores

Sabemos que o mundo inteiro está sob o império do espírito maligno. (I Jo 5,19).

O mundo não pode receber o Espírito Santo porque não o conhece e não o vê. (Jo 14,17).

Se alguém ama o mundo, o amor de Deus não está nele.

Porque tudo o que está no mundo é ou concupiscência da carne, ou concupiscência dos olhos, ou orgulho da vida.

O que não vem de Deus, mas do mundo e o mundo passa, e a concupiscência do mundo passa com ele.

Mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre. (I Jo 2,15).

Há a sabedoria que vem de baixo, esta sabedoria é terrestre, animal, diabólica.

Aí onde há inveja e disputa, há também perturbação e toda a espécie de mal.

Mas a sabedoria que vem do alto é antes de mais casta, em seguida amiga da paz, moderada, equitativa, dócil, susceptível de todo o bem, cheia de misericórdia e de frutos de boas obras. Não julga. Não é dupla, nem dissimulada. (Tg 3,15).

O homem animal não concebe as coisas que são do espírito de Deus; parecem-lhe loucura e não pode compreendê-las porque se deve julgá-las por meio de uma luz sobrenatural. (1 Cor 2,14).

A sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus, conforme o que está escrito: surpreenderei os sábios nos seus próprios artifícios.

O Senhor conhece os pensamentos dos sábios e sabe que são vãos. (1 Cor 3,19-20).

Eu sou do alto,

vós sois de baixo,

vós sois do mundo,

eu não sou do mundo. (Jo 8,23).

Eles são do mundo, por isso falam segundo o mundo.

Quanto a nós, somos de Deus e aquele que conhece Deus, escuta-nos; mas aquele que não é de Deus não nos escuta e é por isso

que nós conhecemos os que estão animados do espírito de Deus de verdade e os que são impulsionados pelo espírito do erro. (I Jo 4,5).

O mundo coloca toda a sua felicidade nas coisas exteriores e sensuais.

Jesus coloca-a nas coisas espirituais.

Maria escolheu a melhor parte.

Exemplos que confirmam esta verdade: oposição entre Jesus Cristo e o mundo.

Os familiares de Jesus Cristo tendo conhecido todas estas coisas vieram para se apoderar dele porque diziam: enlouqueceu, in furorem versus est. (Mc 3,21).

Os seus irmãos não acreditavam nele. (Jo 7,5).

Nenhum profeta é aceite na sua pátria; não há profeta sem honra, senão na sua pátria, na sua casa, entre os seus parentes. (Mc 6,4).

(Trata-se aqui dos que são bons profetas, bons sacerdotes, bons servidores de Deus, que não vivem como o mundo e não dos que seguem as ideias do mundo e da família).

Os irmãos de Jesus disseram-lhe: Parte daqui, vai para a Judeia a fim de que os teus discípulos vejam as obras que tu fazes, porque ninguém atua para que a sua obra seja ocultada, mas ele próprio procura manifestá-la. Se fazes tais coisas, manifesta-te ao mundo. (Jo 7,3).

É em Nazaré, sua terra natal, que Jesus é expulso da sinagoga, conduzido a uma montanha pelo povo que queria ali precipitá-lo, mas Jesus, passando pelo meio deles, voltando-se, seguiu o seu caminho. (Lc 4,30).

Quanto mais somos de Deus, tanto mais somos opostos às ideias e às loucuras do mundo e mais também o mundo nos odeia e nos persegue.

A mãe de Zebedeu vem a Jesus e pedir-lhe que os seus dois filhos se sentem, um à sua direita, outro à sua esquerda, no seu reino; os dois filhos fazem o mesmo pedido e Jesus diz-lhes: Vós não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que eu bebo ou ser batizados com o batismo do qual devo ser batizado? (Mc 10,38).

O próprio Pedro, antes de ter recebido o espírito de Deus é severamente repreendido por Jesus Cristo.

Jesus fala da sua paixão e anuncia o que lhe deve acontecer.

Pedro, tomando-o à parte, põe-se a repreendê-lo dizendo: Deus não permita, Senhor, isso não acontecerá!

E Jesus, voltando-se, olhando aos seus discípulos, repreende Pedro dizendo-lhe: Retira-te, Satanás, tu és para mim um escândalo, porque não entendes o que é de Deus mas o que é dos homens. (Mc 8,31).

Como o próprio Jesus Cristo praticou esta renúncia à família

Aos doze anos, o menino Jesus fica no Templo para começar a missão que seu Pai lhe tinha confiado no mundo.

Permanece no Templo sem que seus pais o saibam.

E quando a Santíssima Virgem se apresenta diante dele e lhe pergunta porque tinha agido assim com eles, que o procuravam há três dias, na dor e na tristeza, responde-lhes: Porque me procurais? Não sabeis que é preciso que eu esteja nas coisas que respeitam ao serviço de meu Pai? (Lc 2,49).

Bodas de Caná

Nas bodas de Caná, Jesus responde a Maria, sua mãe, que lhe comunica que os convidados não têm vinho: Mulher, que há de comum entre ti e eu? A minha hora ainda não chegou. (Jo 2,4).

Jesus na cruz

E na cruz, Jesus, vendo sua mãe a seus pés, diz-lhe: Mulher, eis aí o teu filho. (Jo 19,26).

Mulher que chama Maria: Bem-aventurada

Uma mulher, elevando a voz no meio da multidão, grita: Bem-aventurado o seio que te trouxe e os peitos que te amamentaram!

E Jesus responde: Bem-aventurados, antes, são os que escutam a palavra de Deus e a põem em prática. (Lc 11,27).

Alguém veio dizer a Jesus: Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e querem ver-vos. Jesus respondendo a este, diz: Quem é minha mãe? e quem são os meus irmãos?

E, olhando à sua volta e estendendo a mão aos seus discípulos, diz: Minha mãe e meus irmãos, são os que escutam a palavra de Deus e a põem em prática.

Aquele que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe. (Mc 3,31).

O que Nosso Senhor Jesus Cristo exige dos que o querem seguir, em relação à sua família

Aquele que vem a mim e não odeia seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos, não pode ser meu discípulo. (Lc 14,26).

Aquele que ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim. (Mt 10,37).

Jesus diz a um jovem: segue-me. Porém este jovem diz a Jesus: permiti-me ir antes sepultar meu pai.

Jesus diz-lhe: segue-me. Deixa os mortos sepultar os mortos, porém tu, vai e anuncia o reino de Deus. (Lc 9,60).

Um outro jovem diz a Jesus: Seguir-vos-ei, Senhor, mas deixa-me primeiro dizer adeus aos que estão em minha casa.

Jesus diz-lhe: Nenhum homem que, tendo posto a mão no arado, olhe para trás, é apto para o reino de Deus. (Lc 9,61).

Regras a seguir em relação à sua família e ao mundo

Segundo as palavras e os exemplos de Nosso Senhor Jesus, vemos que um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo deve antes de mais:

Deixar seu pai e sua mãe

Deixar seu pai e sua mãe segundo o exemplo do menino Jesus aos doze anos, para se consagrar à obra de Deus; e nem sequer tem necessidade do seu consentimento.

Quando Deus nos chama, há que obedecer-lhe.

É o nosso primeiro Pai.

Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim. (Mt 10,37).

E quando eles vêm procurar-nos, dizer-lhes como o menino Jesus: Porque me procuráveis? Não sabeis que é necessário que eu esteja ao serviço de meu Pai?

O nosso primeiro dever é de nos ocupar das coisas de Deus, que é o nosso primeiro Pai.

Temos um Pai que está nos céus, que está acima de todos os pais da terra e a quem é preciso obedecer em primeiro lugar.

Este Pai está acima de vós.

É vosso Pai e o meu.

Venho separar o filho de seu pai.

Não ter nada em comum com a família a não ser as relações de caridade e de necessidade[143]

E quando uma vez se fez esta primeira separação e se consagrou a Deus e ao seu serviço, não se deve ter nada em comum

com a sua família.

É o que Nosso Senhor Jesus Cristo nos ensina quando responde a Maria, sua mãe, nas bodas de Caná: Que há de comum entre ti e mim? Mulher, a minha hora ainda não chegou.

É necessário estudar cada palavra, porque cada palavra encerra uma lição.


Exame desta palavra de Nosso Senhor: o que há de comum entre tu e eu? Mulher, a minha hora ainda não chegou

O que há de comum entre tu e eu?

Quer dizer, não há nada de comum entre tu e eu.

Desde que vos deixei para me consagrar ao serviço de Deus e do próximo.

Deixei a família natural, para entrar numa família espiritual. Quebrei estes laços carnais, para assumir laços sobrenaturais.

Deus é meu Pai. A Igreja, minha mãe. Os filhos de Deus, meus irmãos e minhas irmãs.

Eis aí a minha família.

Não há mais nada de comum entre vós e eu. Vós não tendes mais nenhum direito sobre mim e eu não tenho mais nada a ver convosco. Não me resta outro laço senão o laço da caridade e do reconhecimento que não podem ser quebrados.

Isso é muito simples, dado que saímos da via natural para entrar na família espiritual de Deus.

Mulher

Esta palavra que Nosso Senhor emprega para falar a sua mãe faz-se compreender bem que pelo próprio ato de ter começado a sua missão divina na terra, tornou-se o Sacerdote eterno. Maria perdeu os seus direitos de mãe sobre ele e ele não reconhece mais nela o direito de lhe comandar como outrora, de lhe ordenar no que respeita ao reino de Deus e à sua missão divina.

Ele não reconhece outro senhor, outro pai, outro superior senão Deus, seu Pai. Sua mãe não é para ele mais do que uma mulher.

A minha hora ainda não chegou.

Eu sei o que devo fazer e quando devo fazê-lo.

Tenho meu Pai a quem devo obedecer e que me fixa o momento em que devo agir e como o devo fazer.

Não é a vós que compete dizer-me o que devo fazer, nem me fixar o momento das minhas ações.

Não tenho nenhuma ordem a receber de vós no que respeita à minha missão divina.

É somente a Deus que devo obediência e é a ele que compete fixar o momento das minhas ações.

Quando actuo, não devo obedecer nem à carne, nem ao sangue, nem a nenhum sentimento natural, não devo consultar senão a vontade de meu Pai.

Que grande lição Nosso Senhor nos dá nestas palavras e pronunciou-as para nos instruir nesta circunstância; estas palavras aparentemente duras mostram-nos a separação que deve fazer-se entre um sacerdote e a sua família.


Devemos formar entre nós uma verdadeira família espiritual

Alguém veio dizer a Jesus: A tua mãe e teus irmãos estão lá fora, procuram-te e querem ver-te.

Jesus respondendo àquele que lhe falava, diz:

Quem é minha mãe e quem são os meus irmãos?

Lançando o seu olhar à sua volta e estendendo a sua mão para os seus discípulos, diz:

Eis aí minha mãe e meus irmãos, são os que escutam a palavra de Deus e a põem em prática. Pois todo o que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão e minha irmã e minha mãe. (Mc 3,31).

Como Nosso Senhor nos faz compreender bem pelas suas palavras que a família natural desaparece para dar lugar a uma família espiritual, que não tem já por laço nem a carne nem o sangue, mas que tem laço Deus, a sua palavra e a prática desta mesma palavra.

Aí está o grande laço das almas.

E os laços desta família espiritual, são mais íntimos e mais fortes do que os que existem nas famílias da terra, que não são senão laços terrestres e carnais[144].

Quando duas almas, iluminadas pelo Espírito Santo, escutam a palavra de Deus e a compreendem, forma-se nestas duas almas uma união de espírito muito íntima da qual Deus é o princípio e o nó.

É o verdadeiro laço da religião, o verdadeiro laço da alma e do coração.

Este conhecimento produz, primeiro, o amor de Deus e também o amor daquele que pensa como nós e segundo Deus; e este laço do espírito, fundado sobre Deus, é infinitamente mais íntimo e mais forte do que todo um outro laço natural.

E quando a este laço espiritual vem juntar-se a prática desta mesma palavra, então forma-se uma família verdadeiramente espiritual, uma comunidade cristã, tendo Deus por fundamento, a sua divina palavra por ligação e as mesmas práticas por finalidade.

E não pode haver família ou comunidade cristã sem esta união de espírito fundada sobre o conhecimento de Jesus Cristo, da sua divina palavra e a prática das mesmas obras.

O amor de Jesus Cristo, o desejo de guardas a sua palavra é o fundamento de toda a família cristã e não estaremos realmente unidos de espírito e de coração senão enquanto este precioso fundamento estiver posto no meio de nós.

É então que se cumpre para nós esta palavra de Jesus Cristo: Esses são meus irmãos que escutam a palavra de Deus e a põem em prática.

Tornamo-nos seus irmãos, pois que estamos unidos pela fé e pelos mesmos pensamentos e que o seu sangue corre nas nossas veias.

Nós tornamo-nos sua mãe reproduzindo-o no altar e dando-lhe nascimento espiritual em outros filhos pelo ensino da fé e pelos sacramentos.

Ditosa família! Ditosos laços que unem todos os membros desta mesma família, na mesma caridade e no mesmo desejo de fazer conhecer e amar Jesus Cristo!

E quando esta família existe realmente, devemos encontrar nesta família tudo o que se encontra numa verdadeira família: o amor, a união, o apoio, a caridade, todos os cuidados espirituais e temporais que são necessários a cada um dos membros, sem ter necessidade de ir procurar fora o que é necessário para as necessidades da alma ou do corpo, de outro modo a família não é completa nem verdadeira.

É o que exprimem, por outro lado, estes títulos de irmãos, de irmãs e de pais que nos damos uns aos outros. Estes títulos não devem exprimir senão o que deve existir interiormente, de contrário, não são senão ridículos e mentirosos.

Segundo as palavras de Nosso Senhor, vemos, pois, claramente que um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo deve deixar seu pai e sua mãe para se entregar ao serviço de Deus, não ter já nada em comum com eles e entrar na família espiritual dos filhos de Deus e não reconhecer por pai e por mãe senão Deus e os seus superiores e por irmãos e irmãs os que são de Jesus Cristo.

Falsas ideias que os familiares continuam a ter sobre os seus filhos quando são sacerdotes

Os familiares crêem conservar sempre direitos sobre os seus filhos quando são sacerdotes.

E porque eles não são enclaustrados, mas sacerdotes no mundo, pensam que podem sempre aconselhá-los, conduzi-los, tê-los consigo, dar-lhes conselhos e quão terrestres são os seus conselhos que é sempre para não se cansar demasiado, em ter cuidado com eles, não tomando muito a peito, tais conselhos são sempre prejudiciais ao bem das almas e aos seus próprios filhos, inspirando-lhes a negligência.

Eles não consideram o bem das almas[145], mas o bem de seus filhos.

É então que é necessário ter no espírito e nos lábios estas palavras de Jesus Cristo, nosso Mestre: Que há de comum entre tu e mim?

E esta outra de Nosso Senhor a São Pedro: Retira-te, Satanás, tu és para mim motivo de escândalo, porque não compreendes o que é de Deus mas o que é dos homens.

Infeliz daquele que se deixa conduzir por estes conselhos prejudiciais e perniciosos! Não leva senão uma vida totalmente natural, não serve mais a Deus, mas serve-se a si mesmo e aos seus familiares.

Em que sentido devemos odiar os nossos pais e as nossas mães

Aquele que vem a mim e não odeia seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos… (Mt 10,37).

Esta palavra não quer dizer que seja necessário desprezar os seus pais, querer-lhes mal, não os olhar, não lhes prestar atenção, não lhes prestar nenhum serviço. Não. Esta palavra quer dizer que os nossos pais, estando na via natural e terrestre e nós numa via espiritual e celeste, os nossos pensamentos, as nossas ideias, as nossas aspirações, os nossos afetos, devem estar tão elevados acima deles como o céu está elevado acima da terra.

Os pensamentos e os afetos dos nossos familiares são ordinariamente muito terrestres; os nossos pensamentos, os nossos desejos, as nossas aspirações, devem ser todas celestes.

Nostra conversatio in coelis est. (Fil 3,20).

Devemos tirar os nossos pensamentos e os nossos afetos do céu e não da terra nem das criaturas.

Devemos odiar e desprezar tudo o que é terrestre e não buscar nem amar senão o que é celeste e imitar Nosso Senhor na sua conduta em relação a São Pedro, que, no entanto, ele amava muito e que, no entanto, não teme chamar-lhe Satanás, quando lhe exprime pensamentos tão diferentes e tão opostos aos do Mestre.

Retira-te, Satanás! És para mim um escândalo.

É assim que devemos responder a todo o que quer desviar-nos do nosso dever e do verdadeiro caminho que devemos seguir.

Devemos odiar os nossos pais e mães, quer dizer, não temer causar-lhes pena em certas circunstâncias, indo diretamente contra as suas ideias, quando se trata da glória de Deus e da salvação das almas.

O que nos retém muitas vezes nas nossas determinações, é o temor de lhes causar pena, o desgosto que a nossa conduta lhes ocasionará: se faço tal coisa, que tristeza para eles! Vão dizer: já não me ama, já não conto para ele, abandona-me; é um ingrato.

É, precisamente, a ocasião de cumprir a palavra divina do Mestre e de se conduzir em relação a eles como se não os amasse, como se os abandonasse, embora no fundo se os ame muito sinceramente.

Aquele que ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim.

É nestas circunstâncias que é necessário parecer cruel e lutar contra os sentimentos da natureza e pôr em execução as palavras do Mestre: odiar seu pai e sua mãe.

Devemos manter-nos sempre numa grande liberdade de ação em tudo o que respeita ao serviço de Deus e à salvação das almas.

Devemos amar e estimar mais os nossos irmãos espirituais do que os nossos irmãos segundo a carne

É o que Nosso Senhor Jesus Cristo nos faz entender na resposta que deu a esta mulher que, elevando a sua voz no meio da multidão, gritou: Bem-aven-turado o seio que te trouxe e os peitos que te alimentaram.

A estas palavras, ditas totalmente em louvor de Maria, Jesus responde: Bem-aventurados, antes, aqueles que escutam a palavra de Deus e a põem em prática. (Lc 11,27).

É assim como o título de mãe desaparece diante do de servidor de Deus ao que não teria senão um vão título de pai ou de mãe.

Pode-se tirar também a mesma conclusão destas outras palavras dirigidas àquele que o advertia que sua mãe e seus irmãos o procuravam. E ele, mostrando os seus discípulos, diz: Minha mãe e meus irmãos são os que escutam a palavra de Deus e a põem em prática.

A verdadeira família, os verdadeiros irmãos que merecem todo o afeto do nosso coração e o primeiro lugar na nossa afeição, são os que amam Deus e põem a sua palavra em prática.

Não temos conselhos a pedir aos nossos familiares, nem às pessoas do mundo, no que respeita ao nosso ministério

Isto decorre do artigo precedente: as ideias dos nossos pais pessoas do mundo são terrestres e nós devemos ser totalmente celestes.

Não nos devemos ir lamentar às pessoas do mundo, contar-lhes os nossos assuntos, as nossas penas, os nossos desgostos.

Essas pessoas são incapazes de nos dar bons conselhos, geralmente, a menos que estejam num plano mais elevado que as pessoas do mundo.

Foi o que fez Judas, que foi lamentar-se no mundo, aos Judeus, aos fariseus; não recebeu senão palavras de desencorajamento, perdeu a sua vocação, vendeu o seu Mestre e foi-se prender.

Recebeu conselhos deste, daquele, conselhos opostos ao espírito de Deus.

Não devemos ter com as pessoas do mundo senão relações de necessidade e para o bem das suas almas

Vós não sois do mundo. Escolhi-vos e separei-vos do mundo, diz Nosso Senhor aos seus apóstolos. (Jo 15,19).

Posto que não somos do mundo, que fomos escolhidos

e separados do mundo por Jesus Cristo, não devemos amar o mundo, nem seguir o mundo, nem fazer como o mundo.

Devemos sentir repugnância e oposição, até mesmo ódio por todas as futilidades, as vaidades do mundo, as suas conversas, as suas festas, os seus jantares, os seus prazeres, os seus gozos; ao contrário, não temos o amor de Deus em nós, porque são João diz: Se alguém ama o mundo, o amor de Deus não está nele. (I Jo 2,15).

E São Tiago diz também: O amor do mundo é uma inimizade contra Deus. (Tg 4,4).

Indo com frequência ao mundo, adquire-se necessariamente os gostos e as ideias do mundo.

Somos de tal modo inclinados às coisas naturais, temos tanta dificuldade em manter-nos à altura da nossa vocação que o contato com o mundo não nos pode ser senão muito funesto.

Torna-se depressa mundano ao frequentar as pessoas mundanas.

Diz-me quem tu frequentas e eu te direi quem tu és.

Além disso, é uma grande perda de tempo ir com frequência ao mundo: quantas coisas inúteis! que conversas banais que nada significam! como é triste ver um sacerdote passar a tarde numa sala, a falar de chuva e do bom tempo, de política e de outras coisas inúteis. Perder o seu tempo quando há tantas almas a converter![146]

Um sacerdote não deveria nunca sentar-se para cavaquear e dizer coisas inúteis.

Quando um sacerdote vai muitas vezes ao mundo, perde depressa a sua autoridade de sacerdote, a sua ascendência sobre os outros.

É necessário ser grandes santos para ir ao mundo e conservar a sua autoridade de sacerdote sobre os outros, sobretudo quando se é jovem.

As pessoas do mundo vêem depressa os nossos defeitos, as nossas misérias; examinam-nos e fazem deles assunto das suas conversas e tornamo-nos facilmente assunto da sua crítica e da sua censura, e, em lugar de os ter edificado, ao contrário, escandalizámo-los.

É muito difícil manter-se à altura do seu ministério e não desfalecer algumas vezes; é preferível que as pessoas venham ver-nos do que ir vê-los nós próprios.

As pessoas convidam-nos, pressionam-nos a ir a sua casa, fazem-nos mil atenções, mil insinuações lisonjeiras. Não as acreditemos. É preferível passar por intratável, neste caso, do que passar por ser uns visitadores.

Não se deveria, parece-me, ver o sacerdote senão no púlpito, no confessionário e no altar; junto dos pobres e dos doentes.

Em qualquer parte, o sacerdote expõe-se à crítica e a se tornar ele próprio mundano ao adquirir os gostos e as ideias do mundo.

Parece que o sacerdote deveria mesmo fugir dos lugares públicos onde o mundo vai habitualmente ter as suas diversões.

O sacerdote deve fugir de tudo o que cheira a mundo, e quando tem necessidade de descansar um pouco, deve ir para um lugar isolado.

Há que ter também prudência e discrição com todo o mundo, mas sobretudo com as pessoas do mundo.

Quando Nosso Senhor Jesus Cristo convida os seus apóstolos a fazer um certo repouso, não os conduz para o mundo e suas festas, condu-los para um lugar à parte: venite seorsum in desertum locum requiescite pusillum[tt].

É necessário fugir do mundo.

O que se deve entender pela palavra mundo.

Não sair sem necessidade e quando vamos ao mundo, lembrar-nos de que somos o sal da terra e a luz do mundo

Nós somos o sal da terra.

Somos a luz do mundo, conforme a palavra de Jesus Cristo.

Quando vamos, pois, ao mundo, não é para fazer como o mundo e dizer Amen a tudo o que se diz, a tudo o que se faz infelizmente demasiadas vezes; mas é para ser o exemplo do mundo. É necessário que o sacerdote esteja no meio do mundo como uma lâmpada que brilha em todo o seu esplendor.

Devemos mostrar que não somos do mundo, que somos os mestres do mundo e não os seus servidores.

Imitar nisso Nosso Senhor Jesus Cristo, que se mostra Mestre em todo o lado: é Mestre em casa dos fariseus, à sua mesa, como na sinagoga; fala, repreende, instrui, ensina toda a gente, o dono da casa, os doutores, os escribas.

A seu exemplo, não devemos perder nunca a nossa autoridade de padre e fazê-la respeitar onde quer que estamos.

Porém, como é muito difícil fazê-lo e é preciso um grande sabedoria, uma grande prudência e como, muitas vezes, se pode fazer mais mal do que bem pelas suas imprudências e seus desacertos, Mais vale ficar em casa do que ir a casa dos outros e ensinar-lhes; para isso é necessária uma grande autoridade, uma grande prudência, uma grande sabedoria.

Aceitar o ódio e o desprezo do mundo, que são a justa consequência da nossa conduta com ele

Ao proceder assim com o mundo, com os nossos familiares, os nossos amigos, ao conduzir-nos de uma maneira tão oposta ao mundo, não poderemos fazer menos do que atrair o seu desprezo, o seu ódio e os seus sarcasmos.

Porém, é esta precisamente a nossa glória e o que faz a nossa felicidade e nos dá a segurança de ser verdadeiramente de Jesus Cristo.

É que, o próprio Jesus Cristo diz: Se o mundo vos odeia, sabei que me odiou a mim, antes de vós.

Se fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; mas, porque não sois do mundo e eu vos escolhi e separei do mundo, por isso é que o mundo vos odeia.

Porém, lembrai-vos da palavra que eu vos disse: O servo não é maior que o seu Senhor. (Jo 15,18).

Dei-lhes a tua palavra e o mundo odiou-os, porque eles não são do mundo, como eu próprio não sou do mundo. (Jo 17,14).

Estou crucificado para o mundo e o mundo está crucificado para mim. (Gál 6,14).

O mundo odiou-me gratuitamente.

O mundo odeia-me porque dou testemunho de que as suas obras são más. (Jo 7,7).

Pois que desprezamos o mundo e suas máximas, o mundo também não pode senão desprezar-nos também.

Em que se conhece que se ama o mundo

Quando se vai para aí com prazer, e se prefere a sociedade do mundo ou da sua família à de seus irmãos,

Quando se tem pena de recusar os convites e as sociedades do mundo,

Quando se fala com prazer da sua família, do mundo, da sua grandeza, dos seus títulos, de sua felicidade, sobretudo das suas riquezas, do seu campo, dos seus lucros, das suas maneiras:

Tudo isso indica uma atração pelo mundo e seu…

Promessas de Jesus Cristo àquele que tiver deixado a sua família e o mundo por ele

O que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe. (Mt 12,50).

Não haverá ninguém que tenha deixado por mim a sua casa ou os seus irmãos ou as suas irmãs, seu pai ou sua mãe, seus filhos ou suas terras que, presentemente, mesmo neste século, não receba cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães, filhos, terras, com perseguições, e, no século futuro, a vida eterna. (Mc 10,29).


Conclusões práticas deste capítulo sobre a renúncia à sua família e ao mundo

Devemos deixar o nosso pai e a nossa mãe para nos entregar ao serviço de Deus.

Devemos odiar o nosso pai e a nossa mãe no sentido cristão.

Não ter mais nada em comum com a nossa família a não ser cumprir os deveres necessários que a caridade nos impõe.

Não ir a casa da sua família ou a casa dos seus familiares senão por motivos de verdadeira caridade e não somente para satisfazer os sentimentos afetuosos da natureza, de uma ou de outra parte.

Formar entre nós uma verdadeira família espiritual.

Amar e estimar muito mais os nossos irmãos espirituais do que os nossos irmãos segundo a carne.

Nunca pedir conselhos às pessoas do mundo[147], nem lamentar-se, nem comentar.

Não ter relações com as pessoas do mundo senão por necessidade e para o bem das suas almas… discrição, prudência.

Não sair sem permissão e, quando vamos ao mundo, recordar-nos sempre que somos sal da terra e luz do mundo.

Aceitar o ódio e o desprezo do mundo e da sua família, que são a justa consequência da nossa conduta com o mundo. Ele está louco.

Confiar nas palavras de Nosso Senhor que promete o cêntuplo àquele que tenha deixado tudo por ele.

Férias.

(Pode-se permitir ir de férias a casa de seus pais até aos anos de filosofia ou de retórica, porque o conhecimento de Jesus Cristo não é ainda bastante grande nestas jovens almas para fazerem inteiramente o sacrifício da família; porém, em retórica ou em filosofia, deve-se começar a compreender as grandes máximas de Jesus Cristo e a pô-las em prática e, então, não é mais o afeto que deve conduzir estas almas, mas o dever, mas Jesus Cristo que deve começar a ser Mestre destas almas. Ou então, se elas não são capazes de seguir os seus preceitos, não podem continuar para a frente)[uu].

Segunda condição:
é necessário renunciar a si mesmo

A parte precedente tratava já abundantemente de renúncia.

Falar de renúncia a si mesmo ajuda a compreender que se trata de uma liberdade a adquirir e não de fazer como se as coisas não existissem. Renunciar ao mundo não consiste em viver como se o mundo não existisse mas em adquirir a liberdade de seguir Jesus Cristo, Salvador do mundo, do mesmo modo que renunciar a si mesmo não é correr ao suicídio, mas ter compreendido praticamente que para seguir o Mestre é necessário estar inteiramente livre de tudo, de si próprio como dos demais [148].

Se poderia encontrar uma outra expressão, talvez mais justa do que a renúncia, por exemplo, a de superação?

O Padre Chevrier encontrou em Mastaï-Ferretti a tradução que reproduziu no VD: Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo[149].

Ele sentiu que era difícil exprimir bem esta palavra de Jesus, razão por que reproduz ainda o texto latino e tenta explicar-se inventando mesmo uma palavra, o que não faz em nenhuma outra parte: abnegar-se[150].

Por outro lado, falar de superação ou outra expressão semelhante não corresponderia ao pensamento do Padre Chevrier. Não corresponderia, aliás, a nenhum dos comentários que os mestres espirituais deram da palavra de Jesus. Todos recusaram adoçar o ensino de Cristo, porque tinham experimentado que, ao tomar o Evangelho a sério, era necessário operar um tal despojamento de si mesmo e do resto, que não se podia falar disso senão em termos de abnegação.

A renúncia que não sai do conhecimento de Jesus Cristo não vale nada[151], e o conhecimento de Jesus Cristo produz necessariamente o amor, mas isso não se produz senão através de uma experiência espiritual que só podem evocar termos como os de renúncia, nada, morte. Seria imensa pena


não poder chegar ao Tudo porque se teria recusado admitir que é preciso passar pelo Nada.

Sob este aspécto, o ensino do Padre Chevrier é incontestável.

Pelo contrário, há lugar para a discussão a respeito dos motivos dados para explicar a necessidade da renúncia. Sobre este ponto a Tradição católica veicula duas correntes, uma que se pode chamar pessimista e outra otimista. Uma e outra corrente afirmam a corrupção da natureza humana herdada de Adão, mas uma corrente julga esta corrupção mais profunda, com consequências mais amplas do que pensa a outra corrente. Uma e outra reconhecem que permanece algo de bom no homem corrompido, que a graça de Cristo restaura a natureza humana mais magnificamente do que o tinha estabelecido a criação na graça original e que esta restauração tem lugar pela Cruz.

Damos estas explicações sumárias para tentar situar bem o Padre Chevrier. Por vezes, ouve-se dizer a este respeito: Não está ainda ele um pouco marcado pelo jansenismo? A questão não está de modo nenhum aí.

O jansenismo, enquanto tal, não é primariamente uma concepção exageradamente pessimista da corrupção do homem, mas antes, uma concepção restritiva do poder de salvação de Deus. O Padre Chevrier é dos antípodas desta doutrina.

A questão é esta: pertence à corrente pessimista?

Se o Verdadeiro Discípulo fosse uma obra de teologia, creio que haveria que responder sim. Tudo o que trazemos deste nascimento de Adão está estragado, corrompido, escreve o Padre Chevrier[152]. Porém, a este nível teológico, não tem posição pessoal nem se preocupa de ter uma. No entanto, é influenciado nas suas expressões pela corrente teológica pessimista que domina na sua época e as suas expressões são um pouco brutais para nós porque é a corrente otimista que domina na hora atual. (Não é uma razão para julgar herética a corrente pessimista quando permanece nos justos limites).

Porém o Verdadeiro Discípulo não é uma obra de teologia especulativa. Repitamo-lo, o Padre Chevrier coloca-se no ponto de vista da experiência espiritual e, deste ponto de vista, quem hesitaria em dizer que uma impureza congénita, feita de orgulho e de egoísmo, se mistura nas melhores das nossas ações? Não é senão em esperança que estamos salvos[153]. Isso não quer dizer que a natureza humana não é essencialmente senão corrupção, sem se pronunciar sobre o seu grau de corrupção, afirma simplesmente, por experiência, que em todo o momento, os efeitos de uma certa corrupção estão presentes e o homem espiritual, iluminado pela pura luz de Cristo, vê que em todos os seus atos, se encontra uma certa impureza, uma mistura, diz o Padre Chevrier e esta mistura é, diante de Deus, inadmissível[154].

Por outro lado, a experiência apostólica não faz senão confirmar esta coexistência


inseparável em todo o homem do bom e do mal e pergunta-se que apóstolo poderia contradizer, por experiência, frases como estas:

–     É muito difícil guardar inteiramente a castidade[155].

–     É muito difícil deixar inteiramente a sua razão, a sua ciência, a sua vida natural, os seus defeitos de espírito, para se encher do espírito de Deus e não agir senão de acordo com o espírito de Deus[156].

–     Dificilmente se faz o sacrifício perfeito da sua vontade[157].

–     Aquele que não renunciou a si próprio está sempre em perturbação, agitação e inquietude[158].

Além do mais, toda a gente está facilmente convencida de tudo isso; mas há os que continuam, apesar da sua fraqueza e da sua infidelidade, a esperar na Palavra de Deus e os que acham mais cómodo concluir: Deus não me pede tanto.

Então, o Padre Chevrier é pessimista? Não sei.

Ao nível em que se coloca, o dos verdadeiros apóstolos de Cristo, peçamos-lhe um otimismo imperturbável na obra da salvação realizada por Cristo, e tem-no:

Quanto mais se está morto, mais se tem a vida, mais se dá a vida[159].

É um eco de São Paulo: “Assim, a morte opera em nós e a vida em vós”[160].

Peçamos-lhe também que seja realista. De que serve ao homem acreditar-se são, se está doente? Somente aquele que não descobriu o médico prefere não olhar muito de perto a sua saúde com medo de cair no desespero. Por isso, o verdadeiro conhecimento do pecado em nós que faz parte integrante da renúncia a si mesmo brota do conhecimento de Jesus Cristo.

É à sua luz que devemos aprender a conhecer cada coisa, a conhecer a verdade, o valor espiritual de cada coisa terrestre, a conhecer o verdadeiro do falso, o justo do injusto, o bem do mal[161].

O Padre Chevrier anuncia-nos uma divisão em quatro partes, considerando que somos corpo, coração, espírito, vontade. Certamente aprendeu no catecismo que o homem é formado de um corpo e de uma alma. Mais tarde, na aula de filosofia, comentaram-lhe esta definição. Mas, aqui, a divisão indicada mostra bem que não se trata de uma semelhante distinção. Trata-se de delimitar como quatro domínios da atividade humana, de uma atividade que nos toma, aliás, sempre inteiros, corpo e alma.

O corpo é todo o setor de atividade que está ao serviço da nossa subsistência


biológica, como, por exemplo, o fato de comer e tudo o que é preciso fazer para preparar o alimento. O coração, é todo o domínio da vida afetiva, o espírito é toda a atividade que desenvolvemos ao serviço do pensamento e a vontade, é o domínio da ação, quer dizer, de todos os nossos empreendimentos.

Esta divisão parece satisfatória, vista sob este aspécto prático. É simples e corresponde ao sentido comum. Neste sentido, convém certamente ao Padre Chevrier.

Como a elaborou? O seu próprio senso comum pessoal, os seus dons de reflexão a partir da experiência podiam bastar para tal. Os diversos manuscritos do VD encerram marcas de uma certa procura, de uma hesitação, seja sobre o número de partes a adotar, por exemplo, o coração não é sempre mencionado; seja sobre a ordem de sucessão das quatro partes.

Não seria de surpreender, no entanto, que o Padre Chevrier tivesse tomado de outro esta divisão. De fato, numerosas obras de espiritualidade podem colocar nesta pista; porém, não podemos dizer com certeza, nem mesmo com verosimilhança, qual teria servido ao Padre Chevrier.


É necessário renunciar a si mesmo.

É o segundo ato que Nosso Senhor Jesus Cristo pede aos que querem vir após ele.

Depois de ter renunciado à sua família e ao mundo, é necessário também renunciar a si próprio para poder seguir Jesus Cristo.

Deve-se compreender facilmente que, para seguir Jesus Cristo, não se deve estar impedido pela sua família, nem pertencer ao mundo. Também não se deve estar impedido por si mesmo e por todas as misérias que nos acompanham, de outro modo, estaríamos obrigados a parar a cada instante[162].

Doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a renuncia a si mesmo.

Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. (Mt 16,24).

Eis aí a palavra de Nosso Senhor.

Abneget semetipsum.

Abnegar-se, renunciar a si, ver-se como nada. É necessário olhar como nada tudo o que diz respeito a si próprio, tudo o que compõe o nosso ser, tudo o que somos, tudo o que constitui a nossa pessoa.

O que temos de nós mesmos?

Podemos considerar-nos como sendo nós mesmos, como formando o nosso nós mesmos, a nossa pessoa, a nossa individualidade,

o nosso corpo,

o nosso espírito,

o nosso coração,

a nossa vontade.

Eis aí o que realmente constitui o nosso ser, forma a nossa pessoa.

Jesus Cristo quer que renunciemos a tudo isso para o seguir.

Por que razão Jesus Cristo quer que renunciemos a nós mesmos?

Porque, diz-nos ele, tudo o que nasceu da carne é carne; o que nasceu do espírito é espírito. (Jo 3,6).

Quer dizer, tudo o que trazemos deste nascimento de Adão está estragado, corrompido, é necessário renascer de novo para retomar uma nova vida.

Se um homem não renasce de novo, não pode entrar no reino dos céus. (Jo 3,3).

Nós fomos concebidos na iniquidade e nascidos no pecado, de modo que não pode haver nada de bom em nós.

Uma fonte impura não pode dar águas claras e limpas.

O primeiro homem é terrestre, sendo formado da terra e os seus filhos são terrestres. (1 Cor 15,47).

Desde o pecado de Adão, fomos vendidos ao pecado pela concupiscência; é o que São Paulo explica em termos enérgicos quando diz: sou carnal, vendido para estar submetido ao pecado.

Com efeito, o que faço, não o aprovo, porque não faço o bem que quero, mas, ao contrário faço o mal que detesto. (Rom 7,14).

Estou submetido à lei de Deus pelo espírito e à lei do pecado pela carne. (Rom 7,25).

E Jesus diz: Se o grão de trigo, ao cair na terra, não morre, fica só, mas se morre, dá muito fruto. (Jo 12,24).

Imagem do que somos. Se não fazemos morrer em nós esta natureza carnal e grosseira, não daremos nenhum fruto, mas se ela morre, daremos frutos[163].

As árvores não dão naturalmente bons frutos: os frutos que vêm naturalmente são ordinariamente ásperos e selvagens; o que faz o jardineiro? corta a cabeça da árvore, fende-a e coloca no meio desta fenda um ramo bom.

Este ramo bom cresce, fortifica-se e dá bons frutos e a árvore torna-se boa, mas se nasce um caule fora deste ramo, não vale nada.

Imagem do que somos. Este ramo bom é Jesus Cristo.

Estes ramos que é preciso cortar, somos nós mesmos, são as nossas obras naturais que não valem nada.

É Jesus Cristo que é necessário colocar no meio de nós para nos tornar bons; sem ele, não produziremos senão frutos selvagens e inúteis para o céu. Importa, pois, renunciar a tudo o que vem desta primeira natureza, a tudo o que trouxemos deste primeiro nascimento viciado e corrompido.

É necessário renunciar a si mesmo,

O que é renunciar a si mesmo?

renunciar-se a si mesmo.

Renunciar a si mesmo,

É renunciar a tudo o que nos constitui a nós próprios, quer dizer, é renunciar:

ao seu corpo,

ao seu espírito,

ao seu coração,

à sua vontade.

Renunciar a si mesmo é: 1º Renunciar ao seu corpo.

Eis aqui um capítulo difícil de apresentar.

Estas páginas do Padre Chevrier são muitas vezes chocantes para a nossa época. Eram menos chocantes para os contemporâneos? Certamente, porque a mentalidade, ainda impregnada de romantismo, admitia maneiras de falar que, para nós, carecem de sobriedade. Quando o Padre Chevrier fala da gula e da ociosidade, denuncia abusos que constatava no clero da sua época. Porventura, não se dão nestas coisas que nos chocam, certos abusos a denunciar também em nossa época?

No entanto, para bem compreender o seu pensamento, importa recolocar estas páginas no seu tempo.

As condições de vida eram diferentes. Não se punha a questão de banhos ou de duchas entre os pobres e nos meios populares; não se fazia a barba senão uma vez por semana.

A mentalidade era diferente, principalmente no que se refere às relações entre homens e mulheres. Não era pensável ver uma mulher médico, advogado, deputado porque não se via uma jovem na Universidade, inclusive no ensino secundário[164].

Enfim, em matéria de espiritualidade, achava-se normal os exames minuciosos sobre múltiplos defeitos. Isso não alterava o bom humor das pessoas que escutavam todas estas coisas como um refrão conhecido a cujas palavras não se presta atenção.

Importa também recolocar estas páginas na vida do Padre Chevrier.

As pessoas achavam que era agradável viver com ele. Não era o tipo de homem desconfiado, vendo o mal por todo o lado, severo e sombrio como uma censura viva.

Tinha o cuidado de proporcionar mais do que o necessário a toda a gente a fim de que cada qual pudesse satisfazer a sua fome e nos dias da Primeira Comunhão no Prado, a mesa estava provida como para uma boda de aldeia. Preocupava-se em dar aos seus colaboradores o tempo de repouso necessário. Tinha com as irmãs do Prado


ou com qualquer pessoa do grupo feminino, uma simplicidade de relações que talvez não era habitual na sua época.

Posto isso, o que fica de tudo o que nos diz sobre a renúncia ao próprio corpo?

Em primeiro lugar fica o desenho geral de uma espiritualização progressiva do corpo, isto é, uma influência cada vez mais profunda do Espírito Santo. Nada em nós deveria permanecer estranho à influência do Espírito de Deus e seria necessário que todo o nosso comportamento visível desse testemunho de Cristo de quem somos membros.

Resta ainda que, pela sua própria vida, Antônio Chevrier mostrou como um sacerdote se consagra fisicamente à missão recebida.

Primeiro, em relação à castidade, quis viver em toda a verdade o celibato que aceitara sem se desviar para estas pequenas compensações que frequentemente degeneram em faltas graves como o prova a experiência. Se, na nossa época se é mais otimista a respeito da natureza humana do que no tempo do Padre Chevrier, por vezes se é muito mais ingénuo, o que não significa um progresso.

Trata-se de ter uma grande estima pela castidade[165] e de saber bem o que ela é.

Quanto aos domínios do trabalho e da alimentação, basta dizer que o Padre Chevrier “morreu de fome”[166] aos 53 anos, realizando o que tinha escrito:

“Mais vale viver menos dez anos trabalhando para Deus do que viver mais dez anos não fazendo nada”[167].

Tendo, pois, em conta as adaptações necessárias de acordo com a mudança das condições de vida, escutemos, através destas páginas sobre a renúncia ao corpo, um apelo a tomar a sério as palavras d’Aquele que denunciou vigorosamente o rico que comia bem, enquanto o pobre Lázaro tinha fome[168], o servo preguiçoso que não fez o trabalho esperado pelo seu senhor[169], o homem que olha para a mulher de outro com cobiça[170].

Ao estudar a doutrina de Nosso Senhor e do seu apóstolo São Paulo, percebemos que a renúncia ao seu corpo consiste antes de mais:

–     em não se deixar governar pelo corpo,

–     em não cultivar demasiado o seu corpo,

–     em renunciar aos pecados do corpo,

–     em fazer do seu corpo um instrumento de penitência,

–     em fazer do seu corpo uma hóstia viva pela prática da justiça e da virtude,

–     em corrigir os defeitos exteriores do seu corpo,

–     em aceitar voluntariamente os sofrimentos e a morte do seu corpo.

1º Não se deixar governar pelo corpo.

Deus diz a Caim: Tu dominarás os teus maus instintos. (Gén. 4,7).

Conduzi-vos segundo o espírito e não deis satisfação aos desejos da carne. (Gál 5,16).

Não procureis contentar a carne satisfazendo os seus desejos. (Rom 13,14).

E noutro lugar: Não sabeis que de quem quer que vos torneis escravos para lhe obedecer, permaneceis escravos daquele a quem obedeceis, seja do pecado para nele encontrar a morte, seja da obediência para nela encontrar a vida. (Rom 6,16).

Segundo todas estas palavras da Sagrada Escritura, vemos que não é ao corpo que compete governar, mas obedecer; que não há que satisfazer os seus desejos, contentar a sua carne, obedecer aos seus caprichos, não se tornar escravos dele.

Não é ao corpo que compete governar, mas obedecer.

Devemos considerar o nosso corpo como um servo e não como um senhor.

Deve estar submetido ao espírito; o corpo não é senão um instrumento de que nos devemos servir para o trabalho e para todas as coisas exteriores que podem contribuir para a glória de Deus e o bem dos outros. É um servo que deve obedecer;

há que conduzi-lo e dirigi-lo como se conduz um animal, como se ordena a um servo.

Se se dá demasiada liberdade a um servo, ele abusa dela e torna-se insuportável e faz o que não deveria fazer.

Conclusão prática.

Considerar o seu corpo como um servo que deve obedecer à alma e não como um senhor a quem nos devemos submeter.

Ordenar ao seu corpo com autoridade e firmeza.

2º É renunciar ao culto do seu corpo.

São Paulo diz-nos que importa vestir o seu corpo com modéstia e sobriedade e não com anéis e adornos de ouro, pedrarias ou vestes suntuosas. (1 Tim 2,9).

São Pedro recomenda-o também nas suas epístolas: Não ponhais o vosso ornamento em enfeitar-vos por fora com o anelado dos cabelos, os enriquecimentos de ouro ou de prata e a beleza das vestes; tentai antes adornar o homem escondido no coração, pela pureza incorruptível de um espírito cheio de doçura e de paz, o que é um rico e magnífico ornamento diante de Deus. (1 Ped 3,3).

Devemos, pois, suprimir do nosso exterior todo o adorno inútil e ocupar-nos muito mais em adornar o homem interior que se não vê, do que em adornar o homem exterior que se vê.

Devemos suprimir todo o ornamento exterior, tais como anéis, flores, brincos, correntes de ouro ou de prata, pingentes, relógio de ouro, pedraria, ainda que tais objetos provenham da família.

Não devemos ter nenhum ornamento exterior, nem sequer de estimação, excepto o crucifixo.

Devemos suprimir das nossas vestes tudo o que cheira a luxo, elegância, etiqueta, finura, requinte, arranjo, limpeza excessiva, tais como roupa branca fina, engomada, colarinhos, punhos, sapatos de verniz, borlas, etc… tudo o que agrada, é bonito, engraçado, amável, o que seduz o olhar.

Devemos evitar cuidar demasiadamente do nosso corpo, dos nossos cabelos, do nosso rosto, das nossas mãos, das nossas unhas, da nossa pele. Nunca servir-nos de cremes, perfumes, de sabão odorífero, de espelho: basta ter um espelho para fazer a barba e lavar o rosto e se pentear uma vez; não se admirar, contemplar-se, não procurar o bom aspécto, o porte, o bom tom, etc…

Nunca servir-se destas coisas delicadas e sedosas que se utilizam no mundo; faz-se do seu corpo um pequeno ídolo que se prepara para o fazer admirar no mundo ou em sua própria casa.

Quanto se opõe este culto do corpo ao espírito evangélico!

Perda de tempo, ocupação de si, esquecimento de Deus e dos seus deveres; quanto mais se pensa, menos se pensa em Deus e nos outros.

O verdadeiro ornamento do corpo é a pureza e a modéstia.

No mundo ocupa-se demasiado do corpo.

Os santos ocupavam-se pouco dele: São Bento, Santo Hilário, São Francisco, Bento Labre.

Quando se procura Deus e o próximo, não resta tempo para se ocupar do seu corpo.

Práticas

A tudo isto pode-se acrescentar:

Usar o cabelo curto,

uma batina de sarja sem corte pronunciado,

sapatos simples e pobres e todo o resto.

Fazer a barba duas vezes por semana.

Não tomar banho senão quando necessário.

Obrigar-se a fazer a tonsura de joelhos para nos recordar esta renúncia ao nosso corpo e também à nossa realeza espiritual sobre o mundo e todas as suas vaidades.

3º Renunciar ao seu corpo, é renunciar aos pecados do corpo

São Paulo diz-nos: Que o pecado não resida no vosso corpo mortal, de sorte que obedeçais aos seus desejos desregrados e não ofereçais assim os vossos membros ao pecado como instrumentos para cometer a iniquidade. (Rom 6,12).

Conduzi-vos segundo o espírito e não satisfareis os desejos da carne, porque a carne tem desejos contrários aos do espírito e o espírito tem desejos contrários aos da carne, opõem-se entre si.

E as obras da carne são fáceis de conhecer, são: a fornicação, a impudicícia, a impureza, a luxúria, a idolatria, os envenenamentos, as inimizades, as discussões, os ciúmes, as animosidades, as querelas, as divisões, as heresias, as invejas, os homicídios, as bebedeiras, as orgias e muitos outros crimes semelhantes a respeito dos quais vos declaro que os que os cometem não possuirão o reino de Deus. (Gál 5,19).

Por todas estas palavras vemos que é preciso renunciar ao pecado que há em nós, não satisfazer os desejos da carne e não oferecer os seus membros aos pecados.

Vemos que os principais pecados do corpo são: a impureza, a gula e a preguiça e que, consequentemente, importa renunciar a estas três espécies de pecados.

É necessário renunciar à impureza

Fazei morrer, diz São Paulo, os membros do homem terrestre que há em vós, a fornicação, a impureza, as paixões vergonhosas, os maus desejos. Pois são todas estas coisas que atraem a cólera de Deus. (Col 3,5).

O corpo não foi feito para a impureza mas para o Senhor, e o Senhor é para o corpo. (1 Cor 6,13).

A vontade de Deus é que sejais santos e vos abstenhais de toda a impureza, que cada um de vós saiba dominar o vaso do seu corpo santa e honestamente, não seguindo os movimentos da concupiscência como fazem os pagãos que não conhecem Deus, pois Deus não nos chamou para ser impuros, mas para ser santos. (1 Tes 4,3).

Segundo estas palavras, devemos renunciar a toda a impureza, a toda a sensualidade, a todo o desejo desonesto e saber dominar o vaso do próprio corpo santa e honestamente.

O corpo é naturalmente inclinado à impureza e a todos estes prazeres sensuais e desonestos.

O nosso corpo é como um lodaçal, um pântano infetado.

À superfície, a água parece clara e pura, mas no fundo há um lodo imundo.

Logo que se vem lançar nesta água um corpo estranho ou que uma ligeira brisa vem roçar a superfície, a água agita-se e imediatamente se turva e o lodo do fundo sobe e torna toda esta água impura.

Assim acontece com o nosso próprio corpo, enquanto nada o agita ou o perturba, parece calmo e puro à superfície.

Porém, logo que um corpo estranho vem penetrá-lo ou que uma brisa ligeira de um pensamento ou de um afeto o toca, então agita-se, turva-se.

O lodo impuro sobe à superfície e então nasce a perturbação, a agitação, a impureza, o prazer vergonhoso que se encontra nesta mistura de um corpo estranho que penetrou no nosso espírito, no nosso coração ou no nosso corpo.

Eis o que é oposto à pureza, porque a pureza não suporta nenhuma mistura, nenhum contato; nada deve penetrar em nós, a não ser Deus que é a própria pureza, o corpo é para o Senhor, pertence-lhe, só ele tem direito de gozar dele[171].

É, pois, a toda a mistura estranha, a todo o contato que é preciso renunciar para permanecer inteiramente puro e saber, como diz São Paulo, dominar o vaso do seu corpo santa e honestamente.

São Paulo compara o nosso corpo a um vaso: do mesmo modo que, quando se leva um licor precioso num vaso frágil, presta-se atenção, caminha-se com precaução, procede-se de modo a não o inclinar nem à direita, nem à esquerda, com medo de derramar algumas gotas, assim devemos levar com precaução o vaso do nosso corpo para conservar-lo sempre nos limites da castidade e da honestidade.


Regras de pureza.

Renunciar a todo o ato contrário à pureza

Para se conservar puro, é preciso renunciar a todo o prazer proibido no próprio corpo, a toda a agitação, emoção que perturbe a carne e lhe dê sensações sensuais,

a toda ação culpável, ou agradável, tais como carícias, toques inúteis, que podem comover a carne e ser-lhe agradável.

Há que renunciar não só ao que diz respeito a nós próprios, no que se refere ao nosso corpo, mas também a tudo o que pode vir das criaturas e não permitir a uma criatura entrar no nosso coração para além de Deus[vv].

Evitar toda a ocasião que nos pode fazer cair no pecado

Nosso Senhor fala-nos em termos enérgicos, quando, ao falar-nos da necessidade de evitar toda a ocasião de pecar nesta matéria, nos diz: Se o vosso olho vos escandaliza, arrancai-o, se a vossa mão… (Mt 5,29).

Renunciar a todo afeto demasiado natural

Há que renunciar a toda afeição demasiado natural, por quem quer que seja; reconhece-se que um afeto é demasiado natural, quando se pensa muitas vezes numa pessoa, se gosta de pensar nela, quando este pensamento enternece o coração, desperta os sentidos, quando se procura a companhia e o trato com estas pessoas.

Acontece até muitas vezes que o desejo de fazer bem a estas pessoas, de lhes ser útil espiritualmente, não é senão um perigoso pretexto que nos esconde o mal que está em nós.

Ser modesto nos seus olhares

Há que evitar olhares afetuosos ou prolongados sobre quem quer que seja e, sobretudo, sobre pessoas de um sexo diferente.

É pelo olhar que o amor entra no coração e entra até no corpo para o emocionar.

Não se deve nunca fixar ninguém de frente, sobretudo nos olhos, além de que isso não é honesto nem conveniente, é absolutamente contrário à castidade e à modéstia cristã.

Há pessoas que têm o hábito de fixar aqueles a quem falam; isso indica sempre uma tendência ao afeto e um desejo de ser amado.

David caiu no pecado, porque começou a olhar.

Eva olhou para o fruto proibido e o seu olhar prolongado inflamou nela a concupiscência e a fez cair no mal.

Job tinha feito um pacto com os seus olhos.

Quem quer que tenha olhado para uma mulher para a desejar já cometeu o adultério no seu coração.

Se o teu olho te escandaliza, arranca-o…

Evitar todas as relações inúteis com as mulheres

Vemos no Evangelho que os discípulos ficaram muito admirados de ver Jesus falar com a Samaritana, embora fosse no caminho, num lugar público.

Este espanto dos apóstolos revela-nos toda a conduta de Nosso Senhor Jesus Cristo com as mulheres, com que reserva ele lhes falava e que exemplos de prudência lhes dava a este respeito.

Para seguir estes exemplos de Nosso Senhor, não receberemos a mulheres a sós no nosso quarto, recebermos as mulheres num parlatório público, importa que as portas do parlátorio sejam envidraçadas, no seu próprio quarto pode-se receber as mulheres, quando estão acompanhadas de seus maridos ou de seus filhos, mas nunca sós, mesmo que quando isso possa ser necessário em certos casos particulares.

Não fazer visitas às mulheres sem necessidade

Devemos proibir-nos visitas inúteis e frequentes a mulheres e pessoas devotas, que se faz muitas vezes para passar tempo, por agrado ou por uma leve afeição.

Estas visitas não fazem senão entreter uma afeição muitas vezes demasiado natural, não se ocupando ordinariamente senão de coisas inúteis e frívolas; as mulheres interrogam, perguntam, querem saber o que se passa nas reitorias, nas casas, nas obras; deixa-se levar em murmurações, em indiscrições, imprudências que, mais tarde, têm consequências aborrecidas.

As mulheres devotas, principalmente, convidam muito os padres a vir vê-las, particularmente aquelas que não têm nada que fazer. Estas visitas acabam sempre por escandalizar o próximo que é sempre mais levado a julgar mal do que bem e acaba-se frequentemente por se tornar o assunto das conversas de todo um bairro ou de uma paróquia.

Não se faz ideia de quanto este artigo é importante e quantos sacerdotes se perderam por visitas inúteis.


Agir com prudência e reserva nos encontros, nos passeios, nas viagens em que nos podemos encontrar com mulheres

Importa, por prudência, evitar ter conversações demasiado longas com mulheres na rua; se se encontra alguma pessoa do seu conhecimento e se tenha algo de sério ou de necessário a dizer-lhe, há que ser curto e breve nestes encontros.

E, sem ser indelicado e descortês, saber desembaraçar-se educadamente da sua companhia, dizendo que não podemos permanecer por mais tempo.

Não convém também ir e vir numa rua com uma mulher.

Também há que evitar passear com mulheres, a pé ou de carro, tal não convém de modo nenhum.

Nunca tomaremos demasiadas precauções nesta matéria, nos tempos maus e corrompidos em que vivemos.

Não há que dar aos outros a ocasião de dizer mal de nós; já dizem bastante sem que lhes demos motivos.

Há que consultar bem as regras da prudência e da sabedoria antes de empreender viagens com mulheres, o que é sempre muito desagradável para si mesmo, e também muitas vezes escandaloso para os outros, sobretudo quando se vai aos hotéis.

Isto que dizemos das mulheres diz-se também das religiosas que não estão menos sujeitas à crítica do que as outras.

Evitar toda a familiaridade com as mulheres

Devemos evitar toda a familiaridade ou testemunho exterior de afeto com as mulheres, tais como abraços, aproximações, apertos de mãos ou outras coisas semelhantes que, sem ser sempre pecados mortais, são demasiadas vezes pecados veniais, atestam um afeto demasiado natural, despertam os sentidos e escandalizam o próximo quando se apercebe disso.

Nosso Senhor ao dizer a Madalena, após a sua ressurreição: “Noli me tangere”, mostra-nos por aí que se outrora ele lhe tinha permitido abraçar-lhe os pés, quando ela era pecadora, era para lhe mostrar que aceitava as suas lágrimas e os seus arrependimentos, mas que, agora, ela já não tinha mais necessidade destes sinais exteriores para o amar e que era necessário saber privar-se de todas estas manifestações exteriores quando se pertencia seriamente a Deus, para levar uma vida verdadeiramente espiritual.

Há pessoas que procuram beijar-vos a mão (é costume em muitos países beijar a mão do sacerdote), pode-se deixar fazê-lo aos homens sem inconveniente.

Quanto às mulheres, é necessário saber distinguir as que o fazem realmente por respeito pelo sacerdote, e as que o fazem somente para ter o prazer de vos beijar a mão e por um sentimento de afeto natural; a estas últimas, há que impedi-las retirando-lhes a mão.

Uma vez que se é sacerdote e mesmo desde que se leva a batina, não mais se deve abraçar em público as suas irmãs, as suas primas, os seus parentes, nem tratá-los por tu, sobretudo as que são mais jovens.

Quanto aos parentes adultos, tais como mães, tias, mulheres de idade, não se deve fazer senão quando tal parece conveniente e necessário, em certas circunstâncias, nas festas, no regresso de uma viagem.

No entanto, não se pode recusar os abraços destas pessoas quando se vê que o fazem com tanta simplicidade.

Importa, no entanto, fazê-lo em público, porque há sempre olhos maliciosos que vêem malícia e maldade onde não tem lugar para tal.

Saudações afetuosas entre pessoas do mesmo sexo.

Atração recíproca Inter virum et mulierem

Deus pôs entre o homem e a mulher uma atração muito natural porque foram criados um para o outro e de tal modo que só uma graça absolutamente sobrenatural e por uma ajuda muito especial que podem viver separados um do outro e prescindir um do outro.

Sendo assim, é preciso uma grande graça de Deus para se proteger de um certo prazer natural em encontrar-se juntos, a viver em conjunto e a proporcionar-se mutuamente as ajudas que a Providência pôs à disposição um do outro.

É, pois, necessário acautelar-se nas relações com as mulheres porque, embora se tenha renunciado a uma mulher como esposa, não se destruiu em si o sentimento natural que nos leva para elas, e quando se percebe que se sente um afeto, por mais leve que seja, por uma pessoa, mulher, há que imediatamente pôr-se de guarda para se desviar dela; e quando se percebe da nossa parte que uma mulher nos ama, por pouco que seja, há que igualmente afastá-la de nós para não lhe dar ocasião de nos amar mais.

Deve ser muito difícil a um homem viver com uma mulher sem experimentar alguma tentação a seu respeito, e reciprocamente, deve ser muito difícil a uma mulher viver com um homem e servi-lo sem experimentar também alguma tentação de afeto a seu respeito; se não há uma graça especial que eles devem tirar um e outra constantemente da oração, da comunhão e das regras de uma grande prudência e de uma grande reserva entre um e outro.

Para nos tornar a castidade mais fácil sob este aspécto, para praticar melhor o espírito de mortificação e de penitência, a exemplo de São Paulo nós não tomaremos mulheres ao nosso serviço particular, admitiremos um homem, um rapaz ou dois, que estarão ao serviço da igreja e da casa.

Em caso de doença, se não temos um homem capaz, podemos admitir uma enfermeira entre as religiosas ou as mulheres de idade.


Não receber presentes da parte de mulheres

Os presentes mantêm o afeto e as relações mútuas.

Não se pode receber nada para si, mas pode-se receber coisas para a igreja, para a comunidade, para os pobres, coisas que possam servir a toda a gente.

Não ir a casa das religiosas sem necessidade

As religiosas não estão mais isentas da crítica do que as outras e talvez o estão ainda mais, quando são assíduas e frequentam demasiado os sacerdotes ou se vai demasiado a casa delas.

Não se deve ir a casa delas senão por necessidade e, se se vai lá, não se sentar, a menos que seja para aí fazer o catecismo, presidir a uma reunião, cumprir um dever, mas nunca parar lá para conversar, passar tempo, manter conversas inúteis.

Evitar as carícias demasiado afetuosas com as crianças

Estamos de tal modo inclinados ao mal que encontramos por vezes, mesmo nas crianças uma ocasião de despertar em nós a concupiscência, sobretudo quando têm algumas qualidades naturais, algumas graças exteriores; a afeição nasce muitas vezes destas qualidades e elas levam-nos a abraços, a carícias inconvenientes, que despertam os sentidos e inclinam ao pecado.

É necessário vigiar sobre as próprias relações, inclusive com as crianças; não que seja necessário evitar todo o testemunho de afeto e de ternura, pois que vemos Nosso Senhor também ele abraçar as criancinhas; mas há que fazê-lo com uma finalidade honesta, para as atrair e levá-las a Deus e não para se satisfazer.

Evitar toda a palavra grosseira, equívoca ou desonesta. (Ef 4,29).

Meios para guardar a castidade.

É difícil guardar inteiramente a castidade

A vigilância.

A oração.

O trabalho.

A penitência.

Ter uma grande estima pela castidade.

Renovar de vez em quando o seu voto de castidade.

Resumo e conclusões práticas

Renunciar a todo o ato contrário à pureza.

Renunciar a todo o afeto demasiado natural.

Guardar a modéstia nos próprios olhares.

Evitar toda relação inútil com as mulheres.

Não receber uma mulher só no seu quarto.

Não visitar mulheres sem necessidade.

Agir com prudência e reserva nos encontros, passeios, viagens.

Evitar toda a familiaridade com elas, mesmo as da própria família.

Não admitir mulher ao seu serviço particular.

Não receber presentes delas para si próprio.

Não ir a casa das religiosas sem necessidade.

Evitar as carícias demasiado afetuosas com as crianças.

Evitar palavras grosseiras, equívocas ou desonestas.

Vigiar, rezar e trabalhar para guardar a castidade.

Ter uma grande estima pela castidade.

E renovar cada ano o seu voto de castidade.

Há que renunciar à gula, segundo pecado do corpo.

Há muitas coisas neste capítulo que devem entrar no capítulo da pobreza.

A gula é o segundo pecado do corpo ao qual é preciso renunciar.

Não se trata aqui daqueles excessos que fazem perder a razão; isso seria uma abominação ver almas privilegiadas, chamadas por Deus a uma vocação tão santa como a do sacerdócio, deixarem-se levar a semelhantes excessos e desonrar o seu hábito e os seus irmãos, fazendo, como diz São Paulo, um deus do seu ventre.

Trata-se apenas aqui do que fere a modéstia, a mortificação, a pobreza e de saber como um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo deve tomar o seu alimento.

O corpo procura naturalmente o seu alimento; ele foi-lhe dado por Deus para a conservação da sua vida. Porém, se se não modera este ardor natural de tomar alimento, se a fé não vem moderar esta ação inteiramente animal, então lança-se a ela com avidez e gula, procura-se demasiado o que é bom, saboreia-se os pratos, toma-se mais do que o necessário, pensa-se nisso com gozo, come-se com avidez, bebe-se, come-se mais por prazer do que por satisfazer uma necessidade da vida, ou então não se está nunca contente com nada, é sempre demasiado quente, demasiado frio, demasiado salgado, demasiado mau, demasiado ralo, demasiado espesso.

Palavras e exemplos de Nosso Senhor sobre este assunto

Podemos tirar das palavras que Nosso Senhor Jesus Cristo disse sobre este assunto, e dos exemplos que nos deu,

todas as lições que nos são úteis para regular a nossa conduta nesta matéria.

Na sua tentação no deserto, quando o demônio lhe diz para fazer um milagre para sacir a sua fome, Jesus respondeu-lhe:

O homem não vive só de pão mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.

Numa outra circunstância, Jesus tendo sede, mantém-se sentado à beira do poço de Jacob e esperava pacientemente que uma circunstância lhe permitisse beber; chega uma Samaritana que vem tirar água; ele pede de beber e encontra aí a ocasião de a instruir e de lhe dar a água viva da fé.

Os seus apóstolos chegando, dizem-lhe: Mestre, come; e ele responde com estas admiráveis palavras:

Eu tenho um alimento que vós não conheceis, o meu alimento é fazer a vontade de meu Pai.

Noutraocasião, diz que ele próprio é o nosso alimento:

Eu sou o pão vivo que desci do céu; aquele que come deste pão, viverá eternamente.

Os vossos pais comeram o maná no deserto e morreram; aquele que comer o pão que eu lhe darei… não morrerá jamais.

Pelas suas palavras, Jesus Cristo nos mostra que o nosso primeiro alimento é a palavra de Deus, como ter mais ardor por alimentar a nossa alma do que em alimentar o nosso corpo, que o nosso verdadeiro alimento é o próprio Jesus Cristo, pois que é o pão vivo que dá a vida, enquanto que o pão da terra não é senão um pão de morte:

Os vossos pais comeram o maná no deserto e morreram.

Aquele que comer deste pão não morrerá jamais.

Que devemos ter pelas obras de Deus e pela sua divina palavra, tanto ardor como as pessoas do mundo têm pelo alimento do seu corpo.

O meu alimento é fazer a vontade de meu Pai.

Não devemos dar mais atenção ou importância a este alimento do corpo do que o próprio Jesus lhe dava, quando, esperava pacientemente alguém que lhe viesse dar de beber à borda do poço de Jacob, quando, tendo fome, esmagava espigas nas suas mãos com os apóstolos, quando, tendo fome, procura figos numa figueira de Jerusalém ou que recusa fazer um milagre ao demônio para satisfazer a sua fome.

Segundo estas palavras do divino Mestre, devemos concluir que o discípulo, a exemplo do Mestre, deve tomar o seu alimento com fé, humildade, reconhecimento e sobriedade.

Tomar o seu alimento com fé

Ao tomar o nosso alimento material, devemos pensar neste alimento espiritual e divino que é o único verdadeiro, pois que só aquele nos conduz à vida eterna e que o alimento corporal não pode fazer-nos escapar à morte,

visto que o nosso verdadeiro alimento é Jesus Cristo, a sua palavra divina, a sua carne sagrada, o seu sangue adorável,

pois que um dia seremos chamados a este banquete eterno do céu onde nos alimentaremos da luz eterna que será a nossa vida.

Com humildade

Este alimento animal coloca-nos ao nível das feras: como elas nós comemos a erva dos campos, os frutos das árvores e os animais da terra.

Que nós devemos somente comer o quanto ganhamos realmente com o trabalho, pois que nos foi dito depois do pecado: Comerás o teu pão com o suor do teu rosto.

Que somos indignos de viver, uma vez que o pecador que ofende a Deus não merece viver, já que emprega a sua vida em ultrajar Deus, e aquele que não serve o seu Mestre é indigno de viver.

Com reconhecimento

Porque tudo vem de Deus e é ele que nos envia cada dia os alimentos que nos são necessários para viver.

É ele que cobre cada ano a terra de flores e de frutos para alimentar os homens e põe à nossa disposição os animais da terra, do mar e do ar para nos alimentar, e que nos alimenta, a nós, duma maneira ainda mais particular e providencial do que os outros e que não devemos nunca esquecer as orações que precedem e seguem as refeições, a exemplo do divino Mestre que dava sempre graças a seu Pai nestes momentos.

Estas orações são:

antes do almoço, o Benedicite simples
e as graças igualmente
antes do jantar, diremos resumidamente as do breviário
 ou seja Kyrie eleison

Christe eleison

Kyrie eleison

Pater
Benedicite, Dominus; nos et ea quae sumus sumpturi
Benedicat dextera Christi[ww].
 Depois de comer Agimus tibi gratias
Pater
Benedicamus Domino
Fidelium animae
à ceia, as mesmas orações que para o jantar.


Com sobriedade.

Devemos comer para manter a vida do corpo, devemos contentar-nos com o necessário e não ir além, porque o excesso é mais prejudicial do que proveitoso, de qualquer modo que seja.

São Paulo nota-o muitas vezes nas suas cartas,Sobrius esto[xx].

A sobriedade é a guardiã da castidade; os que comem e bebem para além do necessário não podem ser castos senão muito dificilmente.

Vinum res luxuriosa[yy].

A sobriedade deixa-nos sempre o corpo livre e disposto, enquanto que a intemperança, ainda que leve, tira-nos o ardor para o trabalho embota-nos ou agita-nos e leva-nos a muitas faltas interiores ou exteriores.

São João Batista no deserto vinum et siceram non bibet[zz].

Todos os santos foram de uma grande sobriedade a respeito do alimento.

Não servir-se demasiado abundantemente,

ávidos, delicados, glutões, comer demasiadamente.

Sobriedade e mortificação

Há a sobriedade durante a refeição. Há também sobriedade e mortificação fora do tempo das refeições.

É absolutamente contrário à mortificação comer a cada instante, ter guloseimas no seu quarto ou no seu bolso e tomá-los a cada instante, sem necessidade.

Quando se vai à cozinha ou a outra parte, colher frutos, alimentos, se os há, pelo prazer de comer.

Se se vai ao quintal, colher sem motivo frutos, uvas, maçãs, ou outras coisas só pelo prazer de os provar, de comê-las.

Estes hábitos indicam um homem sem moderação, sem mortificação e que se deixa levar por todos os desejos da sua carne, sem os reprimir.

É necessário agir em tudo com reserva e moderação.

A gula leva-nos muito ao roubo e isso sem nos darmos conta, porque estas gulas são muitas vezes pequenos roubos feitos ao próximo.

E o escândalo que resulta daí para o próximo, sobretudo para as crianças que são levadas a seguir; agindo assim, autoriza-se estes defeitos aos outros.

Açúcar, cerveja, xarope, licores, frutas, um trago[aaa], infusão, bombons.

Mortificação nas refeições, não é necessário faltar à sobriedade e à mortificação a si próprio nem fazer faltar os outros pressionando-os a beber

ou a comer, o que é contrário à delicadeza, à conveniência e à mortificação.

O alimento deve preencher várias condições para atingir a finalidade da divina Providência.

Estas condições, estas qualidades são a limpeza, a quantidade e a simplicidade. Pode-se acrescentar a exatidão para as cozinheiras e a qualidade para os doentes.

A limpeza

A limpeza é a primeira das qualidades porque é a mais útil à vida; a sujeira é prejudicial ao corpo e à saúde e indica, naqueles que preparam os alimentos, a preguiça, a negligência e a falta de caridade.

É, pois, um grande dever para os cozinheiros preparar com limpeza os seus alimentos, lavar, limpar os legumes, manter limpos os alimentos, não os deixar apodrecer.

As doenças, indisposições que ocorrem vêm muitas vezes da sujeira ou da negligência que se teve ao preparar o alimento.

Devem-se fazer estas coisas com caridade pedir ajuda quando um só não pode fazê-lo.

Pontualidade

Numa comunidade, é preciso que as refeições estejam prontas à hora indicada pelo regulamento, de outra forma isso causa muito incómodo.

E também, todos devem tomar as refeições em conjunto e à mesma hora, a não ser por razões graves que os dispensem disso.

A ordem e a edificação dependem do cumprimento deste artigo.

Se cada qual vem tomar as suas refeições à hora que lhe agrada, então é um grande incómodo para os irmãos ou irmãs cozinheiros, e faltar à caridade tornando o seu trabalho, já tão penoso, ainda mais penoso.

Quantidade

A alimentação tem por finalidade manter a vida do corpo, há, pois, que dar ao corpo o alimento que lhe é necessário.

A quantidade varia com a idade, o temperamento, a saúde.

Há pessoas para quem é necessário muito alimento, outras menos.

Nunca devemos examinar o que os outros comem.

Porém, devemos, com caridade, fornecer-lhes o necessário e até mais que o necessário para não os expor a não ter o bastante, sem examinar se um toma mais, o outro menos; isso pertence à consciência de cada um. Os que comem mais fazem, por vezes, mais atos de mortificação do que aqueles que comem menos.

almoço:           uma sopa, duas sobremesas

jantar:              sopa, dois pratos, duas sobremesas

ou três pratos e duas sobremesas

ceia:                sopa, um prato, duas sobremesas.


A qualidade

Esta condição diz respeito aos doentes e aos que se deve cuidar por caridade.

A caridade impõe-nos um dever de cuidar daqueles que estão doentes ou fracos, e seria uma falta privá-los do que lhes convém, quando se pode.

A simplicidade

A simplicidade consiste em separar da alimentação tudo o que cheira a luxo, vaidade, requinte, satisfação do gosto e da gula.

Não são os pratos refinados, suculentos, cheirosos, bem preparados, bem coloridos, que são os mais úteis à saúde.

Ao contrário, prejudicam bastante o corpo excitando-o, enervando-o, atacando o sistema nervoso e sanguíneo e fazem aparecer muitas doenças.

O Espírito Santo diz que a intemperança matou mais homens do que a espada; abrevia-se muito a própria vida pelo uso de comidas refinadas e bem preparadas.

Ao contrário, uma alimentação simples e frugal mantém a força e o vigor do corpo e preserva-nos de muitas enfermidades[172].

Comer à pressa e sem cerimónias

Parece-me que é uma função que não se deveria fazer senão de passagem e sem lhe dar a importância que ordinariamente se lhe dá.

Não parece que se dá demasiada importância a esta função animal?

Esta preparação de mesas, de salas, talheres, toalhas, pratos, instrumentos elegantes e preciosos e até multiplicados segundo as diversas espécies de comidas e vinhos.

Quanto isso é oposto à simplicidade e à mortificação! Como os pobres vivem mais simplesmente! Eles não dão tanta importância à preparação de suas refeições.

Muitas vezes não têm por mesa senão os seus joelhos, por cadeira, um banco ou uma pedra, por instrumento uma colher de barro ou de madeira e uma parede para apoiar as suas costas fatigadas pelo trabalho.

E o que se encontra sobre a sua mesa?

Uma sopa, batatas da terra, queijo, legumes, por vezes, carne.

Se pudéssemos fazer como eles e comer como pobres!

Nosso Senhor não comia muitas vezes e quase sempre como pobre, quando estava sentado à beira do poço de Jacob e os seus discípulos lhe diziam que comesse?

Não comia como pobre quando os seus apóstolos, forçados pela fome, esmagavam espigas nas suas mãos para se alimentar?

Não comia como pobre quando procurava alguns figos numa figueira para se alimentar, porque tinha fome?

É que, este alimento corporal lhe importava pouco, tinha um outro alimento de que alimentava a sua alma: tenho um alimento que vós não conheceis.

Deixemos, pois, às pessoas do mundo, aos burgueses, este cuidado das mesas, esta importância, este trabalho, este aparelho, estas cerimónias que eles dedicam a alimentar este pobre corpo.

Contentemo-nos com pouco, tomemos realmente o necessário mas evitemos estes aparatos, estas cerimónias em uso em casa dos ricos e dos burgueses, comamos como viajantes e pobres[173].

Como seria simples e pobre fazer como os soldados, a cozinhar tudo numa panela: carne, legumes, colocar a panela na mesa ou um outro grande prato que contivesse todo o alimento e tirar o que nos é necessário e comer a sua parte, em pé ou sentado num banco, ou de pé contra uma parede, como os pobres, como os viajantes.

Como seria mais simples, mais conforme à pobreza e à mortificação.

Os soldados não fazem assim e nem por isso se apresentam pior.

Não somos nós os soldados de Nosso Senhor?

É, então, que desprezando assim este alimento terrestre e material, poderíamos vir a dizer como o divino Mestre: tenho um alimento que vós não conheceis: o meu alimento é fazer a vontade de meu Pai.

Vivendo assim, que bom exemplo não se daria aos fiéis e às crianças!

Os fiéis e as crianças não têm sempre os olhos postos no que comemos?

Se se tem alguma coisa de mais fino, de mais delicado, de mais apetecível, não excita isso o seu desejo e a sua inveja? e não deixam de dizer e de pensar: vive bem melhor do que nós.

Se queremos ter ascendência sobre eles, importa fazer-se pobre com eles, fazer-se pequeno.

Não há porque separar-se dos pobres, nem sequer no alimento e não expô-los a dizer: está muito melhor tratado do que nós.

De que serve fazer-se pobre, se não se vive como os pobres?

E este ponto é capital, porque é da boca que vem em parte a edificação ou o escândalo.

Não deveríamos ter vergonha de ser melhor tratados, melhor alimentados do que os outros? de ter bons e belos pedaços? pratos bem condimentados, bem preparados, bem dourados? enquanto que os outros não têm senão justamente o necessário.

Não deveríamos partilhar com os pobres, com as nossas crianças tudo o que comemos? um pai não partilha com os seus filhos?

Os santos faziam todos pouco caso da alimentação e consideravam esta função, por assim dizer, como a mais humilhante de todas.

Como era belo e edificante o pobre cura d’Ars, atravessando a praça com o seu pote na mão e comendo a sua sopa enquanto ia visitar o seu doente!

Ele não tinha tempo de comer, como está dito no Evangelho dos próprios apóstolos: eles comiam trabalhando, andando, como fazem os pobres e convertiam mais pecadores vivendo assim do que comendo numa boa mesa, porque este gênero de exemplo impressiona mais do que os outros, visto que o mundo é tão inclinado a satisfazer-se nesse sentido.

O bom cura d’Ars ordinariamente cozia uma marmita de batatas que comia com pão, enquanto durava a provisão; tinha mesmo tentado comer erva nos campos.

Adquiria o pão dos pobres, mendigado de porta em porta e dava-lhes o seu, para ter a felicidade de comer com os pobres.

Como os santos se tratavam mal sob este aspécto!

E como amavam a pobreza e a simplicidade e afastavam da sua mesa tudo o que cheira a luxo, requinte, cerimónias, aparato, bem-estar!

Pequeno corolário sobre o fumo

É proibido fumar e não se deve inalar senão por necessidade.

Resumo e conclusões práticas.

  • Renunciar à gula,
  • é renunciar a todo o excesso que pode perturbar o espírito, a razão ou enfraquecer o corpo,
  • é renunciar a tudo aquilo que não é necessário e que não serve senão para favorecer o gosto, o paladar, tais como pratos delicados, vinhos finos, licores, café, doces, coisas raras e rebuscadas.
  • não se deve usar destas coisas senão quando há uma verdadeira necessidade e com uma grande moderação; não se deve usar disso no quarto senão com permissão,
  • não se deve expor à tentação, guardando no quarto licores, vinhos ou outras coisas semelhantes, pois estas provisões devem estar à parte para serem dadas quando há realmente necessidade,
  • é renunciar a tudo o que cheira a luxo, requinte, bem-estar, aparato, cerimónias nas refeições,

  • é contentar-se com alimentos ordinários no que respeita ao pão, à carne, aos frutos, aos legumes, etc… a não ser que se esteja doente,
  • é não comer fora das refeições sem necessidade,
  • é evitar ir comer fora, porque a gula encontra aí muitas vezes a sua satisfação,
  • evitar ir a casa das pessoas para aí tomar café ou pequenas refeições,
  • não tomar nada em casa dos outros, quando se vai a qualquer parte, assim evita-se muita gula e muitos pequenos escândalos e despesas inúteis aos outros, só a necessidade nos pode dispensar deste ponto.

Há que evitar perder tempo à mesa, deve-se comer depressa e sem cerimónias.

É necessário renunciar à preguiça

A preguiça é o terceiro pecado do corpo. Nosso Senhor Jesus Cristo fala-nos muitas vezes, no Evangelho das tristes consequências deste infeliz defeito.

Quando fala da figueira estéril que será cortada e lançada ao fogo, porque não dá frutos,

do operário a quem o senhor tinha confiado um talento e que foi posto na prisão por não o ter feito frutificar,

servos que adormeceram e deixaram semear o joio nos campos do pai de família.

Todos estes exemplos e estas parábolas nos mostram quanto Deus odeia a preguiça e como a castiga, já neste mundo e sobretudo no outro.

A preguiça é uma grande apatia à qual nos entregamos e que nos faz neglicenciar inteiramente os nossos deveres religiosos ou temporais.

A preguiça leva-nos à ociosidade, ao sono e à moleza que são, por assim dizer as três filhas da preguiça.

A ociosidade

A ociosidade consiste em passar o seu tempo sem fazer nada.

Fomos condenados ao trabalho por Deus, nascemos para o trabalho.

Comerás o teu pão com o suor do teu rosto.

Jesus Cristo trabalhou como um pobre até aos trinta anos.

São Paulo trabalhava com as suas próprias mãos, por vezes, noite e dia, para prover às suas necessidades e não ser pesado a ninguém e ele próprio dizia: aquele que não trabalha, não deve comer.

Há diferentes espécies de trabalhos, há trabalhos manuais e trabalhos espirituais.

Cada um deve fazer o trabalho a que foi chamado com zelo, atividade, submissão e caridade.

Perder o seu tempo é uma coisa irreparável, é desobedecer a Deus, é ser injusto para com o próximo e tornar-se infeliz e insuportável para si próprio.

A ociosidade é a mãe de todos os vícios. O homem ocioso está exposto a todas as tentações. Aquele que trabalha, ao contrário, está ao abrigo de muitos maus pensamentos; quando o espírito está ocupado no trabalho, não tem tempo de pensar no mal.

Se alguém deve trabalhar sobre a terra, é sobretudo o sacerdote, pois que o seu trabalho é tão relevante, tão importante, para ele e para os outros.

Dado que a sua missão vem de Deus e que do seu trabalho sobre a terra depende a glória de Deus e a salvação das almas, a felicidade ou a infelicidade dos homens, neste tempo e na eternidade; diante de uma semelhante missão, um tão grande dever, deve o sacerdote deixar de trabalhar um só instante, pois que parando de trabalhar pode ser causa de que muitas almas se percam?

Oh, sacerdote, quão grande é a tua responsabilidade e como te deves consumir no trabalho para a glória de Deus e a salvação das almas!

E, no entanto, se há um homem sobre a terra que passa por não fazer nada, é o sacerdote!

É bem verdade que a sua obra é totalmente espiritual e que não se vê sempre, mas é bem verdade também que se vê muitas vezes o sacerdote desocupado e passar o seu tempo inutilmente[174].

Isso é tão verdade que quando se sai fora por algumas razões sérias, encontra-se pessoas que nos lançam à cara e nos dizem: Bom dia, senhor padre. Vai passear ou vem do passeio. Como se não se fizesse senão passear todo o dia. Eis a reputação que temos no mundo, passear-nos, perder o nosso tempo. Triste reputação! Que pena! se nos vissem menos vezes nas ruas e nas praças, menos vezes a comer em casa de uns e doutros, fazer menos visitas inúteis, mais ocupados com os pobres, os doentes, as boas obras, pregar mais frequentemente e atrair o mundo pela nossa fé e pela nossa caridade, não se nos perguntaria com tanta frequência se nos vamos passear.

O sacerdote, mais do que ninguém, deve trabalhar todo o dia. Os pedreiros trabalham muito todo o dia, os carpinteiros, os marceneiros, os agricultores, os alfaiates, etc… Todas essas pessoas trabalham todo o dia e até algumas vezes de noite, para ganhar a sua vida e a dos seus filhos e o sacerdote há-de ter uma melhor sorte do que os outros, ele que tem um emprego muito mais elevado do que estes.

Não será porque o sacerdote não trabalhou, ou trabalhou mal, que o campo do Pai de família está em tão mau estado? que a ignorância invadiu os nossos pobres operários e que eles se rebelam hoje contra nós?

Se tivéssemos trabalhado bem e tivéssemos feito boa obra, não seríamos tão infelizes, nem tão perseguidos.

Se o campo está inculto e não produz senão ervas más, é porque não semeamos, nem arroteamos.

Há que trabalhar em pregar, em catequizar, noite e dia. Eis o nosso trabalho!

Que os fiéis e as pessoas do mundo não vejam o sacerdote ocioso, desocupado; é o maior escândalo que lhes podemos dar, porque, da nossa ociosidade eles concluem muitas outras coisas.

Não há que dar a ideia de passear-se, de não ter nada que fazer.

Quando se tem necessidade de tomar ar ou de um pouco de recreio, importa procurar fazê-lo num lugar solitário, de modo a não ser visto pelo mundo.

Conversar nas ruas, parar, dizer coisas inúteis…

Vemos Nosso Senhor convidar os seus apóstolos a repousar após os grandes trabalhos da sua missão, mas não vão para o mundo, procurar repouso nas festas do mundo, os condus à parte seorsum in desertum locum requiescite pusillum[bbb].

recreios

passeios

férias

salões

Dispor do seu tempo com ordem.

Se não se põe ordem no seu trabalho, não se faz nada ou, se se trabalha, faz-se pouca obra, porque o trabalho não é continuado.

Há os que chegam ao fim do seu dia, da sua semana, do seu ano e da sua vida e que nada fizeram, porque não fizeram um trabalho continuado; começaram muitas coisas e nada acabaram, muitos empreendimentos e nada acabado: trabalho infrutuoso.

Importa que o trabalho seja constante, perseverante e regular cada dia, cada semana e então chega-se a fazer alguma coisa, a ter algo acabado.

De outra forma, nada. E quantos, infelizmente, caem neste defeito de irregularidade e de inconstância no seu trabalho; dir-se-ia, ao vê-los, que trabalham muito; agitam-se, vão, vêm, falaram muito, mexeram-se muito para nada fazer e não chegar a nada. Aí está uma grande infelicidade.

O cura d’Ars, ao falar dessas pessoas, e de si próprio por humildade:

muito trabalho e pouca obra.

Importa fixar o tempo do seu trabalho e, quando se começou algum trabalho, alguma obra, não a abandonar sem a ter acabado, para começar outra.

Também não há que perder o seu tempo nas pequenas visitas que se podem fazer entre irmãos.

Habituar-se a ser breves; acontece que se perde muito [tempo] nas visitas pessoais: senta-se, conversa-se, tagarela-se, perde-se o tempo. Há que dizer o que é necessário e, quando se terminou, vai-se embora para não perder o seu tempo e não o fazer perder aos outros.

É o que se chama, em termos da rua, vadiar, vadio, que não faz nada, que passa o seu tempo em falar, a estender-se, sentado, a ir daqui para ali, para matar o tempo. Qualquer o é mais ou menos.

É bom ter um trabalho sério para fazer e ter uma vontade firme de acabá-lo, fixar nele a sua atenção e o seu espírito e distrair-se pouco desta obra que se vai fazer e acabar.

Então, tem-se o espírito ocupado.

Resumo

O sacerdote deve ser um homem de trabalho por excelência.

Importa que não se o veja nunca ocioso e desocupado.

Há que pôr ordem no seu trabalho e ser constante no que se faz.

É necessário ocupar-se num trabalho sério e não perder o seu tempo em coisas inúteis e frívolas.

Não há que perder o seu tempo em conversas ou visitas inúteis junto dos seus companheiros; não ser do número dos que se chamam vadios.

Estar sempre ocupado para não dar ocasião aos fiéis de nos considerarem como preguiçosos, pessoas que não têm nada que fazer.

O sono

O sono é um repouso que Deus Nosso Senhor nos deu para reparar as nossas forças perdidas pelo trabalho do dia.

Apenas se deva aceitar o repouso necessário para repor o próprio corpo em condições de trabalhar. Fica-se na cama sem necessidade, só por prazer, é uma falta de preguiça.

E quando se fica na cama sem dormir e sem necessidade, expõe-se a muitas tentações e faltas.

Recordar-se que foi enquanto os operários dormiam que o inimigo veio semear a cizânia no campo do pai de família.

E esta reprovação que Jesus Cristo dirigia a Pedro quando lhe diz: Pedro, tu dormes? nem sequer pudeste vigiar uma hora comigo?

Importa deitar-se cedo e levantar-se cedo.

Saber que o trabalho da noite é penoso, prejudicial à saúde e que é um grande erro deixar para a noite o próprio trabalho, o seu breviário, as suas orações; faz-se mal, mais para se desembaraçar disso do que para cumprir o seu dever, nem se tira nenhum proveito.

Levantando-se cedo, o dia é sempre melhor preenchido, a oração sempre feita, o breviário dito em sua hora; está-se mais contente, tudo vai melhor e se enquadra melhor no dia, nada se encontra em atraso.

Se se começa mal o seu dia, não se o acaba melhor.

Prática

O tempo necessário ao repouso em geral, para os que se encontram bem, é de sete a sete horas e meia.

Deve-se deitar às nove ou nove horas e meia e levantar-se às quatro horas e meia, é a regra da casa; se há razões para agir de outro modo, nunca se deve fazer sem permissão; a saúde altera-se muitas vezes porque não se repousa o necessário ou se deita demasiado tarde. Não percamos o nosso tempo durante o dia e teremos tempo para fazer tudo. Fixemos bem as nossas horas de trabalho e de ocupações diversas e tudo irá melhor para o levantar-se e o deitar-se.

O levantar-se e o deitar-se é um artigo muito importante para aproveitar bem o dia.

Não se deve dormir durante o dia sem necessidade, nem permissão; e devemos acusar-me de ter feito quando tal aconteceu.

A moleza

A moleza é uma atitude mole, efeminada ou indolente do corpo, que se adota e que provém da preguiça.

Há que renunciar à moleza.

A moleza denota uma alma que procura as suas conveniências, as suas comodidades, que não quer sofrer nada, aguentar nada, uma alma sem força, sem energia, que não sabe suportar nada, nem sequer o menor incómodo.

Pode-se ser mole, indolente em muitas circunstâncias.

Há que evitar má posição na cama, no seu quarto, nas cadeiras, quando se está sentado; na igreja quando se está de joelhos ou sentado.

Evitar apoiar-se indolentemente quando se está em pé ou sentado, tomar posições moles apoiando as costas, os cotovelos.

Evitar estender os braços, as pernas, bocejar, cruzar as pernas, sobretudo em companhia,

e mesmo só.

Evitar estender-se nas cadeiras, nos sofás, nos canapés, deitar-se para trás, adotar qualquer posição mole ou efeminada.

Não escolher os lugares mais cómodos quando se vai a um lugar qualquer, sobretudo na igreja; vale mais prescindir de um genuflexório e colocar-se no primeiro lugar que se encontre, deixando os bons lugares para os outros.

Um cristão e sobretudo um sacerdote ou religioso deve sempre ter uma compostura honesta, cristã, boa, mortificada.

É necessário glorificar a Deus no seu corpo.

O corpo conduz-nos naturalmente ao pecado, as suas inclinações são terrestres

e sensuais e levam-nos continuamente à preguiça, à gula, à impureza.

Compete-nos lutar continuamente contra este pobre corpo e a luta é muito constante e muito cansativa.

É o que levava São Paulo a dizer,

Ó como sou infeliz! quem me libertará deste corpo de morte? (Rom 7,24).

4º Renunciar ao seu corpo, é fazer dele um instrumento de justiça e de penitência

Após ter renunciado aos pecados do corpo, é ainda necessário fazer penitência para obedecer à palavra de Nosso Senhor que tanto o recomenda no Evangelho.

Fazei penitência diz Jesus Cristo. Se não fizerdes penitência, perecereis todos. (Lc 13,3).

Produzi, pois, dignos frutos de penitência, dizia São João Batista no deserto, aos que vinham vê-lo,

e não digais: temos por pai Abraão, pois eu vos digo que Deus é bastante poderoso para fazer destas pedras filhos de Abraão. (Lc 3,8).

É o que os apóstolos pregavam quando Nosso Senhor os enviava a anunciar a sua palavra aos povos: Fazei penitência, porque o Reino de Deus está próximo. (Mt 3,2).

São Paulo não cessa de nos falar da penitência nos seus escritos.

Não entregueis os vossos membros ao pecado, como instrumentos para cometer a iniquidade, mas entregai-vos a Deus como vivos, de mortos que estáveis, e que os vossos membros lhe sirvam como armas de justiça. (Rom 6,13).

Armas de justiça, para vos castigar[175].

Diz-nos ainda ele que os que são de Jesus Cristo crucificaram a sua carne com as suas paixões e os seus desejos desordenados. (Gál 5,24).

Mortificai os membros do vosso corpo terrestre. (Col 3,5).

E, falando de si próprio, dizia: Eu castigo o meu corpo e reduzo-o à servidão com receio de que, após eu próprio ter pregado, não seja eu também reprovado. (1 Cor 9,27).

A obrigação de fazer penitência é, pois, claramente demonstrada por todas estas palavras de Nosso Senhor e de São Paulo.

  • É necessário fazer penitência,
  • produzir dignos frutos de penitência,
  • fazer dos seus membros instrumentos de justiça, após ter feito deles instrumentos de pecado.

  • É necessário castigar o seu corpo,
  • é necessário crucificar a sua carne.

Crucifica-se a própria carne recusando-lhe o que ela pede.

Crucifica-se os seus pés não indo aonde eles queriam ir, condenando-os ao repouso,

as suas mãos não fazendo o mal, mantendo-as estendidas em forma de cruz.

Castiga-se o seu corpo praticando a disciplina, levando algum instrumento de penitência, marcando-o com os sinais da Paixão, como São Paulo: Levo no meu corpo os estigmas de Jesus Cristo. (Gál 6,17). Estendendo-o sobre a cruz, no madeiro.

Reduz-se o seu corpo à escravidão não o deixando mandar, mantendo-o submetido ao espírito e à fé, como um escravo deve estar submetido ao seu senhor. Ele tem muito tempo de ser exigente e senhor quando sofre e está doente.

A penitência expia os pecados passados, preserva de falta no futuro, dá vigor à alma para a prática da virtude, impede-nos de cair na tibieza e na moleza, e faz-nos merecer muitas graças para nós e para os outros.

A penitência torna-nos conformes a Jesus Cristo e faz-nos participar nos seus méritos.

São Paulo diz que completava nele o que faltava à paixão do Salvador.

Torna-se conforme à paixão do Salvador para ter parte na sua ressurreição.

Todos os santos fizeram penitência; não podemos ler a vida de um santo sem ficar espantados com as penitências que fez.

Prática

  • Praticar a disciplina, ao menos uma vez por semana,
  • levar uma ou outra vez, um instrumento de penitência, com a permissão dos superiores.
  • Deitar-se algumas vezes sobre a tábua, com permissão dos superiores.
  • Levantar-se algumas vezes de noite para rezar, dizer por exemplo, 5 Pater e Ave com os braços em cruz.
  • Suportar sem se queixar as incomodidades da vida.
  • Cumprir o seu dever, apesar das repugnâncias da natureza.

Pode-se encontrar ocasião de fazer penitência desde manhã até à noite, se se quer aproveitar as ocasiões que diariamente se apresentam.

Há uma penitência que vem de Deus, que se encontra no trabalho, no sofrimento e na morte.

Há uma penitência que vem do próximo, suportando tudo o que vem da sua parte, sem se queixar e sem lho fazer notar.

Há uma penitência que vem de nós próprios, infligindo-nos penitências voluntárias.


5º Renunciar ao seu corpo, é fazer dele uma hóstia viva pela prática da justiça e da virtude

O corpo é para o Senhor, diz-nos São Paulo. (1 Cor 6,15).

Se os nossos corpos são para o Senhor, devem servir ao seu desígnio, não podemos fazer dele o que queremos e devemos fazer de tal modo que o sirvam o melhor possível.

E é por isso que São Paulo também nos diz e acrescenta:

Glorificai a Deus nos vossos corpos mortais. (1 Cor 6,20).

Cristo será glorificado no meu corpo. (Fil 1,20).

Diz ainda mais: os nossos corpos são os membros de Jesus Cristo. (1 Cor 6,15).

É por isso que ele tira esta conclusão dizendo:

Conjuro-vos, pois, meus irmãos, pela misericórdia de Deus, a oferecer-lhe os vossos corpos como uma hóstia viva, santa e agradável a seus olhos, para lhe dar um culto racional. (Rom 12,1).

De acordo com estas palavras, vemos que importa glorificar Jesus Cristo no seu corpo.

Que os nossos corpos são os membros de Jesus Cristo, é necessário torná-los dignos desta glória.

Que há que viver como homem totalmente celeste, tal como São Paulo o diz aos Coríntios[176].

Como o primeiro homem é terrestre, os seus filhos são também terrestres, e como o segundo homem é celeste, os seus filhos são também celestes; assim como levamos a imagem do homem terrestre, assim, agora levamos a imagem do homem celeste. (1 Cor 15,47).

Se há que viver como homem celeste, é necessário, para isso, dar a morte ao homem terrestre que está em nós, fazê-lo desaparecer quanto o pudermos.

Importa fazer do nosso corpo uma hóstia viva, levar no nosso corpo a morte de Jesus Cristo, a fim de que nele apareça a vida de Jesus Cristo.

Tornamo-nos hóstias vivas consumindo-nos por Deus como uma vítima que se imola cada dia por ele, como um círio que se consome pelo fogo, como o incenso que se consome queimando-se e aniquilando-se ao espalhar um bom odor diante de Deus.

Tudo em nós deve propagar este bom odor de Jesus Cristo, deve respirar no nosso exterior esta vida celeste, esta vida divina que devemos ter interiormente.

Devemos fazer a Deus o sacrifício de nós próprios e Jesus Cristo deve surgir de nós.

Somos os membros de Jesus Cristo.

É, pois, necessário que se veja Jesus Cristo nos nossos membros,

em todo o nosso exterior e que façamos desaparecer do nosso exterior tudo o que desonraria este título de membro de Jesus Cristo.

É necessário que se veja Jesus Cristo no nosso exterior, na nossa atitude, no nosso porte, na nossa palavra, nas nossas ações, nas nossas mãos, nos nossos pés, nos nossos olhos, na nossa cabeça, em todo o nosso ser, porque todo o nosso ser deve revelar Jesus Cristo e espalhar o bom odor das suas virtudes.

O corpo é a expressão da alma. É pelo corpo que nós edificamos. É também pelo corpo que nós escandalizamos. Os fiéis não vêem a alma, só vêem o corpo.

É, pois, pelo corpo que devemos edificar o nosso próximo e reproduzir Jesus Cristo que está em nós.

Não sou eu que vivo, é Jesus Cristo que vive em mim.

Há, pois, que fazer desaparecer do seu exterior tudo o que é grosseiro, carnal, terrestre, tudo o que cheira a carne, a moleza, a sensualidade, a preguiça, tornar-se homens celestes, não tomar da terra senão o que é necessário para manter a vida do corpo e fazer dele os órgãos de Jesus Cristo.

Tal como, quando se abre um frasco de perfume, o bom odor se escapa do frasco, assim conosco, quando falamos ou agimos, o bom odor de Jesus Cristo deve sair de nós, isto é, a sua fé, o seu amor, a sua mansidão, a sua humildade, a sua caridade.

Há que se desfazer e se corrigir de todos os seus defeitos exteriores do corpo que são um obstáculo à glória de Jesus Cristo em nós e não edificam o próximo

Todos temos defeitos exteriores que, sem serem pecados, são no entanto um obstáculo à manifestação de Jesus Cristo em nós e afastam de nós o próximo, expondo-o a nos criticar ou a rir-se de nós. Devemos, portanto, procurar conhecer estes defeitos exteriores e trabalhar para nos corrigir, para a glória de Deus e a salvação das almas.

Se há almas que devem trabalhar para se corrigir destas espécies de defeitos, são, sobretudo, os padres, os religiosos e as religiosas que, pela sua vocação, estão obrigados a glorificar Jesus Cristo neles e a levá-lo em todo o seu exterior.

Que uma pessoa do mundo pareça grosseira, simplória, deseducada, precipitada, grosseira, não chamará demasiado a atenção; mas que um sacerdote ou religioso tenham estes defeitos exteriores, prejudicarão grandemente a eles próprios, à religião, ao próprio Deus e aos seus irmãos em religião.

É, pois, importante trabalhar para se corrigir dos próprios defeitos exteriores.

Além disso, não são os sacerdotes, os religiosos, os favoritos de Deus, seus filhos predilectos, seus filhos escolhidos, os cortesãos que formam a sua corte na terra, que representam Deus entre os homens e que devem dar aos homens uma grande ideia de Deus, pois que estão com ele e seus homens escolhidos.

Ora, não é desonrar Deus estar cheio de defeitos exteriores e representá-lo tão mal aos olhos do mundo e vendo-nos com todos os nossos defeitos, as nossas misérias, serão tentados a rir-se de nós e a desprezar Deus que nós representamos tão mal?

Daí, devemos concluir quanto importa a cada um de nós corrigir-nos dos nossos defeitos exteriores.

Aliás, os nossos defeitos exteriores são sempre a expressão dos nossos defeitos interiores e trabalhando para nos corrigir destes, nos corrigiremos ao mesmo tempo daqueles.

Diferentes defeitos exteriores do corpo

Pode-se ter defeitos exteriores,

no seu aspécto,

na sua postura,

na sua apresentação,

nas suas maneiras,

no seu tom,

nos seus modos de andar,

na sua voz ou palavras,

no seu olhar,

nas suas ações,

nos seus gestos,

no seu porte,

no conjunto do corpo,

no exterior.

Defeitos exteriores do corpo[177]

aspécto orgulhoso compostura desajeitada Tom alto
altaneiro contraída grosseiro
desdenhoso mexida arrogante
atordoada imperioso
aspécto zangado de cólera
colérico postura de irritação
irritado frouxa irritado
inconveniente
desonesta Tom afetado
aspécto atrevido mimoso
desavergonhado apresentação suja adocicado
arrogante negligente
sem ordem Tom chorão
aspécto ligeiro queixoso
dissipado apresentação Demasiado cuidada apatetado
leviano requintada
calafetada Tom resmungão
Aspécto tímido à moda queixoso
atrapalhado
simplório maneiras afetadas O grande tom
gnongnon mundanas bom tom
solícitas mau tom
Aspécto Triste excêntricas
intratável fingidas Andar grosseiro
amuado notórias altivo
aborrecido ruidoso
maneiras grosseiras precipitado
Aspécto indiferente grosseiras
distraído malcriadas Andar lento
sonhador pesado
Aspécto contente desastrado rude
satisfeito consigo
à sua vontade palavras azedas
doces
aduladoras
picantes
mordazes
irónicas
sacudidas
insolentes

Olhar hipócrita exterior doce
de soslaio agradável
malígno cortês
maldoso honesto
afável
Olhar terno enganador
fixo
amoroso exterior duro
severo
Olhar perscrutador teso
curioso repelente
ciumento
invejoso exterior elegante
rebuscado
Porte imponente notável
teso
arqueado
curvado
de lado
balanceado
atividade lenta
precipitada
apressada
Gesto fatigante
deslocado
nervoso
acentuado

Tais são os principais defeitos exteriores do corpo, se reconhecermos em nós alguns destes diferentes defeitos, é um dever nosso corrigir-nos deles e praticar a virtude oposta aos nossos defeitos exteriores.

É necessário glorificar a Deus no nosso corpo.

Importa levá-lo em nós e, para isso, trabalhar para fazer desaparecer estes defeitos exteriores.

A principal virtude exterior é esta modéstia que São Paulo nos recomenda e que modela todo o nosso ser: modestia vestra nota sit omnibus hominibus (Fil 4,5), ser modesto em tudo.

Resumo e conclusões

Devemos ter um ar grave e sério,

um porte digno,

uma apresentação limpa e conveniente,

maneiras delicadas e honestas,

um tom cheio de mansidão e de caridade,

o andar calmo e silencioso,

o olhar humilde e modesto,

a palavra cheia de reserva e prudência.

Todo o conjunto do nosso corpo deve edificar o próximo e recordar-lhe que levamos Deus em nós e que o representamos no mundo.

6º Renunciar ao seu corpo, é aceitar os sofrimentos e a morte do seu corpo.

Sofrer e morrer, eis aí a condição do nosso corpo na terra.

Lembra-te que és pó e que voltarás ao pó.

Foi decretado que todo o homem deve morrer uma vez.

O sofrimento anuncia a morte cada dia e previne-nos de que não somos imortais, mas que o nosso corpo terá um fim.

Por isso dizia São Paulo: Morro cada dia. Quotidie morior.

Sofrer e morrer, eis o nosso destino.

A oração submissa de Nosso Senhor Jesus Cristo no jardim das oliveiras mostra-nos com que submissão devemos aceitar o sofrimento e a morte, quando Deus Nosso Senhor no-la envia,

Que a vossa vontade se faça e não a minha!

Devo receber um batismo e como desejaria vê-lo realizar-se.

Não temais os que matam o corpo, temei antes os que matam a alma.

Aquele que renunciou realmente ao seu corpo, deve estar nestas disposições de espírito face à morte.

Aceita as misérias diárias do seu corpo, com humildade e submissão à vontade de Deus.

Evita queixar-se continuamente pelos nadas ou pequenos males que não valem a pena.

Evita estes pequenos cuidados, estas procuras de si mesmo, estes cuidados exagerados do seu corpo, da sua saúde.

Cuidados exagerados.

Não tem estas apreensões que a morte dá aos que amaram demasiado o seu corpo.

Não se ocupa do seu corpo senão quando tal é necessário ou quando não se pode mover mais.

O corpo acaba-se todos os dias.

Quotidie morior.

Há que assistir todos os dias à dissolução do seu corpo e sacrificá-lo em cada momento.

Há que perder, cada dia, qualquer coisa de si: os cabelos, um dente, um dia é um membro que já não funciona, outro dia será outro.

Tudo isso, são advertências de que a morte se aproxima e que não viveremos sempre.

Tempus resolutiones meae instat[ccc].

Ditoso aquele que sabe acolher estas advertências como convém e a tempo, não tendo ilusões sobre a sua morte próxima.

A caridade manda-nos cuidar dos que sofrem.

E a renúncia ao nosso corpo manda-nos esquecer de nós próprios e a não dar demasiada atenção ao nosso corpo.

Chama-se cuidados exagerados, por exemplo:

ocupar-se demasiado com a doença,

fazer grandes despesas para se curar, tratar-se, ir a países estrangeiros,

fazer vir médicos estrangeiros.

Cuidados exagerados do corpo.

Há muitos pequenos cuidados exagerados que de nenhum modo convêm a uma alma generosa e cristã.

Aquele que renunciou ao seu corpo sempre tem demasiado,

fica incomodado de ver que se cuida dele, recusa mais do que aceita e, se aceita, é com muito reconhecimento e humildade.

Aquele que ama o seu corpo, ao contrário, jamais tem o bastante, está sempre a exigir cuidados particulares, nunca está contente, é exigente, necessita de 36 criados, ocupa toda a gente à sua volta, há que andar

daqui para ali para lhe trazer toda a espécie de coisas, almofada, poltrona, travesseiro, queixa-se continuamente [… ][178]

Nada é mais oposto ao espírito de humildade, de renúncia e de pobreza do que todas estas exigências e isso escandaliza tanto as pessoas de fora como as de dentro.

Prática

Para nos manter nestes sentimentos, suportaremos com submissão e humildade as pequenas indisposições do corpo; evitaremos queixar-nos a todo o momento, ser exigentes nos nossos sofrimentos, nas nossas doenças, repetindo muitas vezes estas palavras de Nosso Senhor:

Que se faça a vossa vontade e não a minha!

Uma vez por mês, faremos um retiro do mês para nos preparar para a morte e retemperar-nos no nosso fervor e na morte para si mesmo; pode-se fazê-lo como mendigo; é necessário fazer de modo que os nossos deveres se não ressintam.

Como é necessário conduzir-se nas doenças dos companheiros

Como se deve assistir os moribundos

Sacramentos, agonia, enterro.

Renunciar a si mesmo é necessário: 2º Renunciar ao seu espírito.

O que se deve entender quando se trata do nosso espírito?

Pode ser entendido em dois sentidos. Ou se trata da nossa faculdade de compreender e de julgar, da nossa inteligência. Neste sentido, não se trata de renunciar a ela, o que não teria sentido. Ou então trata-se da nossa maneira própria e espontânea de pensar, de julgar, poder-se-ia dizer, da nossa mentalidade pessoal e, então, pode-se falar de renúncia ao próprio espírito.

Renunciar ao seu espírito não consiste em suprimir o exercício da sua inteligência. Tal não significa: renuncio a compreender e a julgar. Ninguém pode pretender um tal resultado e os que crêem chegar a isso, iludem-se. Renunciar ao seu espírito, é querer pôr de lado a sua maneira própria e espontânea de pensar para adotar uma outra, porque se sabe que esta outra maneira é mais justa.

Por consequência, renunciar ao seu espírito quer dizer: pretendo pensar e julgar, tanto quanto possível, da maneira mais inteligente e, para isso, não me quero agarrar às minhas ideias, mas adotar as ideias dos que sabem mais do que eu. Assim, pois, o próprio ato de renunciar é um exercício da inteligência e, ao nível simplesmente natural, é o que se chama o bom senso. Mas, infelizmente, somos levados a pensar que os que não têm as nossas ideias pensam com falta de bom senso. É uma falsa ideia de bom senso. O verdadeiro bom senso consiste em primeiro se interrogar sobre quem está melhor colocado para saber a verdade sobre tal assunto.

Acontece muitas vezes que não se pode aceitar as exigências sobrenaturais da renúncia ao seu espírito porque se não aceitou estas exigências naturais do bom senso.

Sem esquecer estas exigências naturais[179], o Padre Chevrier fala de renunciar ao seu espírito no plano sobrenatural. Ou seja, que se trata de fazer ceder o seu próprio espírito, a sua mentalidade, para adotar o espírito, a mentalidade de Cristo; isto é, que se trata de submeter o exercício da sua inteligência à ação do Espírito Santo.

Artigo principal e o mais importante de todos, diz o Padre Chevrier e, para convencer desta importância, estabelece uma lista de defeitos


do espírito. Que estes defeitos existem e muitos outros, é indiscutível. Daí não se segue que cada um de nós os tenha todos de uma vez, mas bem tolo seria aquele que se julgasse isento de todo o defeito de espírito. Olhemos à nossa volta, não teremos grande dificuldade em descobrir que este é um companheiro cheio de charme, mas é inconstante; esta é cheia de boa vontade, mas é realmente pouco prática; um outro é um homem cumpridor, mas terrivelmente autoritário, etc…

Como seria importante chegar a uma certa lucidez para reconhecer as nossas próprias deficiências. No entanto, trata-se de ir além desta lucidez. O Padre Chevrier não para na análise psicológica. Fala-nos como homem espiritual. Ele sabe que, para se abrir totalmente à luz e ao impulso do Espírito Santo, é necessário unir-se, na obscuridade da fé, ao juízo de Deus sobre o nosso espírito. Aquele que quisesse ater-se à lucidez que ele próprio pode adquirir, permaneceria na carne e não poderia fazer senão as obras da carne, como diz São Paulo[180].

Artigo principal e o mais importante de todos, porque deixa entrever a ideia essencial do Padre Chevrier sobre o padre e a experiência espiritual que o Padre tinha deste estado.

Esta ideia essencial, encontra-se expressa com simplicidade nas linhas seguintes:

Jesus Cristo é o enviado de seu Pai.

O padre é o enviado de Jesus Cristo.

Tudo o que Jesus Cristo diz de si mesmo a este título, o padre deve aplicá-lo a si próprio.

Ele está revestido, como Jesus Cristo, das características de um enviado e deve cumprir-lhe as obrigações[181].

Isto é apenas uma sóbria explicação da palavra de Jesus aos apóstolos: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”[182].

O padre é enviado como Jesus Cristo, quer dizer segundo o Padre Chevrier,

Jesus conhece seu Pai, fala segundo ele age segundo ele e tudo o que faz e diz, fá-lo e [diz] em união com seu Pai.

Assim, o padre deve agir e falar segundo Jesus Cristo e estar unido a ele e fazendo assim, estará unido ao Pai e fará tudo segundo Deus[183].

Como se pode fazer isso? Renunciando ao seu espírito, porque, diz ainda o Padre Chevrier,

Este é talvez o artigo mais importante de todos e do qual decorre todo o resto.

Renunciar ao próprio espírito para adotar o espírito de Deus, o espírito de Jesus Cristo.

E é tanto mais quanto tivermos


o espírito de Deus que compreenderemos as coisas de Deus, nos tornaremos espirituais e realizaremos o que o espírito nos ensina[184].

Ainda aqui, temos um comentário do Evangelho: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio. Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo”[185].

De novo, a importância deste artigo por causa das consequências práticas retiradas pelo Padre Chevrier. Estas consequências dizem respeito principalmente à formação apostólica. À primeira vista, elas estão como que em contradição com o que foi dito sobre a necessidade da renúncia.

Eis a nossa miséria, fomos concebidos na iniquidade, somos totalmente carnais e totalmente maus, incapazes até de ter um bom pensamento[186].

A partir de um tal pressuposto, poder-se-ia chegar a conclusões muito rígidas sobre a necessidade de ditar às pessoas a conduta a seguir, do contrário, vão seguir a sua natureza e perder-se. É bem o contrário:

O espírito de Deus não está também nesta regularidade exterior ou disciplina. Quando tiverdes posto bem todo este sistema exterior de ordem, de organização, de regularidade mecânica nos vossos homens, se acreditais que está aí o espírito de Deus, enganais-vos; pode não estar aí de maneira nenhuma…[187]

O Padre Chevrier recomenda longamente um método de formação marcado pela flexibilidade, pela liberalidade. Com efeito, só Deus pode conduzir em nós uma autêntica renúncia ao nosso espírito que seja um ato de inteligência sobrenatural. Para isso, é necessário a graça do Espírito de sabedoria e de inteligência e isso não pode ser obra de um homem, mas apenas de Jesus Cristo[188].

Método de formação liberal, mas método exigente, antes de tudo para o formador que se deve dar inteiramente,

O verdadeiro regulamento que há de impor aos outros é este: Segue-me, faz como eu…[189]

Esta liberalidade e esta exigência reencontram-se no que concerne à vida de uma comunidade apostólica[190]. Aqui, mais do que nunca, o Padre Chevrier fala por experiência. Espírito de Deus é uma expressão que reaparece muitas vezes nas páginas seguintes. É necessário escrevê-la com “E”, isto é, trata-se do Espírito Santo, a terceira pessoa da Santíssima Trindade? Ou há que escrevê-la com “e”, ou seja, trata-se da característica de espírito produzida em nós quando nos deixamos guiar pelo Espírito Santo? O Padre Chevrier escreveu sem prestar atenção a este detalhe de escrita.Não se pode decidir sempre com certeza. De qualquer maneira, um não vai sem o outro.


Esta dificuldade para distinguir entre estes dois sentidos já se encontra na Bíblia.

Quando se trata de comprar, de adquirir o espírito de Deus[191], não há dúvida, trata-se desta especificidade de espírito, desta transformação de mentalidade produzida em nós sob a influência do Espírito Santo. Não poderia ser questão de comprar, de adquirir o Espírito Santo que se comunica gratuitamente em soberana liberdade[192]; mas é ele que nos concede realizar as ações custosas necessárias à nossa renovação espiritual[193].

Depois de ter renunciado ao próprio corpo que é a parte exterior do nosso ser, importa renunciar ao próprio espírito que é a principal parte de nós mesmos, pois que é a parte inteligente e é ele que nos governa, que pensa e que dá o impulso a todo o nosso ser.

Pode-se dizer com verdade que é o artigo principal e o mais importante de todos, pois que é pelo espírito que nós pensamos, que nos conduzimos e que, se o espírito for bom, todo o resto será bom, mas se o espírito é mau, todo o resto será mau.

O olho é a lâmpada do nosso corpo, se o nosso olho é simples, todo o corpo estará na luz, se o nosso olho é mau, todo o corpo estará nas trevas. (Mt 6,22; Lc 11,34)[194].

Doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a renúncia ao próprio espírito.

Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. (Mt 16,24).

O que há mais de nós próprios do que o nosso espírito, pois que é por ele que nós somos o que somos?

Jesus, falando a Nicodemos, diz-lhe: Em verdade, em verdade te digo: se um homem não renasce uma segunda vez, não pode ver o reino de Deus.

Nicodemos não compreendendo o que Jesus lhe queria dizer, Jesus explica-lhe, dizendo-lhe: Se um homem não renasce da água e do espírito, não pode ver o reino de Deus. (Jo 3,5).

Renascer da água e do Espírito Santo, o que quer dizer, senão reformar o seu espírito, deixar o seu primeiro espírito para tomar o espírito de Deus?

E noutro lugar, Jesus diz-nos: se não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino de Deus. (Mt 18,3).

Aquele que não recebe o reino de Deus como uma criança, não entrará nele. (Mc 10,15).

Explicação e confirmação desta doutrina.

Nosso Senhor não podia explicar-se mais claramente para nos mostrar a necessidade de renunciar ao nosso espírito, pois que ele quer que renasçamos para um espírito novo, o do Espírito Santo, que nos tornemos como crianças. Não é pelo corpo que podemos tornar-nos pequenos e que podemos renascer, mas sim pelo espírito.

Por que razão é preciso renunciar ao nosso espírito

Nosso Senhor no-lo diz ele próprio de novo, quando explica este segundo nascimento a Nicodemos:

O que nasceu da carne é carne,

O que nasceu do espírito é espírito. (Jo 3,6).

Embora o nosso espírito não nasça da carne, no entanto participa dos defeitos da carne e, ao vir a nós, perde a sua beleza, a sua justiça, as suas qualidades primeiras que tem de Deus por sua origem, participa da nossa desgraça e da sua participação do vício do nosso nascimento de Adão, dos vícios da nossa carne. Fomos concebidos na iniquidade.

São Paulo diz-nos que o Senhor conhece os pensamentos dos homens e sabe que são vãos. (1 Cor 3,20).

Nós não somos capazes por nós mesmos, de ter um único bom pensamento. (2 Cor 3,5).

Aí está a nossa miséria, fomos concebidos na iniquidade, somos absolutamente carnais e totalmente maus, incapazes mesmo de ter um bom pensamento, mas, pelo contrário, não podemos produzir senão maus, sem a graça de Deus[195].

O que é renunciar ao próprio espírito?

Antes de mais nada é estar bem convencidos de que não somos senão miséria por nós mesmos e que não temos senão defeitos e que devemos renunciar a eles seriamente e trabalhar com todo o coração para se reformar no seu espírito.

É renunciar a todos os defeitos do seu espírito.

Nós não nos conhecemos a nós mesmos, estamos cheios de defeitos sem o saber e acontece que chegamos a tomar os nossos defeitos por qualidades.


Quais são os defeitos do nosso espírito?

Nosso Senhor, falando aos judeus e querendo fazer-nos compreender o mal que há em nós… qual é o fundo mau que temos, diz estas palavras:

É de dentro do coração dos homens que saem: os maus pensamentos, os adultérios, as fornicações, os homicídios, os roubos, as avareza, as maldades, a fraude, as impudicícias, a cobiça, os falsos testemunhos, a blasfémia, o orgulho, a loucura.

Todas estas coisas más vêm de dentro e são elas que mancham o homem. (Mt 15,19; Mc 7,21).

São Paulo, enumerando as obras carnais, isto é, as obras que não vêm de Deus mas de nós, do nosso fundo, do nosso espírito, de dentro de nós, diz:

As obras da carne são: a fornicação, a impureza, a idolatria, os envenenamentos, as inimizades, as dissensões, os ciúmes, as animosidades, as querelas, as divisões, as heresias, as invejas, e muitas outras coisas semelhantes, acerca das quais vos declaro que aqueles que cometem estes crimes não serão herdeiros do reino dos céus. (Gál 5,19).

É importante enumerar um pouco os diferentes defeitos do espírito, a fim de que cada qual se possa reconhecer-se a si mesmo e trabalhar para se corrigir.


Defeitos do espírito[196]

Espírito espírito espírito
de orgulho de crítica sabichão
de altivez de troça presunçoso
de independência de maldade entendido
de ostentação empreendedor
de arrogância inflexível
de domínio terminante
Espírito espírito espírito
impertinente de oposição doentio
teimoso de querela cheio de imaginação
desobediente de discórdia de inquietudes
de revolta de ilusões
de divisão de quimeras
de loucuras
Espírito espírito espírito
susceptível travesso gozador
exigente enredeadeiro cáustico
intratável bobo
Espírito espírito espírito
leviano subtil no ar
superficial estreito caprichoso
poético escrupuloso atoleimado
viajante farisaico inconstante
distraído desconfiado despreocupado
pouco prático rígido
inconstante tenaz
não flexível
Espírito espírito espírito
de açambarcamento jovial triste
de egoísmo galhofeiro selvagem
de vingança brincalhão sombrio
de desprezo infantil fechado
de domínio
Espírito Espírito espírito
de hipocrisia exagerado conversador
de mentira Falso loquaz
de fineza enviezado vagaroso
de astúcia preguiçoso
de velhacaria
Espírito
Curioso intriguista
Tagarela grande falador
maldizente adulador, pedante[197]

Pela enumeração de todos estes defeitos vê-se a importância deste artigo.

A quantos defeitos do espírito estamos sujeitos, e no entanto, é segundo todos estes defeitos que nós nos conduzimos, nos julgamos, nós nos dirijimos.

Donde, quantos passos em falso! quantos abismos onde nos precipitamos!

Como diz Nosso Senhor:

O olho é a lâmpada do vosso corpo, se o vosso olho é mau, todo o vosso corpo estará nas trevas.

Se somos cegos no que se refere ao espírito, como poderemos conduzir-[nos] a nós próprios e conduzir os outros?

Um cego não pode conduzir outro cego, ambos cairão no barranco.

Os defeitos são como as nuvens, véus que estão diante de nós e que nos impedem de ver e de nos conduzir.

Assim, pois, é da máxima importância corrigir-nos dos nossos defeitos do espírito e pedir cada dia o bom espírito.

Procurar adquirir o bom espírito, como é importante! é tudo!

Há em nós três luzes que nos iluminam,

A razão,

o demônio,

e Deus.

É muito difícil distinguir bem qual é a luz que nos ilumina, se não temos uma luz sobrenatural que nos ilumine sobre a nossa própria luz, que muitas vezes não é senão trevas.

Como há que trabalhar nesta renúncia do espírito

É preciso primeiro lutar contre os seus defeitos espirituais

Devemos saber que tudo o que vem da carne é carne e que devemos lutar contra a carne, quer dizer, contra o que vem desta natureza viciada e corrompida, como diz São Paulo.

Conduzi-vos segundo o espírito de Deus e não realizareis as obras da carne, porque a carne luta contra o espírito e o espírito luta contra a carne; opõem-se um ao outro. (Gál 5,16).

Conjuro-vos, pelo Senhor, diz ainda São Paulo, a não viverdes como os pagãos que seguem, na sua conduta, a vaidade dos seus pensamentos, que têm o espírito cheio de trevas, que estão afastados da vida de Deus, por causa da ignorância em que estão e da cegueira do seu coração. (Ef 4,17).

Eu sou carnal, vendido para estar sujeito ao pecado, com efeito, o que faço, não o aprovo, não faço o bem que quero, pelo contrário, faço o mal que detesto. (Rom 7,14).

Antes de mais, importa lutar contra si mesmo, é o grande combate que temos de fazer; luta terrível, incessante, que não podemos fazer sem uma grande graça de Deus.

Logo que conheçamos alguns defeitos do nosso espírito, ou apenas um, devemos declarar-lhe guerra e lutar contra ele, até que o tenhamos vencido com a graça de Deus.

É necessário despojar-se do homem velho.

Só lutando continuamente contra os seus defeitos é que se chega, pouco a pouco, a despojar-se do homem velho.

É preciso chegar a despojar-se.

Despojai-vos do homem velho e das suas obras e revesti-vos do homem novo que, pelo conhecimento de Deus, se renova segundo a imagem daquele que a criou. (Col 3,9).

E noutra parte diz-nos,

purificai-vos do velho fermento para vos tornardes nova massa, já que sois verdadeiramente pães ázimos, pois que o nosso cordeiro pascal foi imolado, pelo que celebrai esta festa não com o fermento da malícia e da corrupção, mas com os ázimos da sinceridade. (1 Cor 5,7).

Renovar-se no interior da alma

Renovar-se, quer dizer, destruir o que é antigo, velho, para apreender algo de novo.

São Paulo diz aos Efésios que eles foram instruídos na escola de Jesus Cristo para despojar-se do homem velho segundo o qual vivestes na vossa primeira vida que se corrompe, seguindo a ilusão das próprias paixões e para vos renovardes no interior da vossa alma e vos revestirdes do homem novo, que foi criado segundo Deus, numa justiça e numa santidade verdadeira. (Ef 4,22).

E tornar-se um homem novo mediante um novo nascimento do Espírito Santo

É necessário revestir-se do homem que foi criado segundo Deus, numa justiça e numa santidade verdadeira. (Ef 4,24).

Nova criatura.

Há que tornar-se um homem novo, fazendo-se criança, deixando, pouco a pouco, o que se recebeu do seu primeiro nascimento mau e adquirindo pouco a pouco tudo o que há de bom no homem novo que nos é proposto.

Se um homem não renasce da água e do Espírito Santo, não pode entrar no reino de Deus.

Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus.

Este novo nascimento é, pois, necessário para entrar no reino dos filhos de Deus que forma o reino de Deus.

As boas comunidades na terra, que começam o reino dos céus.


Este novo nascimento opera-se enchendo-se do bom espírito, do Espírito Santo

Enchei-vos do Espírito Santo. (Ef 5,18).

É este Espírito de Deus que, comunicando-se a nós, pouco a pouco, forma em nós homens novos.

Como os apóstolos que foram transformados pelo Espírito Santo, quando o receberam.

Em nós, é o trabalho de cada dia que deve operar esta mudança, é a graça de Deus, o estudo, a oração.

Onde encontrar o bom Espírito?

Não está no mundo

O mundo não pode receber o Espírito de Deus, não o conhece e não o vê.

Há demasiada oposição entre Deus e o mundo para que ali possa ser encontrado.

A sabedoria do mundo é uma loucura diante de Deus, diz São Paulo, conforme está escrito: Surpreenderei os sábios nas suas próprias redes. (1 Cor 3,19).

O homem animal não concebe as coisas que são do espírito de Deus, elas parecem-lhe uma loucura e não pode compreendê-las, porque se deve avaliá-las mediante uma luz sobrenatural. (1 Cor 2,14)[198].

O bom espírito também não está na ciência e no gênio

A ciência incha, diz São Paulo, e não dá sempre o Espírito Santo. É o Espírito Santo que dá a verdadeira ciência, pois a ciência que não vem do Espírito Santo não comunica o Espírito de Deus.

Quantos sábios, infelizmente, não têm o espírito de Deus!

Não está no gênio, no raciocínio, porque os pensamentos dos homens são vãos e nós não somos capazes, por nós mesmos, de ter um bom pensamento.

Pode-se ser sábio, saber fazer belos raciocínios, ser grande filósofo, grande matemático, saber todas as ciências e não ter o Espírito Santo.

É o próprio São Paulo que no-lo ensina: Ainda que falasse todas as línguas dos homens e até dos anjos, se não tiver caridade, não sou senão um bronze que soa, um címbalo que retine.

Ainda que eu tivesse o dom da profecia, que penetrasse todos os mistérios e tivesse todas as ciências e toda a fé possível, se não tenho caridade, nada sou. (1 Cor 13,1).

Pode-se, pois, ter a ciência, todos os conhecimentos possíveis, ter um gênio transcendente, sem ter o espírito de Deus.

Oh! quantos exemplos deste gênero, mesmo [na Igreja][ddd]; não se vê muitas vezes os mais belos gênios, os maiores sábios dar uma reviravolta e cair no erro e no mal? Eram sábios, porém não tinham o espírito de Deus ou então perderam-no depois de o ter recebido.

A prova de que o Espírito Santo não está necessariamente na ciência, [nem] nos sábios está em que Jesus Cristo escolheu os seus apóstolos entre os pobres e entre os humildes para realizar a sua grande obra.

Infirma mundi elegit Deus ut confundat fortia[eee].

E Nosso Senhor dá graças a seu Pai por se comunicar aos pequenos e aos humildes e se esconder aos grandes e aos soberbos.

O que significa, senão que os grandes e os soberbos, por mais sábios que sejam, por maiores gênios que sejam, muitas vezes são indignos e incapazes de receber o espírito de Deus[fff].

Nosso Senhor diz-nos que os caminhos do Espírito Santo são-nos desconhecidos; não se sabe donde vem, nem para onde vai; se viesse da ciência compreender-se-iam os seus caminhos. Muitas vezes vê-se a ciência com a maldade e a impiedade[ggg].

Inclusive, não está no sábio filósofo, no sábio teólogo, embora estas ciências venham do Espírito Santo; pode-se ter estas ciências sem lhe ter o espírito que é o espírito de Deus; Não se vê muitas vezes os maiores filósofos e os maiores teólogos cair no erro e abandonar a verdade? A ciência e o raciocínio matam muitas vezes e destroem frequentemente a simplicidade e o bom senso que vem diretamente de Deus e do Espírito Santo.

Há almas que sentem a verdade naturalmente e a aceitam com alegria e felicidade logo que a vejam; estas almas têm mais espírito de Deus do que os maiores teólogos que não podem lá chegar senão por raciocínios e deduções sem fim.

Deus colocou em certas almas um sentido espiritual e prático que encerra maior bom senso e espírito de Deus do que há na cabeça dos maiores sábios.

Testemunhas, alguns bons camponeses, alguns bons operários, algumas boas operárias, mulheres que compreendem de imediato as coisas de Deus e sabem melhor explicá-las do que muitos outros.


Não está nas coisas exteriores

Não está na habitação, nem nos vestuários, nem nas riquezas, nem nos títulos, nem nas posições elevadas ou baixas.

Nem mesmo nas práticas exteriores de piedade, pois que os fariseus jejuavam, rezavam e praticavam a esmola e Nosso Senhor condena toda a sua justiça, por maior e mais vigorosa que pareça aos olhos dos homens.

O próprio São Paulo diz: Ainda que distribuísse todos os meus bens pelos pobres e entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tenho caridade, tudo isso não me serve de nada.

Não está nos títulos, nos postos, nas dignidades, nas honras; estas coisas exteriores supõem o espírito de Deus mas não o dão; pode-se ser padre, cônego, bispo, superior, religioso e não ter o espírito de Deus, porque o espírito de Deus não está unido aos títulos, às honras, às dignidades; supõem-no mas não o dão[hhh].

Que grosseiro erro cometem os que crêem ter o espírito de Deus, a sabedoria, a virtude porque estão revestido de um traje, uma batina ou de uma dignidade qualquer e que sob este aparato exterior podem impunemente governar, mandar, como bem lhes apraz, como lhes dá na cabeça, fazer valer o seu título, a sua posição, como se isso os tornasse mais sábios, mais experientes, mais esclarecidos e, sobretudo, incapazes de se enganar.

Vê-se, sobretudo, jovens padres agir sem reserva e sem prudência, sem sabedoria e, no entanto, julgar-se infalíveis e exigir que toda a gente se incline diante deles e se sujeite à sua autoridade, ao seu governo.

Que erro! que loucura! e como esta espécie de pessoas se fazem desprezar a si próprias e, sobretudo, desprezar o hábito que vestem.

Com quanta reserva e prudência é necessário agir, com que temor e tremor, sobretudo quando se é jovem e sem experiência, porque se está exposto a fazer muitas asneiras e não pensar que a nossa batina nos dá a sabedoria e a virtude.

Só Deus é que nos dá o seu espírito e não se o pode ter sem o ter comprado, inclusive a preço elevado e a expensas próprias[iii].

Deve-se pensar caridosamente que todos os que têm uma dignidade, um santo hábito ou um alto cargo, têm o espírito de Deus; mas os que têm o hábito e a dignidade devem temer não o ter e tomar todos os meios para o adquirir cada vez mais pedindo-o a Deus cada dia.

O espírito de Deus não está nesta regularidade ou disciplina exterior, que se admira tanto nos nossos dias; nestes exercícios pedagógicos

que fazem dos homens verdadeiras máquinas que se faz girar ou mover por sinais.

Quando tiverdes posto em ordem todo este sistema exterior, de organização, de regularidade mecânica nos vossos homens, se pensais que aí está o espírito de Deus, enganais-vos; pode não estar aí de modo nenhum, porque o espírito de Deus não está no exterior, está no interior: regnum dei intra vos est[jjj].

Onde há mais ordem, disciplina, regularidade do que numa caserna, numa prisão, numa escola comunal? E, no entanto, onde há menos espírito de Deus?[kkk].

O exterior supõe o espírito de Deus mas não o dá[199].

Eis uma comparação que pode fazer compreender este ponto.

Temos duas árvores, uma artificial e outra natural. São perfeitamente semelhantes.

A árvore artificial foi feita pela mão do homem: o tronco, os ramos, as folhas, as flores, os frutos são belos, de belas cores, de belas formas; assemelha-se perfeitamente à árvore natural, é admirável do ponto de vista da ordem, da organização, da forma, da cor e da semelhança; mas esta árvore não tem raiz, nem seiva; não tem vida, é morta, tem apenas uma vida artificial, uma vida de aparência.

Foi o homem que fez tudo isso, Deus nada pôs ali de si próprio.

É belo à vista mas não tem vida interior e não tem frutos verdadeiros, os seus frutos não são bons para comer e as aves do céu não vêm ali para se repousar e alimentar-se.

Na árvore natural, ao contrário, o homem fez poucas coisas, o homem plantou, podou, regou, mas foi Deus que a fez crescer.

Há uma seiva interior e misteriosa que se não vê mas que vem de Deus e que dá a vida; esta seiva misteriosa é que produziu o tronco, as flores, as folhas, os frutos; e os frutos são bons para comer.

Há, nesta árvore, uma vida interior que vem de Deus e que não existe na outra: qualquer que seja a beleza da árvore artificial, não será nunca senão uma árvore morta e a outra será uma árvore de vida.

O mesmo se diga de todo este trabalho exterior a que tanto se aplica, sobretudo nos nossos dias, e ao qual se dá tanta importância nas nossas casas, nas nossas escolas laicas e mesmo cristãs; ocupam-se muito mais do exterior do que do interior. Não se põe a seiva vivificante, fazem-se árvores artificiais, fazem-se árvores mortas.

É que é muito mais fácil fazer uma árvore artificial do que uma árvore natural e viva.

A árvore artificial não exige senão um pouco de cuidado, de trabalho, de energia, de exatidão, de regularidade enquanto que para fazer uma árvore viva, é preciso dar a seiva vivificante, é necessário comunicar esta seiva às almas a quem se instrui e, para a comunicar, é preciso tê-la, é preciso dar a graça, a vida, a fé, o amor vivificante e isso não se dá se não se tem e não se o adquire sem esforço e sem Deus.

É um trabalho espiritual bem mais difícil do que o trabalho material.

Em nós, é o Espírito Santo que deve produzir todo o exterior.

É necessário começar a pôr em nós o espírito de Deus e, quando aí está, faz como a seiva da árvore, produz em nós todo o exterior[200].

Importa ocupar-se muito mais do interior do que do exterior, dar muito mais importância ao interior do que ao exterior; ponde o interior nas almas e o exterior virá sempre; ponde o exterior, nada fizestes.

Dir-se-á que o exterior é o indício do interior; nem sempre, há pessoas que podem conter-se melhor do que outras exteriormente e que são menos agradáveis a Deus do que outras, que têm menos exterior e mais interior, que têm melhor boa vontade, fazem mais esforços.

Não julgueis segundo as aparências, segundo o rosto, diz Nosso Senhor.

Pôr o exterior sem o espírito de Deus, é um corpo sem alma.

Começar pelo exterior é construir no ar, sem fundamento, é fazer máquinas, cata-ventos.

Importa, antes de mais, pôr a fé, o amor de Deus, a seiva interior.

Spiritus est qui vivificat caro non prodest quidquam[lll].

O exterior é como um hábito com que alguém se cobre, pode ser belo, bem feito, dar um ar elegante, gracioso, nobre, mas não dá a saúde; quando o médico quer saber se vos encontrais bem, não repara no vosso hábito, toma o pulso, repara na vossa língua, certifica-se da regularidade e da força do sangue, é aí que se encontra a saúde, a força, a vida.

O exterior não é nada e não pode constatar a vossa vida e a vossa saúde[201].

Não quer dizer que seja necessário negligenciar o exterior e não exigir nada a seu respeito. Não, é necessário ordem e regularidade.

Contudo é preciso colocar como fundamento principal o interior, a seiva espiritual que deve dar a vida ao exterior, de outro modo, nada se faz de sólido, de verdadeiro, durável.

Haec oportuit facere et illa non omittere[mmm], diz Nosso Senhor aos fariseus falando dos dois preceitos interior e exterior.

Não é também o que nós notamos na conduta de Jesus Cristo a respeito dos seus apóstolos? Primeiramente ele escolhe-os.

(Ao mesmo tempo que lhes dá os grandes princípios da vida evangélica e perfeita, fazia-a praticar pondo-os em ação.

Não lhes dá outro regulamento senão este:

Segue-me, eu sou o teu regulamento, a tua vida, a forma exterior que deves imitar. Há os que começam por regulamentos exteriores, fazem muitas regras; tudo isso não é nada. O verdadeiro regulamento que há que impor aos outros é este: Segue-me, faça como eu, não te peço coisas mais difíceis do que as que eu próprio faço. Segue-me: eis aí o grande regulamento.)

Durante os três anos que passou com eles para os formar na vida evangélica e apostólica, nunca o vemos aplicar-se a dar-lhes formas exteriores e regulares, disciplinares; viviam segundo o tempo, como podiam.

Porém, vemo-lo ocupar-se constantemente da formação interior dos seus apóstolos. Instruía-os sem cessar, repreendia-os a cada instante, dispunha-os a tudo, formava-os em tudo.

Instruir, repreender e pôr em ação, fazer agir, eis o grande método para formar as pessoas e lhes dar a vida interior.

Instruir, repreender e pôr em ação, fazer fazer, eis a vida, a seiva e o meio de a comunicar; porém, enquadrar o mundo num nicho, moldá-lo numa forma, é forçar o mundo, afastar os defeitos e não corrigi-los.

(Na fundação da Igreja, a maior obra do Todo-poderoso, a mais bela obra do mundo, Nosso Senhor não emprega nenhum meio exterior, toma um homem ao qual comunica a sua vida, o seu espírito, escolhe doze aos quais forma na vida evangélica; porém não os forma aquartelando-os nem fazendo-os marchar ao mesmo passo; não constrói, nem toca bombo, nem música, nem concerto, nem teatro; pelo contrário, proíbe-os de empregar todo o meio exterior; sem dinheiro nem bela aparência; envio-vos como cordeiros no meio de lobos; ite, docete[nnn]; pregar, instruir, curar; virtus de illo exibat[ooo]; os meios exteriores não conduzem a nada, a cruz, o sofrimento, a graça, a paciência.)

É preciso deixar aparecer os defeitos para ter ocasião de os repreender e de os corrigir. Se se os força a esconder-se, não os pode conhecer e, em consequência, corrigi-los.

Vós sois meus discípulos, se vos amais uns aos outros.

Eis aí o princípio de todas as nossas ações: a caridade, o amor, a vida de Deus; o espírito de Jesus está na caridade: é este o princípio de vida que vem do Espírito Santo que é amor por essência.

Há que dar-se a si mesmo como espetáculo ao mundo, habitando num estábulo, vivendo sobre uma cruz e dando-se em alimento todos os dias, como Jesus Cristo, então se converterá o mundo.

(Toda a gente corria a Jesus para o ouvir, ser curado e libertado do demônio; é necessário que as pessoas venham a nós para nos ouvir, ser curados e libertos do espírito do maligno; aí está o que deve conduzir o mundo, eis como devemos atrair a nós, e não por meios exteriores que não devem vir senão muito depois; havia cristãos muito mais sólidos nas catacumbas do que nas nossas belas igrejas. Há os que se afadigam em empregar meios exteriores para atrair e pensam converter. Como se enganam e como estão em contradição com o Evangelho! Aviso, pois, para as obras espirituais que se pode empreender).

O amor de Deus e do próximo, eis o princípio e a seiva vivificante que deve produzir tudo em nós; quando há isso numa alma, há tudo o que é preciso.

Mais vale a caridade sem exterior do que um exterior sem caridade.

Mais vale a desordem com amor do que a ordem sem amor.

É o que o cura d’Ars exprimia de uma maneira bastante estranha quando, ao falar das meninas da sua Providência que se conduzia segundo estes princípios, pois que a sua filha Catarina não conhecia os métodos disciplinares, e falando deste gênero de vida e comparando-o à nova maneira que se introduzia na sua Providência, uma vez que foi forçado a deixar o leme a outros, mais hábeis segundo o mundo, ele dizia que gostava mais da sua pequena barraca de outrora.

Quer dizer que, no seu tempo, as crianças agiam pelo coração e não pelo sinal, vinham a ele, amavam-no e levavam uma vida de família e não uma vida de regimento.

Textos que vêm em apoio desta doutrina:

Regnum Dei intra vos est.

Caro non prodest quidquam, spiritus est qui vivificat.

Marta, Marta, sollicita es et turbaris erga plurima, porro unum est necessarium. Maria optimam partem elegit quae non auferetur ab ea. Exercitatio corporalis ad modicum utilis est, pietas autem ad omnia utilis est.

Quinimo beati que audiunt verbum Dei es custodiunt illud[ppp].

Não há que dedicar-se demasiado à casca; muitos não pensam senão na casca, não vêem senão a casca, não julgam senão pela casca; é necessária a casca para conduzir a seiva, levar a seiva, mas o que é a casca sem seiva? uma árvore morta; é necessário proteger a casca da árvore, mas é necessário, sobretudo, regar, estrumar a árvore para ter uma boa seiva, forte e vivificante e a árvore será bela e magnífica. Ter o cuidado das raízes.

O espírito de Deus ou o bom espírito está em Jesus Cristo.

Jesus veio a Nazaré e entrou, segundo o seu costume, na Sinagoga e levantou-se para ler.

Foi-lhe dado o livro do profeta Isaías e, tendo-o desenrolado, encontrou o lugar onde está escrito:

O espírito do Senhor está sobre mim, por isso me consagrou pela sua unção, enviou-me para evangelizar os pobres, curar os que têm o coração partido, anunciar a libertação aos cativos e a vista aos cegos; dar a liberdade aos oprimidos, proclamar um ano de graça do Senhor e o dia da retribuição.

E tendo enrolado o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-se e todos tinham os olhos fixos sobre ele.

E começou a dizer: hoje cumpriu-se esta Escritura ante os vossos ouvidos. (Lc 4,16).

São João falando do Espírito Santo que tinha visto descer sobre Jesus Cristo, depois do seu batismo enquanto estava em oração, diz:

Abriram-se os céus e naquele momento viu o espírito de Deus descer, em forma corporal, semelhante a uma pomba, vir sobre ele e nele repousar e uma voz se fez ouvir do céu, dizendo: Tu és o meu Filho bem-amado, em ti pus as minhas complacências. (Mt 3,16 e paralelos).

E noutro lugar, João diz: Eu vi o espírito descer como uma pomba do céu e permanecer sobre ele, e eu, João, não o conhecia, mas aquele que me enviou a batizar em água disse-me: Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, é esse que batiza no Espírito Santo. (Jo 1,32).

E noutro lugar, São João diz: Aquele que Deus enviou fala a linguagem de Deus, pois que não é por medida que Deus lhe dá o seu Espírito. (Jo 3,34).

Assim, o Espírito Santo veio sobre ele e permaneceu sobre ele, recebeu-o sem medida e permaneceu inteiramente nele.

Tais são os testemunhos de São João e do próprio Jesus Cristo.

Porque o Espírito de Deus está nele é que não diz nada de si próprio, não faz nada de si mesmo e todas as suas palavras e todas a suas ações são conformes ao pensamento e à vontade do Pai, sendo ditadas pelo Espírito Santo que é a união destas duas pessoas.

Também não teme dizer: A minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou. (Jo 7,16).

Aquele que me enviou é verdadeiro e o que ouvi dele é o que digo ao mundo. (Jo 8,26).

As palavras que vos disse, não as disse de mim mesmo, mas o Pai que está em mim, ele próprio faz as obras. (Jo 14,10).

Falo do que vi em meu Pai, eu, homem, que vos disse a verdade que ouvi de meu Pai. (Jo 8,38).

A palavra que vos disse não é minha, mas de meu Pai que me enviou. (Jo 14,24).

Não falei de mim mesmo, mas meu Pai que me enviou, me prescreveu ele próprio o que devo dizer, de que devo falar, e eu sei que o seu mandamento é a vida eterna.

Por isso, o que eu digo, digo-o como o Pai me ordenou. (Jo 12,49).

Tal como ouço, eu julgo e o meu juízo é justo, porque não procuro a minha vontade mas a vontade daquele que me enviou. (Jo 5,30).

Nada posso fazer por mim próprio. (Jo 5,30).

O Filho não pode fazer nada por si mesmo, a não ser o que vê fazer o Pai, porque tudo o que o Pai faz, o Filho o faz igualmente. (Jo 5,19).

É assim que em Jesus Cristo e em seu Pai não há senão um só Espírito, senão uma maneira de pensar e de agir; é o mesmo espírito que pensa e julga; o mesmo espírito que age sempre em união com o Pai e o Filho.

De modo que ao ouvir Jesus Cristo, é o Pai que nós ouvimos, ele fala a linguagem de Deus, diz São João.

Ao ver agir Jesus, vemos as próprias ações do Pai, pois que o Filho não faz nada de si mesmo, é o próprio Pai que faz as suas obras.

Que bela harmonia! Que acordo entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo em Jesus Cristo!

Portanto, que temos nós de fazer?

estudar Nosso Senhor Jesus Cristo,

escutar a sua palavra,

examinar as suas ações,

a fim de nos conformar com ele e nos encher do Espírito Santo.

Pois que tudo o que Jesus Cristo disse, tudo o que fez, foi ditado pelo Espírito Santo, se queremos encher-nos do Espírito Santo, é preciso estudar as suas palavras e as suas ações, e conformar a nossa vida e as nossas palavras com o que disse, com o que fez e, então, agiremos e falaremos segundo o Espírito Santo.

Assim, temos aí uma regra segura e certa para nos encher do Espírito Santo e agir e pensar segundo ele.

O Evangelho contém as palavras e as ações de Jesus Cristo[202].

O espírito de Deus difundiu-se em toda a sua vida, em todas as suas ações.

As suas palavras, as suas ações são como outras tantas lições que o Espírito Santo nos dá desde o presépio até ao calvário.

Cada palavra de Jesus Cristo, cada exemplo é como um raio de luz que vem do céu para nos iluminar e nos comunicar a vida.

Aquele que quer encher-se do espírito de Deus deve estudar Nosso Senhor cada dia: as suas palavras, os seus exemplos, a sua vida; eis aí a fonte onde encontraremos a vida, o espírito de Deus.

No pequeno trabalho da oração, falamos deste estudo de Nosso Senhor para adquirir o seu espírito[203].

O espírito de Deus está na Igreja.

O espírito de Deus está no nosso Santo Padre o Papa.

O espírito de Deus está nos santos[204].

O espírito de Deus está num bom regulamento tirado do Evangelho e aprovado pela Igreja.

O espírito de Deus está nos nossos superiores[205].

Quão necessário é que os nossos superiores tenham o espírito de Deus.

Necessidade de não escolher para superiores senão aqueles que têm o espírito de Deus.

Não considereis para esse espírito nem a ciência, nem a habilidade, nem o talento, nem a riqueza, mas considerar a caridade forte e esclarecida; tu me amas? dizia Jesus Cristo a São Pedro, antes de lhe dar o governo da sua Igreja…

Como ouço, assim julgo, e o meu juízo é justo, porque não procuro a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. (Jo 5,30).


Como se pode adquirir o espírito de Deus[qqq]

Estudando o Santo Evangelho e rezando muito.

Antes de mais, é preciso ler e reler o Santo Evangelho, deixar-se penetrar por ele, estudá-lo, sabê-lo de cor, estudar cada palavra, cada ação, para lhe apreender o sentido e o fazer passar aos seus pensamentos e às suas ações.[rrr]

É na oração de cada dia que importa fazer este estudo e que há que fazer passar Jesus Cristo à própria vida.

Recitar o seu rosário, fazer a sua via-sacra, estudar o ensino de Nosso Senhor, é aí que encontraremos cada dia alguma luz do Espírito Santo e chegaremos, pouco a pouco, a conformar a nossa vida à de Jesus Cristo.

É necessária uma oração assídua,

fazer bem, cada dia, a sua devoção ao Espírito Santo, quer dizer, após o almoço, recitar o Veni Creator, sete Ave-marias em honra dos sete dons e a oração,

repetir muitas vezes esta invocação: Meu Deus, dai-me o vosso espírito! a fim de que atuemos sempre em união com este espírito de Jesus Cristo, nosso Mestre e nossa luz[206].

Quais são os que têm o espírito de Deus?

São os que rezaram muito e os que o pediram durante muito tempo.

São os que estudaram muito tempo o Santo Evangelho, as palavras e as ações de Nosso Senhor,

os que trabalharam muito tempo a reformar em si o que é oposto ao espírito de Nosso Senhor[207].

Aquele que tem o espírito de Deus, não diz nada de si mesmo, não faz nada de si mesmo;

tudo o que diz, tudo o que faz repousa sobre uma palavra ou uma ação de Jesus Cristo que ele tomou como fundamento da sua vida; Jesus Cristo é a sua vida, o seu princípio, o seu fim.

Não sou eu que vivo, é Jesus Cristo que vive em mim.

Não se deixa conduzir nem pela ciência, nem pelo raciocínio, mas pela fé e pelo Espírito Santo que age nele.

E com frequência não se o compreende, porque os caminhos do Espírito Santo são muitas vezes desconhecidos para os homens, o espírito sopra onde quer, não se sabe donde vem, nem para onde vai; vem do alto.

Também os santos faziam muitas vezes coisas admiráveis que os homens não compreendiam, porque eram conduzidos pelo espírito de Deus e tornavam-se frequentemente objeto dos desprezos e dos insultos dos homens, porque o homem carnal não compreende o que vem de Deus, precisaria de uma luz sobrenatural para o poder discernir.

Tiravam todas as suas inspirações e os seus pensamentos do amor infinito de Deus. Deus caritas est[sss], no presépio, no calvário e no tabernáculo que são os três grandes pilares à luz dos quais um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo deve conduzir-se[ttt].

O espírito de Deus é raro

Sim, o espírito de Deus é raro, porque é muito difícil deixar inteiramente a própria razão, a própria ciência, a própria vida natural, os defeitos do próprio espírito, para se encher do espírito de Deus e não agir senão de acordo com o espírito de Deus[208].

É difícil estar de tal modo unido a Deus ao ponto de não fazer senão um com Ele; é difícil ser bastante humilde, bastante pequeno, bastante dócil, bastante silencioso, de modo que se o possa receber sempre bem e seguir as suas inspirações.

As suas inspirações são, por vezes, tão doces, tão finas, tão imperceptíveis, para não dizer sempre, que é difícil apreendê-las, compreendê-las e aceitá-las.

A ciência, a razão, o mundo, pelo contrário, fazem tanto ruído à nossa volta tal como os costumes da vida, que é muito difícil entendê-lo e segui-lo perfeitamente.

Para ter o Espírito Santo, é necessário ter deixado esta vida natural que nos envolve e nos conduz.

É preciso ter lutado durante muito tempo contra os próprios defeitos, espirituais e carnais, é necessário ter estudado durante muito tempo o Evangelho, ter rezado muito tempo para o pedir.

Quão raros são os que preencheram todas estas condições.

Aliás, a vida natural é tão forte em nós e a vida espiritual tão elevada, tão oposta à nossa natureza, que se é tentado a ver como impossíveis as inspirações do Espírito Santo que se trata frequentemente como quimeras. Os grandes ensinamentos do Evangelho, os conselhos são vistos como impossíveis e prefere-se mais seguir o caminho habitual, a via ordinária do que abraçar os caminhos elevados e muitas vezes áridos para a natureza, que vêm do Espírito Santo[209].

E, depois, pelo raciocínio, destrói-se todo o Evangelho, encontra-se sempre maneira de arranjar as coisas e de manter a vida natural.

O raciocínio mata o Evangelho e destrói tudo o que há de elevado, de grande, de espiritual, nos preceitos e nos conselhos de Nosso Senhor; assim, no que respeita à pobreza, ao desprendimento, à caridade, à renúncia, à mortificação, à penitência.

Por isso, quando se encontra alguém sobre a terra que tem o espírito de Deus, como se o procura! como se corre a ele! como se vem procurar este espírito, estes conselhos que vêm do alto; parece, então, que se está com Deus e que é o céu na terra; é raro e, no entanto, não dependeria senão de nós tê-lo enchendo-nos do Evangelho e pondo-o em prática.

O espírito de Deus! dá-lo a alguém é o maior tesouro que Deus lhe pudesse dar. É também o maior tesouro que Deus faz à terra, dar o seu espírito a alguns homens para que os outros possam vê-lo, consultá-lo e segui-lo, aproveitar dele.

Peçamo-lo a Deus e não cessemos de o pedir para nós e para os outros.

É difícil de adquirir e difícil de conservar

Porque há que lutar continuamente contra a própria natureza, as suas inclinações, a sua razão, por vezes, contra a própria ciência e também contra o mundo que não o compreende e que não cessa de tratar como insensato e como louco os que agem em oposição a ele[210].

Os que seguem o espírito de Deus são muitas vezes perseguidos, expostos ao desprezo, ao ódio dos outros, e, para lutar constantemente contra si mesmo e contra os outros, é necessário uma grande dose de força e de energia e de graça para não enfraquecer e se afrouxar nos caminhos do Espírito Santo.

E o espírito de divisão que se introduz por todo o lado e vem lutar contra os que agem unicamente por Deus!

Sinais pelos quais se conhece que uma alma está cheia do espírito de Deus

São Paulo diz-nos que o espírito de Deus produz frutos particulares em nós e que é fácil reconhecê-lo.

Diz-nos ele que os frutos do espírito são: a caridade, a alegria, a paz, a paciência, a humildade, a bondade, a perseverança, a mansidão, a fé, a modéstia, a continência, a contenção, a castidade. (Gál 5,23).

Explicação de cada um destes frutos, a descrição, a prudência.

Uma palavra sobre a descrição:

a prudência, a reserva nas suas palavras,

aquele que é indiscreto, que fala a torto e a direito, que revela coisas inúteis, causa muitos aborrecimentos.

Revesti-vos, como eleitos de Deus, santos e bem-amados, de entranhas de misericórdia, de bondade, de humildade, de modéstia, de paciência, suportando-vos uns aos outros, cada um de vós perdoando a seu irmão as razões de queixa que pode ter; Como o Senhor vos perdoou, perdoai também aos vossos irmãos; acima de tudo, guardai a caridade que é o vínculo da perfeição. (Col 3,12).

Que tudo o que é verdadeiro,

tudo o que é honesto,

tudo o que é justo,

tudo o que é santo,

tudo o que é amável,

tudo o que pode dar boa reputação,

tudo o que é louvável, segundo os costumes, ocupe os vossos pensamentos. (Fil 4,8).

Tais são os frutos que produz em nós o Espírito Santo.

As nossas palavras e as nossas ações são outros tantos frutos santos e benditos que saem de dentro de nós e produzem bons efeitos, como uma boa árvore produz bons frutos e uma má árvore maus frutos.

Assim é com os que têm o Espírito Santo e com os que o não têm: um produz bons frutos e o outro produz maus.

Nenhum homem jamais viu Deus; mas se nos amamos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor é perfeito em nós; o que nos faz

conhecer que permaneceremos nele e ele em nós é que nos deu parte no seu espírito. (I Jo 4,12).

Todos nós fomos batizados num mesmo espírito, para todos juntos, não ser senão um mesmo corpo. (1 Cor 12,13).

Quão necessário é o espírito de Deus numa comunidade

Se o espírito de Deus é necessário para si em particular, para ter a sabedoria e o amor, com maior razão é necessário numa comunidade.

Ter o espírito de Deus é tudo.

É tudo para si mesmo.

É tudo para uma comunidade.

É o espírito de Deus que forma a unidade numa casa, que faz a fusão dos espíritos e dos corações, que faz com que todos não sejam senão um.

Ut unum sit.

Era a oração ardente e muitas vezes repetida de Nosso Senhor Jesus Cristo, após a última Ceia.

Que todos sejam um num mesmo espírito.

A verdadeira unidade não está nem nas pedras, nem no dinheiro, nem nas casas, nem nos hábitos, nem na vida comum, nem nos títulos de irmãos ou de irmãs que nos damos; tudo isso supõe a unidade mas não a faz; tudo isso, no fundo, não é nada.

Quantas vezes estes títulos de irmãos e de irmãs são ridículos e mentirosos!

A verdadeira unidade está na união de um mesmo espírito, de um mesmo pensamento, de um mesmo amor e é Jesus Cristo que é o seu centro pelo Espírito Santo.

Permanecei em mim e eu em vós, que sejamos todos, por assim dizer, uns nos outros e que ao ver um se veja também o outro: eis aí a verdadeira família, a verdadeira comunidade, a verdadeira união; os mesmos pensamentos; os mesmos pontos de vista, as mesmas inspirações em Jesus Cristo.

O Evangelho dá-nos um verdadeiro exemplo desta união de espírito e de coração, nos primeiros cristãos que todos não tinham senão um só coração e uma só alma.

Os que não têm o bom espírito como são prejudiciais e de temer numa casa, numa comunidade! Como fazem mal aos outros pelas suas palavras e pelos seus exemplos! Estão constantemente a dizer mal deste, desta, daquele, daquela;

São semelhantes, como diz Nosso Senhor a estas pequenas víboras, estas serpentes que estão aí a espreitar o momento em que nos poderão morder para espalhar o veneno que levam continuamente no seu seio.

palavras de censura, de críticas, palavras a torto e a direito, inúteis, perda de tempo, chocarrices, etc, etc…

Seria necessário pôr-lhes uma mordaça na boca até que sejam convertidos.

Raça de víboras, dizia Nosso Senhor falando aos fariseus, porque o seu coração era mau e não procuravam senão mordê-lo e espalhar a sua maldade sobre ele e seus apóstolos.

E, ordinariamente, são esses que querem dominar e que procuram sempre dominar pelo seu espírito maligno e de crítica; são orgulhosos e querem ter sempre o mando sobre os outros.

É preciso vigiar estes maus espíritos e não os guardar, porque são uma peste e um veneno que serão sempre prejudiciais e mortais e que, não somente impedem o bem, mas arruinam as casas e destroem-nas.

Estas pessoas, numa casa, são semelhantes a estes demolidores; fazem mais obra num momento do que fazem outros trinta numa manhã.

Quando há os que procuram construir e outros que destroem continuamente, é inútil perder o tempo a construir; os destruidores irão sempre mais depressa do que os construtores.

O melhor meio para evidenciar a estes graves inconvenientes, seria deixá-los sós e fazê-los guardar o mais perfeito silêncio; aí está o único remédio; mas como essas pessoas são sempre muito orgulhosas e dominadoras, querem sempre falar e falar mais alto do que os outros e querem dominar toda a gente e não se submeter a ninguém[211].

O melhor meio é despedi-las; mais vale sacrificar uma pessoa do que sacrificar toda uma comunidade e ver uma casa andar sempre mal e viver sem união e sem caridade, por causa de algumas más cabeças; seria necessário pôr-lhes uma mordaça na boca todos os dias, até que tivessem perdido o seu mau espírito.

Nosso Senhor diz esta palavra: Todo o reino dividido contra si mesmo cairá em ruínas.

Quem não está comigo, está contra mim e quem não junta comigo, dispersa. (Mt 12,30).

Aquele que não está com o superior, ainda que, aparentemente nada fizesse contra ele, que se contenta em ser indiferente, em não o aprovar, está contra o seu superior.

Aquele que age à margem do seu superior, mesmo que se trate de boas obras, contudo se estas obras não são feitas pelo próprio superior, vistas e sancionadas por ele, em união com ele, não juntais com ele, dispersais, isto é, trabalhais à parte e dispersais o bem e as obras.

É muito difícil que não haja, numa casa pequenas divisões, pequenas oposições de espírito, de pontos de vista e de maneiras de fazer; cada qual tem o seu espírito

e os seus pontos de vista, como cada um ter o seu rosto; porém, é necessário fundir tudo, o seu espírito, os seus pontos de vista particulares nos pontos de vista gerais de uma obra, de uma casa e saber fazer o sacrifício dos seus pensamentos, dos seus pontos de vista, para o bem e nunca pôr-se à margem daqueles com quem estamos e devemos estar; a não ser deixar de todo aqueles com quem se deve estar e formar uma sociedade à parte, à margem da comunidade, porém nunca dentro dela. E, quando não é possível unir-se, mais vale separar-se; isso evita muitos sofrimentos de uma parte e de outra[212].

São Paulo, ao ver as querelas e as divisões que existiam entre os coríntios dizia-lhes: adhuc carnales estis. (1 Cor 3,2); vós sois ainda carnais.

Pode-se bem dizê-lo a muitos outros; deixais-vos conduzir pela carne e não pelo espírito de Deus.

Resumo: O que é renunciar ao seu espírito?

Renunciar ao seu espírito, é estar bem convencido, antes de mais nada, de que temos muitos defeitos espirituais e que, se agimos ou julgamos segundo os nossos pensamentos, as nossas ideias, não podemos senão enganar-nos muito frequentemente e fazer muito mal.

(É renunciar à sua cabeça, às suas ideias, aos seus juízos e aos pensamentos, para se submeter aos juízos e aos pensamentos de um outro.

É guardar o silêncio no temor de dizer coisas que não sejam conformes ao espírito.)

É não dizer e não fazer nada de si mesmo, a exemplo de Nosso Senhor; mas, antes de dizer ou de fazer o que quer que seja, examinar se o que dizemos ou fazemos é bem conforme aos pensamentos e às ideias de Jesus Cristo, nosso Mestre, à sua humildade, à sua mansidão, à sua pobreza, à sua caridade[213].

É pedir conselho aos seus superiores nas coisas duvidosas, quando se teme agir por si mesmo.

É submeter-se de espírito e de coração a todas as decisões da Igreja e do Papa.

É submeter o seu espírito e o seu juízo às decisões e ao juízo dos seus superiores.

É não fazer senão um com eles, pois que eles representam-nos Jesus Cristo na terra e devemos estar com eles em todas as circunstâncias.

É apoiar-se sempre numa palavra ou numa ação de Nosso Senhor Jesus Cristo, para falar ou agir.

Práticas

Desconfiaremos muito de nós próprios, dos nossos pensa-mentos, dos nossos juízos, das nossas ideias[uuu].

Guardaremos muito o silêncio por temor de dizer as coisas contrárias ao espírito de Deus, sobretudo se somos jovens.

Estudaremos muito o Evangelho que encerra as ações e as palavras de Jesus Cristo, em quem residia o Espírito Santo por completo.

Recitaremos cada dia, depois do almoço, o Veni Creator, sete Ave-marias para pedir dons do Espírito Santo e a oração do Espírito Santo. (O Veni Creator é “ad libitum”, recitar-se-á ao domingo, nos dias de festa e de retiro).

Submeter-nos-emos de espírito e de coração a todas as decisões da Igreja e do Papa.

Submeter-nos-emos às decisões e juízos dos nossos superiores em quem devemos reconhecer o espírito de Deus.

Evitaremos todo o cisma e toda a divisão entre nós, trabalhando todos para não ter senão um só coração e uma só alma, um só espírito em Jesus Cristo, que deve ser o centro de todos os nossos pensamentos e de todos os nossos afetos, recordando estas palavras que dizemos todos os dias na Santa Missa: per ipsum, et cum ipso, et in ipso[vvv]

.

Renunciar a si mesmo: 3º Ao seu coração[www]

A renúncia ao próprio coração refere-se particularmente ao que chamamos hoje a afetividade.

No entanto, há neste capítulo, uma certa confusão porque a palavra coração tem múltiplos sentidos.

Em francês, por exemplo, diz-se prendre son travail à cœur, quer dizer, que se toma algo a peito; pode-se dizer também a alguém que tem bom coração, isto é, que é afetivamente sensível à felicidade ou à infelicidade dos outros; diz ainda avoir mal au cœur, para dizer que se tem náuseas; trata-se, pois, de um estado fisiológico.

Na Bíblia, a palavra coração é frequentemente empregada mas com sentidos ainda diferentes.

Assim, pode significar o que é mais íntimo, o mais profundo, como quando dizemos ir ao coração de uma questão, quer dizer, ao essencial. O coração do homem é o seu segredo mais íntimo e mais pessoal, como na palavra de Jesus, “onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração”[214].

O Padre Chevrier sentiu bem esta multiplicidade de sentidos. Inclusive parece que, durante certo tempo, pensou colocar todas as renúncias sob o título renúncia ao próprio coração. Com efeito, se os quatro objetivos que podem atrair o nosso coração são os bens da terra, as criaturas (quer dizer, os homens), a si próprio e Deus, ao tratar da renúncia ao próprio coração, pode-se falar da pobreza, da renúncia à família e ao mundo e da renúncia a si próprio.

Finalmente, o Padre Chevrier escolheu introduzir a renúncia ao próprio coração simplesmente como uma parte da renúncia a si mesmo. Trata-se, assim, especialmente, da nossa vida afetiva, chamada aqui o amor das criaturas. O assunto é apenas esboçado. De resto, a questão foi abordada sob um outro aspécto a propósito da castidade[215].

Note-se que renunciar ao próprio coração, não é renunciar a amar, mas passar de um amor natural a um amor sobrenatural.

Infelizmente, ainda aqui, temos uma fonte de confusão porque o Padre Chevrier não emprega as palavras natural e sobrenatural com um sentido teológico bastante preciso.


O amor natural designa a inclinação espontânea, a simpatia que nos pode conduzir para os outros, em particular o interesse espontâneo de um homem por uma mulher e vice-versa. Este amor natural, diz o Padre Chevrier, é permitido às pessoas do mundo porque tem um fim honesto que é o matrimónio[216]. Haveria que ajuntar que, segundo a vontade de Deus, esta inclinação natural pode ser vivida de maneira sobrenatural, especialmente quando há a graça do sacramento do matrimónio[217].

Em tudo isso, o Padre Chevrier é tributário da sua época. As pessoas do mundo parecem reduzidas a uma triste condição pouco favorável à vida sobrenatural. Felizmente aprendemos a redescobrir a grandeza sobrenatural da condição leiga e do matrimónio. O cristão leigo, como o padre, embora num outro estilo, está no mundo sem ser do mundo, como Jesus não é do mundo.

Mas a preocupação do Padre Chevrier permanece verdadeira: quem quer que renuncie ao matrimónio por causa do Reino de Deus, renuncia a um certo tipo de relações entre homem e mulher porque o dinamismo destas relações conduz ao matrimónio. Importa ser lógico com o que se escolheu.

O amor sobrenatural não consiste, no entanto, num amor inumano, friamente racional, desprovido de todo o impulso afetivo. Já encontramos este amor sobrenatural descrito com a parte que pertence à sensibilidade[218]. Encontrá-lo-emos ainda num capítulo ulterior[219].


Quando Nosso Senhor Jesus Cristo diz que é preciso renunciar a si mesmo, não faz nenhuma exceção: o coração fazendo parte integrante de nós próprios, está, pois, incluído nesta renúncia que Jesus Cristo exige daqueles que querem ser inteiramente dele.

O coração é a sede do amor

O coração é a sede do amor, é pelo coração que amamos.

O amor é uma atração, uma inclinação que nos conduz para as criaturas ou para Deus. Ora, esta inclinação, este sentimento, esta atração, pode ser boa, como pode ser má; esta atração tem necessidade de ser conduzida, dirigida e tem os seus defeitos como o espírito tem os seus.

Do mesmo modo que o espírito tem os seus defeitos, o coração tem também os seus, porque o coração segue o espírito e não ama, ordinariamente, senão o que conhece, o que vê.

Assim, o coração tem também os seus defeitos, e graves defeitos, e são estes defeitos que é preciso evitar, e aos quais importa renunciar para se tornar um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo.

O coração peca por defeito de conhecimento do espírito e também sedução.

O coração tem necessidade de amar, é a sua vida, amar é para ele uma necessidade, é a sua vida tal como pensar é a vida do espírito, agir é a vida do corpo. É, pois necessário dirigir o coração nos seus afetos e fazê-lo renunciar a todo o afeto que não é segundo Deus.

Os quatro objetos de amor do nosso coração

O nosso coração tem quatro objetos para os quais se pode dirigir.

Pode dirigir-se

para o dinheiro, os bens da terra,

para as criaturas,

para si mesmo e

para Deus.

Eis aí os quatro objetos que podem atrair o nosso coração e tornar-se objeto do seu amor:

o amor do dinheiro

o amor das criaturas,

o amor de si mesmo e

o amor de Deus.

Temos, pois, que examinar quais são os defeitos que podem introduzir-se no amor destes objetos a fim de renunciar a eles e fazer reinar em nós o verdadeiro amor.

1º O amor ao dinheiro

Sob esta palavra, compreende-se o amor dos bens da terra.

Nosso Senhor condena este amor do dinheiro e dos bens da terra,

quando diz que ninguém pode servir a dois senhores; ou se amará um e [se] odiará o outro; [ou] se unirá a um e desprezará o outro; não se pode servir a Deus e ao dinheiro.

O mesmo se pode aplicar também ao amor das criaturas, e ao amor de si mesmo.

Porque, aí onde está o vosso tesouro, aí está também o vosso coração.

Em que se reconhece que se tem o amor do dinheiro?

Reconhece-se quando se está desejoso e ávido de o adquirir. Quando se está inquieto na posse dele e triste, desesperado ao perdê-lo.

Explicação

Ávido de adquirir.

Inquieto ao possuir.

E triste ao perdê-lo.

Maus efeitos que este amor produz em nós próprios

Aquele que é avaro e que está possuído pelo amor do dinheiro está inquieto, sombrio, preocupado; por isso, frio, insensível perante as infelicidades dos outros.

Desculpa do avaro

Economia, prudência.

Outro defeito oposto ao amor do dinheiro

O defeito oposto ao amor do dinheiro é a despreocupação e a prodigalidade; sem economia, sem ordem, dissipa os bens de Deus, abusa dos dons de Deus.

Pessoas que nunca ganharam a sua vida, que não sabem o que é viver, como se diz no mundo; são esbanjadores, mãos-largas sem razão; arruinam as casas, trazem o seu defeito de prodigalidade para as casas onde estão como arruinaram a sua, se os superiores não põem ordem; pródigo no dinheiro, pródigo nos alimentos, na roupa, no aquecimento, na iluminação; pródigo nos operários, fazem e desfazem sem razão, sem motivo, à mais pequena aparência. Chamam isso largueza, caridade, é preciso chamar a isso desordem e prodigalidade… Deixa-[se] arrastar, não [se] tem cuidado com nada, não [se] junta nada; É-[se] despreocupado. O contrário do avaro.

In medio stat virtus[xxx].

A virtude da pobreza deve dirigir a nossa conduta por relação aos bens da terra[220].

2º O amor das criaturas

Pela palavra criaturas entende-se o próximo, isto é, os seres que Deus criou semelhantes a nós e que devemos amar como a nós mesmos e por relação a Deus.

No amor do próximo, pode introduzir-se muitos defeitos.

Pode-se amar o próximo

de uma maneira natural,

de uma maneira apaixonada,

de uma maneira interessada e

de uma maneira sobrenatural

Daí quatro espécies de amor:

o amor natural,

o amor apaixonado,

o amor interessado e

o amor sobrenatural

Amor natural

É amar alguém por causa das suas qualidades naturais.

Há o amor da família, do pai e da mãe pelos seus filhos e dos filhos para com os seus pais.

Amar alguém por causa das suas qualidades interiores ou exteriores.

O amor natural das criaturas entre si e que são do mesmo gênero e da mesma família.

O amor natural para com os infelizes.

O amor [… de reconhecimento][yyy].

O amor natural que se introduz nas pessoas que vivem em conjunto.

O amor natural que se introduz sobretudo entre as pessoas de diferente sexo.

Nulidade deste amor

Este amor não é mau em si; pelo contrário, é bom, natural, honesto.

Porém, é nulo para a salvação porque não procede de um princípio de fé e de caridade e enquanto permanece no estado de natureza, é nulo para o céu[zzz].


Perigo do amor natural

Pode ser mesmo perigoso, sobretudo quando existe entre pessoas de sexo diferente, por causa da nossa tendência para o mal e que o amor natural não sendo guiado pela fé e pela verdadeira caridade, não pode senão degenerar e tornar-se, pouco a pouco, um amor apaixonado, se não se está atento a si mesmo e às tentações que pode fazer nascer em nós.

1º Entre pessoas do mesmo sexo

2º Este amor natural desliza facilmente entre pessoas de sexo diferente (atração recíproca entre…) a propósito de: confessor e penitente, padre e religiosa, pessoas que têm ocasião de se ver frequentemente por motivo de emprego, patrão e doméstica, serva, doença, aflitas e consolador… Atração natural, pessoas que se vão de imediato; superior e inferior; serviço… Parentesco, direção, relação de caráter; qualidades naturais…

Marcas deste apego: pensamentos, testemunhos externos, cartas frequentes, tentações, emoções…

Escusas falsas que sabemos encontrar para legitimar este amor natural; o bem espiritual das almas.

Para evidenciar a todas estas tentações, evitar o perigo: meios práticos.

Conhece-se que o amor natural degenera e se torna demasiado natural, isto é, chega a raiar a paixão, quando se pensa demasiado na mesma pessoa, quando se gosta de encontrar em conjunto, quando se procura a sua companhia, quando parece longo o tempo em que se não está com ela, ou se preocupa demasiado com o que ela faz; há, pois, que vigiar este amor natural com vista a torná-lo útil à salvação e evitar quedas que pode provocar-nos quando se o deixa crescer demasiado em nós.

Este artigo é muito importante. É porque se não vigia o suficiente neste ponto que muitos caem no mal.

Este amor natural que pode ser permitido às pessoas do mundo, porque pode ter um fim honesto e permitido, que é o matrimónio, não o é para os padres e as religiosas que renunciaram ao matrimónio e que, por consequência, devem reprimir em si todo o sentimento natural que pudesse chegar a um semelhante fim. A bem dizer, o amor natural tende a um amor mais sensível, não se pode parar no caminho do amor.

Regras a seguir para evitar, não cair neste amor natural.
Amor apaixonado

É um amor que procura a satisfação dos sentidos.

É um amor que não pode existir sem pecado.

Amor sensível e apaixonado.


Renunciar a si mesmo 4º À própria vontade

Porque será que, nas comunidades, se dá tanta importância à obediência? Parece que o Padre Chevrier se tenha colocado esta questão[221].

Com efeito, muito frequentemente, nas comunidades sacerdotais e nas comunidades religiosas, se fez da obediência um tema central. Teve-se mesmo a tendência a tratar este tema isolando-o do resto da vida cristã, a tal ponto que a obediência pôde parecer suplantar a caridade ou substituí-la pura e simplesmente.

Deu-se dois argumentos principais para motivar a importância dada à obediência: é o caminho mais curto para a perfeição espiritual e, por outro lado, aquele que obedece nunca se engana. O Padre Chevrier retoma estas explicações sem as discutir[222].

No momento atual, não podemos suportar de modo nenhum um tal simplismo. Sabemos muito bem como se pôde manter “a verdade cativa da injustiça”[223] ao exigir de infelizes uma submissão incondicional, assim dita querida por Deus, àqueles que detêm o poder. Sabemos demais também, como alguns cometeram crimes contra a humanidade e pretenderam desculpar-se declarando que eram apenas executantes de ordens vindas de cima.

Por outro lado, a situação mudou. Por exemplo, a monja enclausurada sai de vez em quando para exercer o seu direito de voto. Ao fazê-lo, não obedece à sua superiora, exerce a parte de autoridade que ela detém como cidadã conforme a constituição da sua nação. Na determinação do seu voto, é deixada à sua responsabilidade perante a sua consciência de cidadã e de cristã. A sua fidelidade a Deus não pode, pois, reduzir-se pura e simplesmente à obediência religiosa.

Os tempos mudaram também sob um outro aspécto. Um apóstolo, hoje como ontem, deve tomar iniciativas, mas a coordenação, a harmonização destas iniciativas, não pode fazer-se observando simplesmente as leis da Igreja e as diretivas dos superiores.


Todos os que trabalham num mesmo terreno devem associar-se para em conjunto descobrir a ação a empreender, as iniciativas a tomar.

Em tais condições, este capítulo do Verdadeiro Discípulo é desprovido de interesse para nós? Não, porque está centrado na procura da vontade de Deus e a obediência propriamente dita é assim situada num conjunto fora do qual não é autêntica[224].

Para o Padre Chevrier, a importância decisiva não está ao nível da obediência mas ao nível da dependência querida, procurada, em relação ao Espírito de Deus. Se alguém vive nesta dependência, se comprometerá na obediência segundo os passos de Jesus Cristo, pelo que o artigo mais importante continua sendo o da renúncia ao próprio espírito.

Trata-se, pois, de procurar uma inteligência espiritual da obediência cujos aspéctos principais são os seguintes.

A obediência tem lugar na procura mais ampla da vontade de Deus. Ela não é para tal, o único meio, já que a vontade de Deus se manifesta ainda por outras vias. Mas a obediência tem um lugar privilegiado porque garante a sinceridade, a verdade da nossa procura, a autenticidade da nossa caridade. A obediência é o maior sinal do nosso amor a Deus[225].

A obediência é uma adesão a Deus e à autoridade dos superiores por causa de Deus, por amor de Deus e não por afeição ou por temor dos superiores em si mesmos. Importa obedecer com fé[226].

Há que saber pôr em ordem os diversos tipos de autoridade porque só uma autoridade é total e absoluta, a de Deus, e, em cada situação, deve-se perguntar a quem obedecer[227].

Não há submissão a Deus quando se dá a um superior mais autoridade do que aquela que Deus lhe dá. Mas, nestas condições, pode-se bem dizer que o dever de obediência deve estar acima de tudo[228]. Com efeito, não podemos comportar-nos como se Deus nos tivesse constituído autoridade suprema para julgar todos os outros.

Importa não perder de vista a finalidade da obediência, especialmente na vida apostólica: ela assegura a coesão das forças para o serviço da obra de Deus, dá-nos a segurança de ser colaboradores de Deus. É o sentido do que o Padre Chevrier chama um regulamento[229].

Por outro lado, esta concepção da obediência é, antes de mais, um apelo aos que detêm a autoridade. Eles estão ao serviço da autoridade de Cristo e ao serviço de cada um. Devem estar bem mais preocupados em submeter-se a Cristo do que em obter a submissão dos outros. Como é difícil ser superior[230].


Enfim, não se pode esquecer que a obediência será sempre mais ou menos custosa, dolorosa, mesmo crucificante, um dia ou outro, para aquele que procura verdadeiramente a realização da vontade de Deus. Assim foi para Jesus obediente a seu Pai até a morte de cruz, não querendo agradar nem aos Sumos-sacerdotes, nem a Pilatos, nem a si mesmo, mas só ao Pai[231].



É o quarto ato de renúncia que temos de fazer para chegar à perfeita renúncia a nós mesmos.

Doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre este ponto

Se alguém quer vir após mim,

renuncie a si mesmo,

tome a sua cruz

e siga-me!

Ora, o que há mais próprio de nós mesmos do que a nossa vontade, dado que a nossa vontade é a expressão do nosso pensamento, dos nossos juízos? É a tradução exterior da nossa alma.

Ao mandar-nos renunciar a nós mesmos, Nosso Senhor pede, assim, a renúncia à nossa vontade.

O que é renunciar à própria vontade?

É não agir segundo a sua própria vontade, mas submeter a sua vontade à de um outro[232].

Por que temos que renunciar à própria vontade?

Porque a nossa vontade está submetida a todos os defeitos do nosso espírito, a todas as paixões do nosso coração; não queremos e não fazemos senão o que o nosso espírito conhece, compreende e o que o nosso coração deseja.

E como o nosso espírito e o nosso coração estão cheios de defeitos, segue-se que a nossa vontade é conforme ao nosso espírito, aos nossos juízos e aos nossos desejos.

E enquanto o nosso coração não for inteiramente puro, o nosso espírito inteiramente iluminado pela luz divina, a nossa vontade será má

e submetida a todos os erros do espírito e a todas as paixões do coração e as nossas ações estarão em relação com estas diferentes paixões; há, pois, que submeter a nossa vontade a uma vontade superior para não se expor a muitas faltas e misérias.

Quais são os defeitos da nossa vontade?

A nossa vontade estando subme-tida ao nosso espírito e ao nosso coração, podemos dizer que ela tem todos os defeitos do coração e do espírito, já que a vontade é o espírito em ação, o coração em ação; se o espírito é mau, a vontade será má; se o coração é mau, a vontade será má.

Se o nosso espírito é orgulhoso, soberbo, superficial, inconstante, mau, estreito, exagerado, falso, caprichoso, a nossa vontade será igual.

Se o nosso coração é invejoso, susceptível, apaixonado, interessado, a nossa vontade será também invejosa, interessada, fará ações conforme às paixões do nosso coração.

No entanto, entre os defeitos particulares da vontade, pode-se destacar o defeito da fraqueza, da rigidez, da inconstância, do domínio…

vontade própria, vacilante, indeterminada, de indecisão,

Defeitos da vontade:

de fraqueza, de inconstância, de indecisão,

de rigidez, de domínio, de moleza[233].

Importância desta renúncia.

É extraordinariamente importante renunciar à própria vontade, porque a renúncia à própria vontade leva consigo a renúncia ao seu espírito e a renúncia ao próprio coração.

Quando se submete inteiramente a própria vontade ao seu superior, a alguém, submete-se-lhe ao mesmo tempo o seu espírito e o seu coração e a renúncia torna-se estão completa e perfeita pelo simples fato da renúncia à própria vontade.

É o caminho mais curto para chegar à perfeita renúncia, mas é também o mais difícil, porque dificilmente se faz o sacrifício perfeito da própria vontade, no entanto, é o que se deveria fazer para chegar com segurança e mais depressa à perfeição.

Também é por isso que, nas comunidades, se dá tanta importância à obediência, porque é o caminho mais curto para chegar à perfeição; mas é necessário

dizer também que não se pode fazer senão escravos e…[aaaa] se não há, primeiro do que tudo, o conhecimento de Jesus Cristo, a fé e o amor de Deus; mas quando há a fé, o amor de Deus e a submissão verdadeiramente cristã, então há verdadeiramente obediência[bbbb].

Em que consiste a obediência?

A verdadeira obediência não consiste somente em dizer, mas em fazer[234].

Não são os que dizem: Senhor! Senhor! que entrarão no reino dos céus; mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus; muitos me dirão neste dia: Senhor, nós profetizamos em vosso nome, fizemos prodígios e eu lhes direi: não vos conheci. (Mt 7,21).

Tende o cuidado de pôr em prática esta palavra e não vos contenteis em escutá-la, enganando-vos a vós mesmos, porque aquele que escuta a palavra de Deus sem a praticar, é semelhante a um homem que, olhando-se ao espelho, vê aí o seu rosto e imediatamente esquece o que era; porém, o que considera seriamente a lei perfeita da liberdade e que lhe permanece unido, não se contentando apenas em escutá-la, mas pondo-a em prática, esse será feliz nas suas obras. (Tg 1,22).

Não são os que escutam a lei, mas os que a põem em prática, que são agradáveis a Deus. (Rom 2,13).

A parábola dos dois filhos: um diz sim e não faz nada; o outro diz não e faz; o último é que fez a vontade de Deus e é o que receberá a recompensa.

Como Nosso Senhor Jesus Cristo praticou a obediência

O próprio Nosso Senhor Jesus Cristo nos dá os maiores exemplos de obediência e desse modo nos ensina como nós próprios devemos obedecer.

Não veio à terra para fazer a sua vontade

Eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. (Jo 6,38).


Se ofereceu a si mesmo a seu Pai, para fazer a vontade do Pai e não a sua

Eis-me aqui, meu Pai, para fazer a vossa vontade. (Heb 10,9).

Não quisestes, nem vos foram agradáveis as hóstias, as oblações que vos ofereceram pelo pecado, segundo a lei; então eu disse: Eis-me aqui, ó Pai, para fazer a vossa vontade.

Erat subditus illis[cccc].

Não busca fazer a sua vontade

O meu alimento é fazer a vontade de meu Pai.

Não procuro a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. (Jo 5,30).

É difícil não procurar um pouco fazer a própria vontade, inclusive pedindo as suas licenças; procura-se, faz-se de maneira a obter, de maneira que se vos deixe fazer.

Não faz nada por conta própria

O Filho não faz nada por sua conta, a não ser o que vê fazer o Pai. (Jo 5,19).

Nada posso fazer por mim mesmo. (Jo 5,30).

Submete-se inteiramente à vontade do Pai

Que a vossa vontade se faça e não a minha.

Não o que eu quero,

mas o que tu queres.

Obedece sem questionar

Tal como meu Pai me ordena, assim eu faço. (Jo 14,31).

Não busca o que lhe agrada, mas o que agrada ao Pai

Faço sempre o que lhe agrada. (Jo 8,29).

Age sempre em união com Ele

Meu Pai age sem cessar, e eu ajo com ele. (Jo 5,17).

Ele está sempre comigo, porque faço sempre o que lhe agrada.

Quem não está comigo é contra mim.

Quem não ajunta comigo, dispersa. (Lc 11,23).

A obediência chegou a ser seu alimento

Responde aos seus apóstolos que lhe dizem para comer,

tenho um alimento que não conheceis; o meu alimento é fazer a vontade de meu Pai. (Jo 4,32).


Antes de tudo a obediência a seu Pai

Porque me procurais?

Não sabíeis que devo estar no que diz respeito ao serviço de meu Pai. (Lc 2,49).

É obediente inclusive nas coisas mais pequenas

Eu não vim para abolir a lei, mas para a cumprir. Não passará um só jota sem que eu o cumpra. (Mt 5,17).

Leva a obediência até o ponte de fazer as coisas na hora e no momento indicados pelo seu Pai.

Ainda não chegou a minha hora.

É a hora.

É a vossa hora.

Não busca libertar-se da obediência por causa dos sofrimentos que derivam dela

Vai voluntariamente ao jardim das oliveiras, embora saiba bem o que ali deve sofrer.

Repreende severamente Pedro que procura defendê-lo e diz-lhe que, se quisesse, poderia bem chamar doze legiões para sua defesa, mas é necessário que seja assim.

Tal como meu Pai me ordena, eu faço.

Vê em seus juízes e algozes a ação e a autoridade de seu Pai

Responde a Pilatos que lhe diz que tinha o poder de o libertar e de o crucificar: Não terias nenhum poder sobre mim, se não te tivesse sido dado do alto.

Levou a obediência até à morte e morte de cruz

Foi obediente até à morte, até à morte de cruz. (Fil 2,8).

Dá a sua vida por si mesmo, ninguém lha arrebata, é o mandamento que recebeu de seu Pai.

Sabe melhor do que ninguém o quanto custa a obediência

Embora fosse Filho de Deus, aprendeu o que custava a obediência, pelo que sofreu. (Heb 5,8).

São Paulo dizia aos [Hebreus]; ainda não resististes até ao sangue. (Heb 12,4).

Regras de obediência

Segundo as palavras e os exemplos de Nosso Senhor Jesus Cristo, vemos como um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo, deve praticar a obediência e não se pode estabelecer regras mais seguras e mais justas do que aquelas que ele próprio praticou.

Portanto, seguindo Nosso Senhor, nosso Chefe e nosso Modelo, devemos saber e gravar bem estas coisas no nosso coração.

Que não viemos aqui para fazer a nossa vontade, mas para fazer a vontade de Deus e dos nossos superiores.

Que a exemplo de Jesus Cristo, nosso Mestre e nosso Modelo, devemos oferecer-nos e entregar-nos para fazer a vontade de Deus e dos nossos superiores.

Que não devemos procurar fazer a nossa vontade.

Que não devemos fazer nada por nossa conta.

Que devemos submeter inteiramente a nossa vontade à de Deus e dos nossos superiores.

Que devemos obedecer sem raciocinar.

Que não devemos procurar fazer o que nos agrada, mas o que agrada a Deus e aos nossos superiores.

Que devemos sempre agir em união com os nossos superiores.

Que a obediência deve ser o nosso alimento espiritual.

Que o dever da obediência deve estar antes de tudo.

Que devemos ser obedientes até nas mais pequenas coisas.

Que devemos ser obedientes ao ponto de fazer as coisas mandadas na hora e no momento indicado pela regra.

Que não devemos procurar subtrair-nos à obediência, por causa dos sofrimentos que poderemos nela encontrar.

Que devemos levar a obediência até à morte, nos casos de perseguição e de salvação.

Tais são as diferentes regras de obediência que deduzimos da conduta e das palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A quem devemos obedecer?[dddd]

A Jesus Cristo, à Igreja, aos nossos superiores e ao nosso regulamento.

Jesus Cristo é o grande Mestre, ele é que nos manifestou a vontade de Deus na terra e quem a fez consignar nos Santos Evangelhos.

Ele é o nosso Rei, nosso Mestre, nosso Chefe e nosso Modelo[235].

À Igreja que é composta do Nosso Santo Padre o Papa, infalível nas suas decisões e a quem devemos obediência, porque representa o próprio Jesus Cristo e nos comunica as decisões do céu; [dos] nossos bispos

que são os representantes de Deus na terra e que, unidos ao Papa, nos manifestam também a vontade de Deus na terra[eeee].

Aos nossos superiores legítimos.

Os superiores legítimos, quer dizer, os que foram designados pela autoridade da Igreja, do bispo ou do Papa, têm o poder de mandar em seu nome e nós devemos-lhe obediência, porque representam a Igreja e representam o próprio Jesus Cristo que nos manda pela boca dos seus representantes: quem vos escuta, escuta-me; quem vos despreza, despreza-me.

Como é difícil ser superior: é necessário que um superior esteja cheio do espírito de Deus, que conheça a vontade de Deus em cada instante e a faça executar pelos seus inferiores. Que tarefa! Que responsabilidade! Que união deve ter com Jesus Cristo, este homem, para não dizer e não mandar fazer senão o que Jesus Cristo quer e deseja ver realizar-se nos seus membros![236][ffff].

O regulamento[gggg]

Um regulamento tirado do Evangelho e aprovado pela Igreja é também a expressão da vontade de Deus sobre nós.

Há o regulamento geral da Igreja que é para todos os fiéis e que se encontra nos mandamentos de Deus e da Igreja; todo o cristão é obrigado a seguir esta regra de conduta imposta por Deus sob pena de condenação.

Mas, além deste regulamento geral, cada ordem, cada casa, cada comunidade tem um regulamento particular, porque cada casa, cada comunidade tem uma finalidade particular que tende, de uma maneira diferente para a glória de Deus e [para a] salvação das almas.

Quando, pois, alguém sai do mundo para entrar numa comunidade, conservando sempre a obrigação dos mandamentos de Deus e da Igreja, impõe-se-lhe,

além disso, a obrigação de seguir o regulamento em uso na casa.

Obrigação séria e importante; e embora esta obrigação não seja sob pena de pecado, no entanto, é indispensável à nossa santificação, ao bom exemplo e o não cumprimento não pode senão levar à ruína de uma casa e de todos os que a compõem.

Assim, quando se aceitou um regulamento de vida numa casa deve-se assumir o dever de o cumprir; e se não se o quisesse cumprir, muito melhor se faria em retirar-se, porque, então, não se pode ser senão motivo de escândalo e de desordem para todos os outros e contribuir para a ruína da comunidade.

Deve-se ver o regulamento como a expressão da vontade de Deus sobre nós.

E, obedecendo ao regulamento de uma casa, desde a manhã até à noite, está-se certo de realizar a vontade de Deus e dos seus superiores, de realizar a sua salvação e de caminhar na via da perfeição, porque os regulamentos das comunidades são todos feitos para nos fazer caminhar na via da perfeição evangélica.

Tenhamos, pois, um grande respeito, uma grande afeição, um grande amor pela nossa regra, olhando-a como a expressão da vontade de Deus sobre nós. Ter o espírito da sua regra, não se contentar com a sua letra, isto é, fazer as coisas por amor e não por temor ou pela força, com medo de ser castigado.

Como devemos obedecer?

Devemos obedecer com fé, submissão e amor.

Com fé

Recordando-nos que os nossos superiores ocupam o lugar de Deus, que nos mandam em nome de Deus e que obedecendo-lhes a eles ou à nossa regra, obedecemos ao próprio Deus,

quem vos escuta, a mim escuta,

quem vos despreza, a mim despreza.

Com submissão

Submissão interior, pronta e inteira.

Devemos submeter o nosso espírito e o nosso juízo aos nossos superiores, não apenas uma submissão exterior mas uma submissão interior da nossa alma.

Submissão pronta, que não discute, que não procura evadir-se, encontrar meios para não se submeter.

E inteira, fazendo tudo o que nos é mandado e no tempo que nos é mandado.

Tornar-se como crianças: Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus.

São Paulo diz: Obedecei aos vossos dirigentes, permanecei submissos às suas ordens, a fim de que, assim como velam pelas vossas almas devendo dar contas a Deus, cumpram este dever com alegria e não lamentando-se, o que não seria vantajoso para vós. (Heb 13,17).

Com amor

É o que nos recomenda S. Pedro quando nos diz: Tornai as vossas almas castas e puras por meio de uma obediência de amor e que a afeição sincera que tendes pelos vossos irmãos vos dê uma atenção contínua em manifestar uns aos outros uma ternura que venha do fundo do coração. (1 Ped. 1,22).

É para nosso bem que alguém nos manda.

É para nosso bem que devemos obedecer.

Excelência da obediência

A obediência vale mais do que os sacrifícios e os holocaustos. (Mc 12,33; Heb 10,8).

A obediência é o maior sinal de nosso amor a Deus

É o mesmo Nosso Senhor que no-lo assegura;

aquele que tem os meus mandamentos e os guarda,

esse é que me ama verdadeiramente. (Jo 14,21).

O amor de Deus consiste em guardar os seus mandamentos, conhecemos que amamos a Deus quando guardamos os seus mandamentos. (I Jo 5,2).

Aquele que guarda a palavra de Deus e faz o que ela ordena, o amor de Deus é verdadeiramente perfeito nele. (I Jo 2,5).

E mesmo Nosso Senhor diz: Para que o mundo saiba que amo o meu Pai, como meu Pai me ordena, assim faço. (Jo 14,31).

A obediência é também o sinal mais seguro do respeito e do amor que temos para com nossos superiores

A obediência é o caminho mais curto para se chegar à perfeição e à renúncia

Fazendo o sacrifício da própria vontade, faz-se ao mesmo tempo o sacrifício do próprio espírito e do próprio coração, já que a vontade é a expressão dos pensamentos do espírito e dos apegos do coração.

A obediência é o caminho mais curto para estabelecer a ordem e a união numa casa e também a força


Aquele que escuta a palavra de Deus e a põe em prática é semelhante a um homem que constrói sobre a rocha, nada o pode abalar… Aquele que escuta e não faz, edifica sobre a areia. (Mt 7,24).

O mesmo se diga das comunidades.

Funis triplex non rumpitur[hhhh].

A obediência é o único sinal verdadeiro de salvação

Nem todos os que me dizem: Senhor! Senhor! entrarão no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse entrará no reino dos céus.

Muitos me dirão no grande dia: Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome e, em teu nome, expulsamos demônios, e em teu nome, fizemos muitos prodígios? Então dir-lhes-ei em alta voz: Nunca vos conheci, afastai-vos de mim, praticantes da iniquidade. (Mt 7,21).

A obediência é também o meio mais seguro para instaurar em nós a paz, a tranquilidade de espírito e de coração

Paz aos homens de boa vontade! Aquele que me enviou está comigo e não me deixa só, porque faço sempre o que lhe agrada (Jo 5,29).

O homem obediente narrará as suas vitórias. (Prov 21,28).

Tal como ouço, assim julgo e o meu julgamento é justo, porque não procuro a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. (Jo 5,30).

Aquele que obedece coloca-se ao abrigo de toda a responsabilidade perante Deus e a sua consciência[iiii].

A obediência é também o meio de que Deus se serve para nos elevar a graus superiores[237].

Coragem, bom e fiel servidor, porque foste fiel nas pequenas coisas, colocar-te-ei à frente das grandes. (Mt 25,23).


Ao homem obediente se faz as mais belas promessas

Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, é esse que me ama; ora, aquele que me ama, será amado por meu Pai e eu o amarei e me manifestarei a ele. (Jo 14,21).

E meu Pai o amará e viremos a ele e faremos nele a nossa morada. (Jo 14,23).

Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, como eu guardei os mandamentos de meu Pai e permaneço no seu amor. (Jo 15,10).

É a meditação do justo.

Mens justi meditabitur obedientiam. (Prov 15,28)[jjjj].

Conclusões práticas.

(Conclusão da renúncia a si mesmo)

Com as páginas de conclusão sobre a renúncia a si mesmo, o tom não se adoça.

Retoma-se a palavra do Evangelho: odiar a sua própria vida.

Seria um erro nefasto compreender que há que ter sentimentos de ódio a si mesmo. Este comportamento mórbido não traria nada de bom à obra de Deus.

A abnegação de alguém não se julga ao nível dos sentimentos que tem para consigo mesmo, mas pelo modo como segue o seu caminho[238].

Aquele que mantém sentimentos lisonjeiros ou odiosos para consigo mesmo está voltado sobre si. Faz precisamente o contrário do que pede o Evangelho. É o infeliz estado dos que não renunciaram a si mesmos[239].

O Padre Chevrier indica um certo número de meios a empregar para chegar a esta renúncia[240]. Não faz mais do que retomar os meios geralmente prescritos ou recomendados na época, principalmente nos seminários e sobretudo nas comunidades religiosas. Algumas destas maneiras de agir não estão mais em curso nos dias de hoje. Outros modelos são instaurados que visam a mesma finalidade; contudo estão mais adaptados ao que somos.

Pode-se notar a atenção especial do Padre Chevrier para com um esforço comunitário com vista a progredir em conjunto na vida evangélica. Para isso, procurou como tornar eficaz para o avanço de uma casa, o exercício clássico do capítulo da culpa[241].

Quanto ao regulamento[242], é útil saber que o Padre Chevrier compôs e recompôs muitos regulamentos para a sua casa. Não procurava o regulamento definitivo. Queria que tudo se passasse, tanto quanto possível, na unidade e que cada qual soubesse bem o que tinha de fazer. Mas achava normal que a organização própria de um grupo


fosse deixada à responsabilidade comum deste grupo. Não hesitava em escrever aos quatro seminaristas do Prado, sós em Roma:

Recebi o vosso regulamento de vida; tratai de ser fiéis a ele; modificai-o segundo a necessidade e que a caridade seja a vossa grande regra[243].


Nosso Senhor quer que levemos esta renúncia a nós próprios até odiarmos a nós mesmos

O que vem a mim e não odeia seu pai e sua mãe…

e até a sua própria vida,

não pode ser meu discípulo. (Lc 14,26).

É, pois, necessário odiar-se a si mesmo, há que odiar o seu corpo, os seus pensamentos terrestres, os seus afetos naturais, esta vontade perversa: odiar tudo o que vem de si e não de Deus.

Quem ama sua alma a perderá (Jo 12,25)

A alma e o espírito, diferença entre os dois, segundo o sentido da Escritura.

O espírito vem de Deus.

A alma é o que está em nós, participa das nossas misérias, das nossas inclinações, das nossas paixões, é a vida animal, terrestre.

A alma, é ela mesma, com as suas misérias, as suas paixões; a alma participou no pecado de Adão, recebe de Adão a marca do pecado e tem todos os seus funestos efeitos; enquanto que o espírito é este espírito de Deus que recebemos no nosso batismo e na nossa confirmação e que nos faz viver do alto.

Quem ama a sua alma, isto é, quem ama a sua alma seguindo os seus desejos, as suas inclinações, as suas paixões; quem ama a sua alma atendo-se às suas ideias, aos seus caprichos, aos seus juízos terrestres, perde-se.

Os que se amam, perdem-se, porque se amam contra a vontade de Deus, contra o dever, apesar da sua consciência; preferem o seu prazer, a sua satisfação à vontade de Deus.

Quem odeia a sua alma neste mundo, a conserva para a vida eterna (Jo 12,25).

[quem odeia a sua alma neste mundo, quer dizer:] as suas paixões, as suas inclinações, as suas ideias terrestres e mundanas, opostas ao Evangelho e às virtudes cristãs,

tudo o que vem de si, de seu coração apodrecido, corrompido,

quem faz caminhar o seu corpo na penitência, no jejum e na oração, quem sabe mandar no seu corpo e fazê-lo obedecer…

Quem quiser conservar sua vida há de perdê-la

Quem conservar a sua vida a expensas da lei do Evangelho, de Deus, da religião, do regulamento de vida por causa do inútil cuidado do seu corpo, pela moleza, a negligência, a preguiça, a gula, os cuidados excessivos, perde a sua alma.

Quem perde a sua vida por causa de mim, a encontrará

Pelo trabalho, a penitência, a mortificação, os sofrimentos, a morte, como fizeram tantos santos, que foram os mártires de todos os instantes pelos sofrimentos contínuos da vida que suportaram por Deus e pelas almas; eles reencontrarão esta vida que terão perdido, vida melhor, mais feliz…

[Ele] purifica-nos dos nossos defeitos

Os efeitos benéficos que produz em nós a renúncia a nós mesmos

A renúncia a nós mesmos desprende-nos de tudo o que é mau em nós, purifica-nos primeiro dos nossos defeitos, das nossas paixões; despojai-vos do homem velho.

É este primeiro trabalho que é a base essencial da vida evangélica, sem o qual não pode haver nada de bom em nós.

Nos torna aptos para a prática da virtude

Pela renúncia a nós mesmos, tornamo-nos aptos à virtude, pois a virtude não encontra obstáculo em nós. Podemos praticar facilmente, com a graça de Deus, a humildade, a mansidão, a caridade, a pobreza.

Aquele que renunciou a si mesmo e que levou a sua renúncia até ao ódio de si mesmo, não achará difícil rebaixar-se aos olhos de si mesmo e do próximo, não achará difícil suportar as humilhações, os desprezos do mundo, ser olhado como o lixo das ruas, a sujeira do mundo, pois que já se odeia e se despreza a si mesmo; renunciou a tudo o que pode honrá-lo, ser-lhe agradável; se se lhe bate na face esquerda, de boa vontade apresentará a direita.

Aquele que renunciou a si mesmo não achará difícil praticar a pobreza, pelo contrário, gostará de ser pobre, de se fazer pequeno, de estar privado de muitas coisas, de estar ao nível dos pobres; renunciou à glória, à estima do mundo, a tudo o que brilha no mundo.

Aquele que renunciou a si mesmo não achará difícil praticar a caridade, não se prendendo a si, não temerá incomodar-se, devotar-se aos outros, fazer dois mil passos quando se lhe pede mil, servir os outros, pois que se considera o último de todos.


Faz de nós homens novos

Se alguém está em Jesus Cristo, tornou-se uma nova criatura; o que era velho passou, tudo se tornou novo. (2 Cor 5,17).

A renúncia a nós mesmos torna-nos capazes de receber as graças abundantes que nos são necessárias para nos tornar outras criaturas em Jesus Cristo, o homem velho destruindo-se, pouco a pouco, o homem novo forma-se em nós cada vez mais, pela graça do Espírito Santo[244].

Verdadeiros filhos de Deus

Porque, ao destruir o homem velho, nascemos para uma vida nova, e realiza-se esta palavra do Salvador: Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino de Deus; o que nos impede de nos tornar criancinha são os nossos defeitos naturais; ao destruí-los, renascemos. O que nasceu da carne é carne; destruímos em nós o que é da carne para adquirir o espírito dos filhos de Deus.

Homens completamente celestiais[kkkk].

Como o primeiro homem é terrestre, diz São Paulo, os seus filhos são terrestres e como o segundo homem é celeste, os seus filhos são celestes; como levamos a imagem do homem terrestre, levamos agora a imagem do homem celeste. (1 Cor 15,47).

Fui crucificado com Jesus Cristo e vivo, ou antes, já não sou eu que vivo, é Jesus Cristo que vive em mim; porque eu vivo agora neste corpo mortal, vivo aí na fé do Filho de Deus que me amou e se entregou por mim. (Gál 2,19).

Considerai-vos como mortos para o pecado e vivos só para Deus em Jesus Cristo Nosso Senhor. (Rom 6,8).

Quanto a nós, já vivemos no céu.

Nostra conversatio in coelis est. (Fil 3,20)[llll].

Quando nos desembaraçamos de nós próprios, estamos leves

e subimos ao céu pelo espírito e o coração, não estando já retidos pelos pensamentos e os afetos terrestres.

A nossa conversação é totalmente celeste.

Que diferença de ideias, de pensamentos, de conversação, entre uma alma que renunciou a si mesma e uma alma que está cheia de si mesma.

Vós estais mortos e a vossa vida está escondida com Jesus Cristo, em Deus, e quando aparecer Jesus Cristo, a vossa vida aparecerá também com ele na glória. (Col 3,4).

Se viveis segundo a carne, morrereis; porém, se fizerdes morrer pelo espírito as obras da carne vivereis, porque os que são levados pelo espírito de Deus são filhos de Deus. (Rom 8,12).

Aquele que renunciou a si mesmo, não se perturba com nada, não dá nenhuma atenção às injúrias, aos desprezos, aos abandonos, a todas estas misérias que perturbam tanto a alma que está cheia de si mesma[245].

Tão pouco é afetado pelos louvores, as honras e os elogios; é indiferente a tudo isso e conserva sempre a paz, a tranquilidade da alma e do coração; não está preso a nada, nem a si mesmo, nem às criaturas, nem aos bens da terra; vive numa completa liberdade de espírito em relação a tudo e tem a total liberdade dos filhos de Deus.

Ubi spiritus ibi libertas[mmmm][246].

Feliz a casa cujos sujeitos renunciaram a si mesmos.

Quando, numa casa, reina esta verdadeira renúncia, lá não se encontram almas que não se ocupam mas de si mesmas e dos outros; toda a gente se ocupa de Deus e das almas para as levar a Deus e as salvar; então reina a paz, a alegria, a caridade, a união, a força e o conduz para o bem e o amor.

Quando, ao contrário, numa casa, não há esta renúncia a si mesmo, há, então, as obras da carne de que fala Nosso Senhor e São Paulo, seu apóstolo; e estas obras são: a impureza, a moleza, a avareza, o latrocínio, a maldade, a fraude, má ideia, o orgulho, a loucura, as inimizades, as

querelas, as divisões, as dissenções, as heresias, a inveja e ainda outras que fazem desta casa uma casa do mundo e não uma casa de Deus, porque não é o reino de Deus que existe mas o reino de si mesmo e, quando se vê isso, pode-se dizer com verdade, como São Paulo dizia aos coríntios:

Adhuc carnalis estis.

Ainda sois carnais, quer dizer que vos conduzis segundo a carne e não segundo o espírito de Deus.

Esta casa não é o reino de Deus.

Infeliz o estado daqueles que não renunciaram a si mesmos

Aquele que não renunciou a si mesmo está sempre na perturbação, na agitação, na inquietude; reflete continuamente sobre o que se passa à sua volta, pensa no que se diz, no que se faz, no que se lhe disse, no que se lhe fez e crê sempre que se diz ou faz alguma coisa contra ele.

Está continuamente em estado de ciúme, de susceptibilidade, de suspeita; crê sempre que se faz mais pelos outros do que por ele; ocupa-se continuamente dos outros e de si mesmo; está sempre pronto para se queixar e procurar consolações e satisfações, porque está sempre aborrecido, perturbado e inquieto; estas perturbações, estas inquietudes, não são, no fundo, senão pequenos nadas que seriam dissipados por um só pensamento de fé e de amor de Deus, de humildade; mas porque não há isso nestas almas, nem fé, nem humildade, nem amor de Deus, nem força, nem ação; então não podem suportar nada e estes pequenos nadas são para eles montanhas e olham como insuportável aquilo que a outros não mereceria nenhuma atenção; tudo isso vem do amor a si mesmo, do apego a si.

Como são infelizes estas almas que se procuram continuamente, que não se ocupam senão de si!

Como é insuportável a vida para elas e para os outros e para aqueles que as governam![247].

Um pouco de renúncia a si mesmas faria desaparecer tudo isso e poria a paz e o contentamento na sua alma, que nunca existirá enquanto se deixarem conduzir pelo apego a [si mesmas].

Deus é que nos ensinou isso e quando o Mestre fala, diz a verdade.

Meu Deus, dai-nos a todos esta verdadeira renúncia a nós mesmos, a fim de que, desprendidos de nós, possamos amar-nos e servir o próximo e nunca deter-nos nos caminhos da justiça, do devotamento e da caridade.

Meios a adotar para chegar a esta renúncia a nós mesmos[248]

É necessário:

1° pedir sinceramente a Deus a graça de se conhecer a si mesmo, o seu defeito dominante, os seus defeitos particulares, e ter um verdadeiro desejo de se corrigir deles.

2° escolher um amigo verdadeiro que nos faça conhecer os nossos defeitos e nos advirta caridosamente quando caímos em quaisquer faltas.

3° fazer cada dia o seu exame particular sobre o seu defeito dominante, sobre a parte da renúncia que nos diz respeito e sobre a virtude oposta a este defeito.

4° fazer ao nosso superior ou àquele que nós escolhemos para monitor, a confissão das nossas principais faltas neste gênero e pedir sempre uma penitência.

5° fazer cada semana a sua culpa ou a confissão pública das suas faltas exteriores.

6° manter o capítulo cada mês, em que se deve receber com humildade as reprovações ou observações que foi possível fazer sobre a nossa conduta exterior.

7° confessar-se cada semana e preparar-se para isso seriamente, para obter a contrição perfeita e uma verdadeira emenda da sua vida.


O capítulo de culpas.[249]

O capítulo de culpas é a confissão pública das próprias faltas exteriores, não interiores, as faltas interiores diz respeito ao confessor.

As faltas exteriores que fazem parte do capítulo são as faltas:

contrárias ao regulamento

contrárias ao seu cargo

e aos defeitos de caráter.

Há certamente uma grande graça unida à acusação pública das suas faltas exteriores, se se o faz como deve ser.

Para o fazer humildemente e com fruto, é necessário fazê-lo de joelhos e, após ter dito o que se sabe, pedir aos seus irmãos ou superiores que digam o que teriam podido notar em nós que seria contrário ao bom exemplo e à edificação que nos devemos mutuamente uns aos outros, para a glória de Deus e a salvação do próximo, e pedir uma penitência.

Deve-se fazer o capítulo de culpas cada oito dias e fixar um dia e uma hora para este exercício, a fim de que se faça regularmente, porque é muito importante. Este exercício impede-nos de cair no afrouxamento, força-nos a estar atentos a nós mesmos e impõe uma sanção pública às nossas faltas, o que não é pouco estimulante para os fracos, para que dêem mais atenção a si mesmos.

Para tornar o capítulo de culpas e o exame particular mais fáceis, fizemos pequenas cartolinas sobre as quais estão indicados os diferentes artigos do regulamento e os diversos pontos que podem constituir o assunto do nosso exame e da nossa acusação; pode-se e deve-se servir destas cartolinas para notar cada dia as suas faltas e acusá-las no dia do capítulo. É a última maneira de fazer; este meio não deve ser empregado quando a casa anda bem;

outro meio indicado mais longo, mas mais eficaz:

Antes de fazer o capítulo de culpas, começa-se por ler o resumo do regulamento, a fim de se renovar no espírito da obra, ver sumariamente.

as suas obrigações e preparar-se assim com humildade para a confissão das próprias faltas e para a penitência que nos deve ser imposta pelas nossas faltas.

Meio de tornar o capítulo de culpas útil a cada um e eficaz para o avanço da casa

Meio de tornar o capítulo de culpas eficaz e útil a toda a casa:

Além do regulamento geral da casa, o cargo e o caráter que devem constituir o assunto ordinário do capítulo de cada semana, será bom fixar para um mês ou para um tempo mais longo, um assunto particular, começando pelo primeiro artigo da renúncia à família e ao mundo, em seguida, a si mesmo, quer dizer, ao seu corpo, espírito, etc…; continua-se sobre o mesmo assunto até que se tenha obtido um bom resultado geral e, quando se obteve este resultado, passa-se ao assunto seguinte; é assim que se pode percorrer todos os artigos do Verdadeiro discípulo de Jesus Cristo e chegar assim a algum resultado bom, feliz para toda a comunidade.

Este meio parece longo e laborioso mas parece também mais seguro e mais fácil. É necessário que os superiores sejam firmes e perseverantes; começar por mostrar a necessidade de uma virtude, de tal ato de renúncia e, quando toda a gente lhe sente a necessidade, cada um deve trabalhar com toda a sua coragem para lá chegar.

Pode-se, inclusive deve-se, ler antes da culpa o artigo que tem ligação ao assunto do exame, cada vez, enquanto não se tiver chegado a cumpri-lo com exatidão; sem isso, não se chegará nunca a nada de sólido e de durável; as coisas fazem-se sem bastante seriedade e não se pode chegar a esta união de espírito e de coração que se encontra no prosseguimento das mesmas virtudes, o conjunto de uma mesma vida[nnnn].

Terceira condição:
renunciar aos bens da terra[oooo]

O capítulo que se segue é um dos mais extensos do Verdadeiro Discípulo. Mais adiante o assunto será abordado de novo sob o título: Segui-me na minha pobreza[250].

Em anexo se encontrará ainda um outro texto: Pensamentos sobre a pobreza – O padre, homem despojado[251].

Isso corresponde ao lugar dado à pobreza no pensamento e na vida do Padre Chevrier.

Num certo tempo, pensou falar da pobreza em sentido amplo, o sentido que se encontra no Evangelho: «Felizes os pobres em espírito»[252]. Sob o título geral de pobreza, encontramos este fragmento:

Ora, nós possuímos três espécies de bens: os bens da terra, as criaturas, e nós próprios.

Para pertencer a Jesus Cristo, é, pois, necessário renunciar a estas três espécies de bens[253].

Alguns cadernos foram preparados nesta perspectiva, mas o Padre Chevrier corrigiu-os e o título geral de pobreza desapareceu. A palavra foi reservada para a pobreza em sentido estrito, em relação aos bens materiais.

Porquê isso, sendo que o Evangelho convidava-o a conservar o sentido amplo? É que o Padre Chevrier percebeu fortemente um perigo. À força de falar de pobreza em sentido amplo, pobreza interior, os primeiros discípulos do Prado chegavam daí a concluir que podiam muito bem viver como todo o clero circundante. Porém, o Padre pensava que Deus tinha feito o Prado para que houvesse padres pobres[254]. Padres realmente, visivelmente pobres, porque há sempre pobres entre nós, pobres que certamente não têm o tempo disponível nem o gosto de cultivar uma pobreza


totalmente interior, pobres frustrados no que toca aos bens da terra e cujo clamor chega aos ouvidos do Senhor[255].

Escreve de Roma, em Abril de 1877:

Quanto aos nossos jovens padres, sinto que a minha autoridade é muito débil. Duret e Delorme parecem entrar melhor nos nossos pensamentos e melhor compreender a pobreza e a vida do Prado. Broche e Farissier têm muitos raciocínios, sobretudo Broche, não diz nada e parece ter outras ideias fixas, raciocina, é sábio; a autoridade de MM. Jaillet, Dutel e do seminário têm peso sobre eles. É necessário rezar[256].

No manuscrito intitulado Segui-me nos meus sofrimentos[257], foram ajuntadas no princípio estas linhas:

“Nosso Senhor levou exteriormente o caráter da pobreza e do sofrimento. Os que só o têm interiormente correm o risco de simplesmente não o ter[258].”

Enfim, no próprio caderno onde trata da renúncia aos bens da terra, rabisca algumas palavras no princípio do caderno. Tais palavras são o esquema de um diálogo prévio que se resume provavelmente assim:

“É necessário que nos ponhamos bem de acordo sobre uma mesma orientação de vida, para agir em unidade; isto será a nossa força.”

O que vamos dizer da pobreza repousa sobre o conhecimento de Jesus Cristo, sobre a sua palavra e os seus exemplos. Procedendo assim, construímos sobre a rocha.

Este pôr em prática da pobreza não está, talvez, muito difundido, mas deve ser justamente este o caráter particular da nossa família, como outras coisas podem caracterizar outros grupos[259].

Facilmente se imagina que no momento de abordar esta espinhosa questão da pobreza com os seminaristas, sentindo a sua autoridade muito débil, experimenta a necessidade de regressar com eles às convicções fundamentais que, as únicas que podem impelir a uma adesão profunda à vida de pobreza.

O Padre Chevrier sentia a sua autoridade muito fraca junto dos seus primeiros discípulos. No entanto, sobre esta questão da pobreza, fala com autoridade.

Fala francamente da falta de pobreza no clero. Deplora que uma submissão a pequenas coisas como as modas nas roupas, mesmo eclesiásticas impedem ir mais longe[260].

Não tem papas na língua para dizer que o pedinte que se enriquece desta maneira é um enganador e, inclusive, que pedir sem necessidade é um roubo[261].

Denuncia as consequências apostólicas desta situação: ela cria um obstáculo


ao anúncio do Evangelho aos pobres que vêem na religião uma religião de dinheiro[262].

Donde lhe vem esta autoridade?

Vem-lhe da experiência. Tudo o que recomenda viveu. Pôs à prova este gênero de vida antes de o propor aos outros. Aplica aqui o princípio da educação que deu: Segui-me, faz como eu, não te peço coisas mais difíceis do que eu mesmo faço[263]. A melhor descrição que se possa ter da vida do Padre Chevrier no meio dos pobres, no bairro do Prado, encontra-se neste capítulo.

E encontra-se aí ao mesmo tempo a vida que levavam os pobres do bairro. Fala por experiência porque soube fazer-se próximo dos pobres, escutá-los, amá-los, compreendê-los. Sabe que há coisas que fazem gritar no mundo dos pobres e é sensível a este grito[264]. Sabe que jamais um religioso pobre voluntário sofrerá tanto como os pobres do mundo[265]. Sabe que, para as pessoas do seu bairro usar sapatos de borracha, ou uma medalha de ouro é um luxo reservado a privilegiados[266]. Os tempos mudaram, mas a lição permanece.

Neste sentido, o Padre Chevrier fala com força porque defende o direito dos pobres a escutar o Evangelho. É para não criar nenhum obstáculo ao Evangelho que ele quer contentar-se com o necessário nas igrejas e que deseja exercer gratuitamente as funções do ministério[267].

A autoridade de Antônio Chevrier vem-lhe da experiência, mais ainda, vem da sua fé. Fala porque crê[268]. Tudo o que diz sobre a pobreza do padre manifesta com que seriedade conta com o salário prometido ao operário do Evangelho que faz o seu trabalho: Deus prometeu-o[269]. A palavra de Deus aí está e quer que tenhamos confiança[270].

Esta fé de Antônio Chevrier é simples. É grande. Vê a grandeza da missão apostólica, do ministério do padre[271], a grandeza da obra a realizar, que deve regular-se não segundo a quantidade dos proventos que temos, mas segundo a caridade[272].

Esta fé gera uma pobreza generosa para com os outros, pobreza daquele que pensa que se não paga nunca bastante os Suores do operário e do pobre[273].


Uma pobreza respeitadora da justiça, que não comprará ou não fará trabalhar a não ser que possa pagar de imediato[274]. Uma pobreza realista que não proclama com desenvoltura Deus te pagará[275], que sabe que mais vale ter um do que dois terás[276]. Uma pobreza fonte de paz e de equilíbrio, porque unifica a vida à volta do Único necessário, a coisa importante, essencial que há que fazer bem, após o que o resto também vai bem[277].

O Padre Chevrier fala com autoridade também e sobretudo porque fala para o Prado. Está bem claro que a sua autoridade espiritual não está comprometida da mesma maneira em tudo o que diz. Outra coisa é saber se é necessário levar ou não uma túnica de lã cinzenta ou castanha e outra coisa é saber se há que contentar-se com o necessário na roupa[278]. No entanto, mesmo os pormenores de aplicação inadaptados para a nossa situação atual têm um sentido que importa descobrir e conservar. Um padre que quis viver entre os pobres, não já na periferia de Lyon, mas na periferia de uma grande cidade da Ásia pôde escrever: «Como eu redescobria toda a força e toda a atualidade do Verdadeiro Discípulo, até nos seus detalhes. Os pormenores sobre a pobreza no alojamento, pobreza no vestido que acabam por nos parecer quase mesquinhos na Europa em que estamos habituados a um alto nível de vida, encontram todo o seu realismo aqui».

Para compreender profundamente o pensamento do Padre Chevrier, é necessário saber alguma coisa da vida dos pobres que o rodeavam. Sobre este ponto J. F. Six traz um contributo insubstituível[279].

O juízo do Padre Chevrier sobre as Providências[280], estas oficinas que fazem gritar no mundo[281], compreende-se muito bem quando se sabe do que se tratava. Estas espécies de conventos-oficinas em que eram recolhidas crianças, jovens delinquentes ou de moças arrependidas, que trabalhavam por salários muito inferiores, tirando assim trabalho aos operários[282].

Quando a questão é de assuntos temporais[283], trata-se de caracterizar a finalidade real de uma empresa. Deus sabe se o Padre conheceu os trabalhos e as preocupações de um ecónomo! Não descarregou preguiçosamente sobre os outros tudo o que era necessário para que toda a gente tivesse alimento, alojamento, vestuário na casa do Prado que contava uma centena de pessoas. Mas nunca esquecia a finalidade do Prado: fazer bem o catecismo, era a finalidade da Casa do Prado, evangelizar os pobres[284], é a finalidade de todas as comunidades do Prado.


Para manter firmemente esta orientação, imaginou a instituição dos pais e mães temporais, de que esboça o papel[285]. A ideia viera-lhe durante a sua permanência na Cidade do Menino Jesus, onde tinha visto uma obra apostólica ameaçada de se transformar em empresa de alojamentos a preços baixos. Este projeto do Padre Chevrier não parece estar a ponto. O mais certo é que quer salvaguardar toda a sua liberdade de apóstolo no emprego dos proventos[286] e que consinta em utilizar proventos unicamente para as casas de formação, o que chama escolas e superintendências[287].

A questão da gratuidade do ministério não foi sem dificuldade. Via a sua importância, encontrava diretrizes claras no prefácio do Ritual romano, um documento emanado da Santa Sé e chocava-se, na prática, com um costume contrário[288]. Possivelmente não se ressaltou suficientemente a contradição precisa entre as disposições do ritual e o costume.

Segundo o Ritual em certas condições, o ministro pode receber um dom feito por ocasião do ministério realizado, mas reconhece-se ao bispo o poder de inclusive proibir esta concessão e, assim, impor uma gratuidade rigorosa.

O costume encontrado pelo Padre Chevrier estabelece, pelo contrário, o princípio geral da oferenda, segundo uma tarifa oficial. Neste caso, o poder do bispo impõe a não-gratuidade e é necessário recorrer a uma permissão excepcional para exercer gratuitamente o ministério. Em abstrato, os teólogos moralistas chegavam muito bem a demonstrar que havia em todos os casos, gratuidade. A coisa era menos clara no espírito dos utilizadores ou, melhor dito, era demasiado clara. Para todo o ato do ministério era necessário pagar.

Praticamente, quando o Padre Chevrier quis exercer gratuitamente o ministério na paróquia que se lhe tinha confiado nos arredores de Lyon, o bispo de Grenoble, de que dependia a paróquia, recusou a permissão. Era em 1869[289]. Temos talvez aqui a razão pela qual o Padre Chevrier modificou o plano do capítulo sobre a pobreza. Primitivamente, tinha previsto uma parte especial intitulada: 4º Exercer gratuitamente o ministério[290]. Este título foi apagado nos diversos planos e o assunto introduzido sob o título mais geral: Não pedir nada a ninguém. É mais discreto. Mas o Padre não renuncia à sua ideia e insiste em dizer-nos que Pio IX a tinha achado boa[291].

A palavra de Antônio Chevrier constitui sempre autoridade para o Prado, hoje. Somos bem advertidos de que, nesta vocação, as riquezas e os tesouros perdem as casas; a pobreza conserva-as e as mantém no vigor e na caridade[292].


A elevação geral do nível de vida não é um motivo que nos possa desviar da pobreza. Pelo contrário. Porque, quando o luxo está no seu cume, quando toda a gente procura o bem-estar, a comodidade, o conforto, é necessário que o padre, ao contrário, procure a pobreza[293].

Em todo o tempo e em todos os lugares, continuará a ser verdade que contentar-se com o necessário… abarca todo o conjunto da vida evangélica[294], que o espírito de pobreza consiste em não nos considerar como donos ou proprietários de nada, mas em considerar todas as coisas como sendo de Deus e dos pobres[295].

E as indicações foram resumidas de tal modo que se gravem para sempre nas nossas memórias:

Se não seguis as regras da pobreza, da sabedoria, da prudência, Deus não vos deve nada. Cuidará de vós sempre que fordes verdadeiramente pobres e sofrerdes em silêncio – Ser chamado por Deus – Procurar o reino de Deus – Trabalhar – Ser pobre – Não cair na imprudência[296].

As indicações são claras. Contudo a frase do Padre Chevrier permanece sempre verdadeira: «Vamos começar a ver a prática; é aí que provavelmente haverá algumas dificuldades»[297].

Há também uma outra dificuldade. Ao expor estas indicações ao público, toda a gente pode então pedir contas ao Prado; todos os pobres, sobretudo, se as conheciam, poderiam dizer-nos: Como as cumpris? Que fazeis?

Ai de nós! Estamos longe disso; porém Deus mostrou-se extraordinariamente fiel para com operários tão pouco conscienciosos.


Necessidade de uma regra

União

Força

A nossa regra é Jesus Cristo,

a sua palavra, os seus exemplos.

Fundamento sólido, inabalável.

É o que caracteriza uma obra,

uma congregação.

Verdadeiro discípulo de Jesus Cristo, [pppp]

Como devemos renunciar aos bens da terra

Ao estudar seriamente a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos apóstolos, sobre a renúncia aos bens da terra, nós encontramos que, para praticar a pobreza evangélica, é necessário:

1°. Renunciar de espírito e de coração aos bens da terra.

2°: Contentar-se com o necessário.

3°: Dar a quem pede.

4°: Não se misturar em assuntos temporais.

5°: Não pedir nada a ninguém, a não ser nos casos previstos pelo regulamento.

6°: Não se inquietar com o futuro.

7°: Contar apenas com Deus.

1º Renunciar de espírito e de coração a todos os bens da terra.

É a condição formal que Nosso Senhor exige a todo aquele que quer vir a ele.

Aquele de entre vós que não renuncia a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo. (Lc 14,33).

É a condição expressa que exige deste jovem rico do Evangelho que procura ser perfeito; tinha cumprido toda a lei e Nosso Senhor diz-lhe: Uma só coisa te falta ainda; se queres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me. (Mc 10,21)

Mas ele, ouvindo isto, perturbado com esta palavra, foi-se embora triste, porque era muito rico e tinha muitos bens.

E Jesus, vendo-o tornou-se triste, olhou à sua volta e diz aos seus discípulos: Quão dificilmente os que têm riquezas entrarão no reino de Deus!

(As riquezas tornam a salvação muito difícil, quase impossível; é por isso que é preciso renunciar de espírito e de coração, ou seja, realmente).

“Em verdade, em verdade vos digo, que dificilmente um rico entrará no reino dos céus.” (Mt 19,23)

Os discípulos estavam estupefatos com esta linguagem.

Mas Jesus, tomando de novo a palavra, disse: Digo-vos de novo, meus bem-amados que é difícil àqueles que confiam nas suas riquezas entrar no reino de Deus. Pois é mais fácil a um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que a um rico entrar no reino de Deus.

Ao ouvir estas coisas, os seus discípulos estavam muito espantados e diziam entre si: Assim, quem poderá ser salvo?

E Jesus, olhando-os, disse-lhes: Aos homens isso é impossível, mas o que é impossível aos homens, é possível a Deus, porque a Deus tudo é possível. (Mt 19,21).

Não se pode servir a dois senhores.

Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou odiará um e amará o outro, ou apoiará um e desprezará o outro. (Mt 6,24).

Assim, não podeis servir a Deus e ao dinheiro. (Mt 6,24).

Onde está o vosso tesouro, aí está também o vosso coração. (Mt 6,21).

Espinhos

As riquezas são espinhos que abafam a boa semente da palavra de Deus. (Mt 13,22).

Origem e raiz de toda a espécie de males, de aflições e de penas

Os que querem tornar-se ricos caem na tentação e nas armadilhas do diabo e em desejos inúteis e perniciosos que precipitam os homens no abismo da perdição e da condenação.

O amor das riquezas é a raiz de todos os males e alguns estando por ele possuídos afastaram-se da fé e enredaram-se numa infinidade de aflições e de penas. (1 Tim 6,9)[298].

Vender o que se tem e acumular um tesouro espiritual

Não temais, pequeno rebanho, porque agradou ao vosso Pai celeste dar-vos o reino de Deus.

Vendei o que tendes, dai-o aos pobres.

Fazei para vós bolsas que não envelheçam, acumulai para vós um tesouro no céu que não se esgote, de onde os ladrões não se possam aproximar e que os vermes não possam corromper. (Lc 12,32).

É por isso que Nosso Senhor pede aos que queiram segui-lo esta grande renúncia a todos os bens da terra e estar dispostos a segui-lo, ele que não tem uma pedra onde reclinar a sua cabeça[299].

O Filho do homem não tem onde reclinar a sua cabeça

Um jovem cheio de admiração por Jesus Cristo, tinha formado o desejo de o seguir e disse a Jesus:

Senhor, seguir-te-ei para onde quer que fores.

Jesus respondeu-lhe: As raposas têm as suas tocas, as aves têm os seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a sua cabeça. (Lc 9,58)

Não há que sonhar em voltar ao mundo, nem sequer para os seus assuntos

Ele responde a outro que lhe pede permissão para ir tratar dos seus negócios antes de o seguir e Jesus diz-lhe: Quem quer que tenha lançado a mão no arado, olha para trás, não está apto para o reino de Deus. (Lc 9,62).

São João

Era a prática de São João no deserto. Que pobreza real! Vivia no deserto! Tinha uma veste de peles de camelo, uma cinta de couro à volta dos rins e o seu alimento era feito de gafanhotos e de mel silvestre e todos os habitantes de Jerusalém e de toda a Judeia vinham ter com ele. (Mt 3,1).

Os apóstolos

Era a prática dos apóstolos, que tinham deixado tudo e o tinham seguido. Nós deixamos tudo e seguimos-te. (Mc 10,28).

Primeiros cristãos

Era também a prática dos primeiros cristãos. Vemos nos Atos dos Apóstolos que toda a multidão dos que acreditavam, não tinham senão um só coração

e uma só alma; ninguém considerava como seu o que possuía, mas todas as coisas eram comuns entre eles.

Não havia pobres entre eles, porque todos os que possuíam terrenos ou casas, vendiam-nos e traziam o produto e colocavam-no aos pés dos apóstolos e em seguida distribuía-se a cada um, segundo a sua necessidade. (At 4,32).

Era também o conselho de São Paulo aos cristãos dizendo: O tempo é breve; que aqueles que choram sejam como se não chorassem, aqueles que se alegrem, como se não alegrassem, os que compram como se não possuíssem, enfim, os que usam este mundo, como se não usassem, porque a figura deste mundo passa. (1 Cor 7,29).

Tudo o que é meu é vosso

E Nosso Senhor exprime muito bem em duas palavras como nos devemos conduzir em relação às coisas da terra, quando, falando das relações dos bens que tem com seu Pai, desta comunidade que existe entre ele e seu Pai, diz: Tudo o que é meu é teu e tudo o que é teu é meu. (Jo 17,10).

Para entrar nesta disposição de espírito, devemos considerar todas as coisas como sendo de Deus e dos pobres; diante de Deus não somos donos de nada, proprietários de nada, somos apenas os administradores de Deus e os distribuidores dos bens dos pobres.

Podemos servir-nos deles segundo a nossa necessidade, mas é necessário estar dispostos a dá-lo a quem quer que tenha necessidade deles.

É esta primeira disposição de alma que destrói em nós este espírito de propriedade que é tão oposto à caridade, à pobreza, à entrega e ao sacrifício.

Que há de mais chocante, com efeito, do que ouvir dizer a cada instante, numa casa de irmãos em Jesus Cristo e de verdadeiros pobres: isto é meu, é o meu quarto, é a minha cama, é o meu relógio, é a minha mesa, é meu, não quero que lhe toqueis.

Aquele, ao contrário, que entrou neste espírito de Jesus Cristo, não se apega a nada, nem aos seus bens, nem à sua habitação, nem aos seus móveis, nem às suas vestes, nem ao seu dinheiro, nem à sua bolsa, nem a nada; nem a nada destas coisas terrestres a que tanto o mundo se apega; o seu lema é este: tudo o que é meu é vosso. Se alguém vem, que seja pobre e que tenha necessidade de alguma coisa, diz-lhe: Ei-lo aí! Eis aí o meu quarto, a minha cama, a minha roupa, a minha bolsa: tudo o que é meu é vosso.

Como é belo este homem que não está apegado a nada e que diz aos pobres de Deus: tudo o que é meu é vosso! e que se despoja assim até tornar-se tão pobre como os mais pobres, como os santos que não podiam suportar ver homens mais pobres do que eles e que davam tudo ao ponto de não terem mais nada para dar, davam-se, então, a si mesmos.


Regras concernentes a este primeiro artigo

Para pôr em prática este primeiro conselho evangélico da pobreza,

nós não olharemos como donos ou proprietários de nada, mas consideraremos todas as coisas como sendo de Deus e dos pobres.

Poremos em comum tudo o que temos, para dele nos servirmos ou o dar aos pobres consoante a vontade dos nossos superiores.

Haverá um quarto comum onde poremos tudo o que temos e, quando tivermos necessidade de qualquer coisa, pedi-la-emos àquele que está encarregado de no-la dar.

Não teremos bolsa particular, não receberemos nada para nós, pessoalmente; haverá uma caixa geral onde depositaremos todas as ofertas.

(Cada mês)[300]

Não pegaremos em nada sem licença; não guardaremos senão o que é necessário para o nosso uso pessoal e, de tempos a tempos (cada mêsa) se visitará o nosso vestiário, o nosso quarto e os nossos armários, para ver se não há nada contrário à pobreza e ao desprendimento[301].

Conserva-se a propriedade dos bens imóveis, terras, casas, mas perde-se o usufruto das rendas.

Aos quarenta anos, ou após dez anos de religião, poderemos distribuir os nossos bens e dividi-los em três partes: uma para a família, a segunda para os pobres e a terceira para as obras.

Pôr em comum os proventos que se pode retirar dos seus bens patrimoniais ou de outros.

A comunidade deve prover a todas as necessidades pessoais e externas de cada membro e deve sentir-se uma felicidade e um dever de caridade ajudar-se uns aos outros, prover alegremente a todas as necessidades dos seus irmãos, inclusive aos da família do primeiro grau, quando tal for julgado necessário.

A nossa divisa é esta palavra do Senhor: Tudo o que é meu é

vosso e tudo o que é vosso é meu, segundo as regras da caridade, da prudência e da obediência.

Pode-se possuir para os outros, mas nunca para si.

Os padres guardarão os honorários das suas missas, não para eles, mas para os pobres; porque convém que os padres possam dar alguma coisa aos pobres, quando se lhes pede.

  1. B. Deixa-se aos padres os honorários das missas para as necessidades da sua família, quando têm parentes pobres a sustentar. A comunidade proporciona o excesso quando isso não baste e, quando é mais do que o suficiente, remete-se o excedente para a comunidade; não se o pode usar para si, mas para os pobres.

Bem-aventurados os pobres em espírito porque é deles o reino dos céus!

2º Contentar-se com o necessário

Eis aí um artigo muito importante: abarca todo o conjunto da vida evangélica.

É o que Nosso Senhor recomenda a Marta quando, indo a sua casa, ela se lamentava de que sua irmã Maria não a ajudava a preparar a refeição; e Jesus repreende-a dizendo-lhe: Marta, Marta, estás perturbada e preocupas-te com muitas coisas; ora uma só coisa é necessária: Maria escolheu a melhor parte que não lhe será tirada, (Lc 10,38), fazendo-a compreender assim, que não é preciso atormentar-se tanto com as coisas da terra, mas, antes, importa ocupar-se das coisas do céu; porém que, em relação às coisas terrenas, é necessário contentar-se com o estritamente necessário.

Unum necessarium[qqqq].

É também o que São Paulo nos diz claramente quando, escrevendo ao seu caro filho Timóteo, lhe diz: Não trouxemos nada a este mundo e o certo é que não podemos também levar nada dele; tendo, pois, do que nos alimentar e do que nos vestir, devemos estar contentes. (1 Tim 6,7).

Assim, para nos conformar a este ensinamento de Nosso Senhor e de São Paulo, devemos contentar-nos com o necessário.

Este necessário refere-se ao alojamento, à alimentação e ao vestuário.

O necessário na habitação

O estábulo de Belém no nascimento de Jesus Cristo não podia ser uma habitação mais pobre.

A casa de Nazaré, tal como se a vê ainda em Loreto, era pobre.

Durante a sua vida pública, Nosso Senhor não tinha muitas vezes outra habitação

senão a solidão das montanhas, o jardim das oliveiras; e diz que as raposas têm as suas tocas, os pássaros têm os seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a sua cabeça.

São Paulo diz que não tem habitação permanente. Non habemus hic manentem civitatem, sed futuram inquirimus. (Heb 13,14).

Para entrar neste espírito de pobreza de Nosso Senhor, suprimiremos da nossa habitação tudo o que cheire a luxo, vaidade, supérfluo, inútil. Não admitiremos nos nossos quartos nem tapeçaria, nem molduras, nem espelho, nem poltrona, nem mármore, nem dourados, nem pintura, nem nenhum ornamento que possa agradar à vista ou ao gosto ou contentar a vaidade, o amor-próprio ou o bem-estar. Tudo deve respirar a simplicidade, a pobreza e o sofrimento do estábulo[rrrr]:

paredes toscas ou revestidas de argamassa;

duas ou três cadeiras de palha cinzenta ou em madeira;uma mesa, um escritório em madeira simples, sem ornamento;

um crucifixo em madeira pintado;

um genuflexório simples que poderia servir de armário se necessário;

um armário simples, se necessário, ou algumas prateleiras de madeira cobertas por um cortinado ou, melhor ainda, sem cortinado;

uma cama composta de dois travessões suportando três tábuas de pinho,

um colchão de palha, um ou dois lençóis, um travesseiro;

alguns cobertores de lã cinzentos, mas nunca um tecido fino ou de seda ou trabalhado; pode-se pôr debaixo da cabeceira um pequeno travessão de madeira para sustentar o travesseiro; pode-se pôr uma manta sobre a colchão de palha, se for necessário; em caso de doença, pode-se ter um colchão;

algumas imagens, quadro de madeira simples, sem cor nem vidro, nem pintura;

algumas estantes sobre a mesa, para pôr os livros e os cadernos;

se é necessário, cortinas em algodão verde ou azul nas janelas;

Importa que ao entrar no nosso quarto aí se encontre e se respire a pobreza, a simplicidade e o sofrimento.

É necessário suprimir tudo o que cheire a burguês, o bem-estar, a comodidade; não é necessário que ao entrar em nossa casa se possa dizer: está bem; não está mal; é necessário que se possa dizer: sofre[302].

Hoje, em que o luxo está no seu ponto culminante, em que toda a gente procura o bem-estar, a comodidade, o confortável, é necessário que o padre, ao contrário, procure a pobreza e o sofrimento, para que possa ser um exemplo no meio do mundo.

Vos estis lux mundi.

Ut videant opera vestra bona et glorificent Patrem[ssss].

É necessário evitar fazer-se pobre para ser visto pelos homens e atrair a sua compaixão e parecer sábio; ai daquele que tivesse tais intenções! Mas é necessário fazer isso por amor a Nosso Senhor, para imitar a sua santa pobreza e andar em oposição ao mundo, uma vez que estamos para iluminar o mundo e opor-nos as suas máximas e seus costumes.

O necessário na alimentação

É bastante difícil tratar este artigo, visto que as necessidades de cada um variam segundo a sua idade, o seu temperamento e as circunstâncias e o apetite.

Cada um deve ter o seu necessário e tomá-lo com simplicidade e liberdade de consciência.

A caridade obriga-nos a dá-lo e a sabedoria proíbe-nos de julgar ninguém no que diz respeita às necessidades dos nossos irmãos; um toma mais, outro menos, cada um deve consultar a sua consciência e as suas necessidades e observar a regra do necessário segundo o seu temperamento.

Para observar a regra do necessário em geral, retiraremos da mesa tudo o que cheire a luxo, comer bem, a gula.

Os instrumentos da mesa serão em metal ordinário; nunca em ouro ou em prata, nem prateado.

As travessas e os pratos, em barro ou em louça, não em porcelana.

A mesa será lisa, limpa, sem toalha nem ornamento, excepto nos dias em que recebemos um bispo à nossa mesa.

Quanto possível, se servirá o vinho e a água num jarro de barro e não em garrafas.

Cada um terá o seu talher e o seu guardanapo.

De manhã: uma sopa, com uma ou duas sobremesas.

Ao jantar: [dois][303] pratos e duas sobremesas; pode-se servir uma sopa antes, mas não é regra.

À noite: sopa, um prato e duas sobremesas.

Devemos abster-nos de licores, de café, de vinhos finos.

Só em casos extraordinários é que estas coisas são permitidas: casos de recepções ou de convites necessários.


(Este artigo pode situar-se no da caridade)

Deve sentir-se uma honra e uma felicidade receber à sua mesa os pobres, os necessitados, recordando-se das palavras do Mestre: quando deres um jantar ou uma ceia, não convideis nem os vossos amigos, nem os vossos parentes, nem os vossos irmãos, nem os vossos vizinhos ricos, não suceda que, por sua vez, vos convidem e não vos devolvam o que receberam de vós.

Porém, quando fizerdes um festim, convidai para ele os pobres, os coxos, os estropiados, os cegos e sereis felizes por não terem com que vos devolver porque isso vos será devolvido no céu.

(Este artigo pode encontrar-se na renúncia às criaturas e ao mundo)

É necessário evitar ir jantar a casa dos outros, sem uma grande necessidade e fazer convites, porque estes jantares são sempre ocasiões de perda de tempo, de conversas inúteis, muitas vezes más e contrárias à caridade, e também despesas loucas e de guloseimas, que um verdadeiro pobre de Jesus Cristo não deve permitir- se.

Dar hospitalidade e mesa aos que se apresentam, aos que têm necessidade, aos viajantes cansados, aos pobres, sim; quando a caridade é o motivo das nossas ações, pode-se sempre fazê-los, mas quando não têm outro motivo senão a nossa glória, a nossa satisfação, a nossa gula ou um passa-tempo, nunca.

O necessário no vestir

Ver o artigo da gula: simplicidade e pobreza.

No princípio, só a graça era o nosso vestuário; mas, após o pecado, a vergonha tornou-se nossa herança e Deus nos deu, para nos humilhar, uma veste de peles de animais. O vestuário foi-nos dado para nos cobrir e não para nos enfeitar e nos orgulhar.

Infelizmente, o vestuário é muitíssimas vezes, para um grande número, uma ocasião e uma fonte de vaidade, de procura, de satisfação, de amor próprio, de ostentação, de orgulho[304].

Para evitar tudo isso e entrar no espírito de Nosso Senhor, devemos contentar-nos com o necessário no vestir, como diz São Paulo e não fazer disso um assunto de vaidade ou de amor-próprio.

Contentar-se com um tecido pobre e simples.

Não ser rebuscado na forma, evitar tudo o que cheire a fino,

a gosto, a rebuscado, a beleza, a elegância; tudo isso é inútil e não serve senão para contentar o amor próprio e agradar aos homens.

Assim, para evitar tudo isso e agradar a Jesus Cristo pobre e simples, imitar os santos, em particular, São João Batista e São Francisco:

Retiraremos das nossas vestes tudo o que cheire a luxo e a vaidade.

Não levaremos tecidos finos ou preciosos, nem seda, nem veludo, nem bordados, nem galões, nem franjas, nem nenhuma fantasia do mundo.

A nossa batina será de sarja, ampla e larga, sem cauda e sem corte pronunciado; botões do mesmo tecido e à distância.

O nosso cinto será de lã e sem franja; ou então, melhor ainda, se nos for permitido, um grosso cordão negro que fará as vezes do cordão de São Francisco.

Um manto do mesmo tecido que a batina, de gola direita e com mangas, descendo até aos joelhos.

Um chapéu simples.

Uma túnica de lã cinzenta ou castanha, para nos conformar à regra de São Francisco[305].

Todas as outras vestes serão em lã cinzenta ou castanho ou de sarja.

Não levaremos nenhum ornamento exterior, tal como corrente de relógio, ou mesmo objetos de devoção exteriores.

Teremos uma pequena bolsa no lado esquerdo para levar o nosso crucifixo e servir-nos dele quando houver necessidade.

Pode-se levar, no verão, uma pequena murça do mesmo tecido.

É necessário evitar levar sapatos ou sapatilhas de pano ou tecido, veludo, bordado, etc… este calçado respira delicadeza, pretensão, requinte; sapatos ordinários, de laço, sem borracha; sandálias seriam muito preferíveis.

Vestuário de cada um:

duas batinas,

três camisas,

doze lenços de algibeira.

Contentar-se com o necessário

Bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o reino dos céus. (Mt 5,3).

É uma grande riqueza a da piedade e a moderação de um espírito que se contenta com o que basta para as necessidades da vida presente. (1 Tim 6,6).

É um artigo muito importante e do qual há que se compenetrar bem para não

sair da verdadeira pobreza, porque a verdadeira pobreza e o espírito de pobreza estão encerrados nesta palavra:

Ter o necessário e saber contentar-se com ele.

É porque não se sabe contentar com o necessário que se falta à pobreza[306].

Começa-se bem pela pobreza, mas pouco a pouco acha-se que não é muito cómodo, não suficiente, que não é bastante sólido, bastante limpo… que isto não dura muito e outras mil razões especiosas; e então, ajunta-se, muda-se, embeleza-se, acha-se que é mais conveniente, como isso demora mais e, pouco a pouco chega-se a ter um quarto mais cómodo, a gosto, onde não falta nada; ter uma mesa confortável onde se encontra mais do que o necessário; ter vestes convenientes, que duram mais, que são mais sólidas e mais em relação com os gostos do mundo; de mudança em mudança, chega-se a fazer como o mundo e a perder o espírito de pobreza.

O mundo não cessa de dizer: Ah! como estais mal alojado, mal deitado, mal alimentado, mal vestido! fazei desta maneira, fazei daquela.

Compete-nos responder ao mundo como Nosso Senhor respondeu a São Pedro: Retira-se, Satanás; sois para mim um motivo de escândalo, porque não apreciais as coisas de Deus, mas as dos homens. (Mt 16,23).

Aquele que tem o espírito de pobreza, tem sempre demais, tende sempre a cortar; aquele que tem o espírito do mundo nunca tem o bastante, nunca está contente, precisa sempre de mais qualquer coisa.

O verdadeiro pobre de Jesus Cristo vai sempre cortando, diminuindo.

Aquele que tem o espírito do mundo vai sempre acrescentando, aumentando.

Aquele que tem o espírito de pobreza diz a si mesmo: tenho ainda muito mais do que é necessário, há tantos pobres que não têm tanto como eu, tantos pobres que sofrem e que carecem do necessário; e eu, que direito tenho de estar melhor alojado, melhor alimentado, melhor vestido que os pobres de Deus?

Onde não há alguma coisa a ter de se sofrer, aí não há verdadeira pobreza[307].

É penetrando-se deste espírito que, pouco a pouco, se se despoja de tudo o que não é necessário; tem-se horror a tudo o que cheira a luxo, a vaidade,

ao brilhante, ao vistoso e escolhe-se sempre o que há de mais pobre e de mais simples. Logo que isto me cubra, que sirva, é tudo o que é preciso. Isto pode ainda durar, guardemo-lo[308].

É um erro crer que as coisas exteriores, grandes, belas, distintas, aparentes, por si mesmas, dão estima, confiança ou autoridade; que é por aí que se atrai o mundo e que se ganha as almas para Deus ou para si. Erro!

Estas coisas exteriores podem bem impressionar por um momento, designar exteriormente os que mandam, os que têm autoridade e aqueles a quem devemos o respeito e a obediência, mas essas coisas não as dão por si mesmas.

É a virtude, é a caridade que inspiram realmente a confiança e o amor dos povos.

Não se deve crer que é por se ter belas roupas, belos casacos, belas casas, belos móveis, belos ornamentos que se atrairá o mundo e se ganhará a sua confiança. Não, é a virtude.

Se estas coisas exteriores tivessem sido necessárias, Nosso Senhor Jesus Cristo já as teria utilizado; mas não. Rejeitou-as bem para longe de si. Não teve por casa senão um estábulo, por cama, apenas um pouco de palha, por pais pessoas pobres e para morrer uma rude cruz. E dizia: quando for elevado na cruz, atrairei tudo a mim.

Não foi, pois, pelo luxo e a grandeza que atraiu o mundo, mas pela pobreza e pelo sofrimento.

Os santos empregavam outros meios?

São João Batista no seu deserto não tinha senão uma pele de camelo

sobre os ombros e um cinto de couro à volta dos rins, e toda a Judeia vinha ter com ele.

E São Francisco de Assis, que andava com os pés descalços e um saco sobre as costas, dava importância a estas frivolidades? e, no entanto quantas almas atraiu a si! no seu tempo, já se contavam dez mil religiosos que tinham abraçado a sua vida.

É a virtude que atrai as almas e ganha os corações para Deus.

Há os que falam de nível, de dignidade e que, sob este pretexto perigoso, acreditariam aviltar-se e rebaixar-se fazendo-se pobre, vestindo-se como um pobre, vivendo como um pobre, frequentando os pobres, fazendo como os pobres.

Acreditariam desonrar-se ao tomar a forma de pobre e, no entanto, é o que fazia Nosso Senhor.

Ele fez-se pobre e é precisamente o que os fariseus lhe reprovavam quando diziam aos apóstolos: O vosso Mestre está sempre com os pecadores e os publicanos.

[O necessário nas Igrejas.]

Devemos levar este espírito de pobreza e de simplicidade e contentar-nos com o necessário mesmo nas nossas igrejas e nos objetos de culto.

Nada é necessário nas nossas igrejas e nos nossos ornamentos que excite a curiosidade ou a inveja dos fiéis.

As nossas igrejas, os nossos altares, os nossos ornamentos devem ser simples e modestos.

O mais belo ornamento numa igreja é o padre.

O mais belo lustre de uma igreja é o padre.

O mais belo sino de uma igreja é o padre.

O mais belo móvel de uma igreja é o padre.

Ponde um padre santo numa igreja de madeira, aberta aos quatro ventos, atrairá e converterá mais gente na sua igreja de madeira do que um outro padre numa igreja de ouro.

É o padre quem dá a vida; não são as pedras, nem os cálices, nem os ornamentos, nem os lustres, nem os belos altares, nem as belas cadeiras que convertem; atraem pela curiosidade, não convertem, nem curam.

E hoje, no entanto, trabalha-se muito mais a fazer belas igrejas, belas casas paroquiais, do que em fazer santos.

É que é mais fácil fazer uma bela igreja do que fazer um santo.

E não se poderá nunca substituir a santidade pelas mais belas coisas exteriores.

Um dia, os apóstolos mostravam o templo a Nosso Senhor e faziam-no admirar as belas pedras que o compunham e Nosso Senhor diz-lhes que este templo seria destruído e que dele não ficaria pedra sobre pedra.

É o

destino de todas as grandes coisas. Só a virtude permanece e tem boas raízes e produz bons frutos.

Nosso Senhor não tinha nada destas coisas exteriores, nem templo, nem casa. As árvores, as montanhas, a margem do mar, eis aí o seu abrigo e, no entanto, toda a gente corria para ele, para o ver e o ouvir.

É que virtus de illo exibat et sanabat omnes[tttt]; tirava todo o seu poder de si mesmo, da sua virtude, da sua santidade ; virtus de illo exibat.

Não demos, pois, importância a todas estas coisas exteriores; sirvamo-nos delas, mas sem dar a isso demasiada importância e não façamos passar o acessório à frente do principal, as pedras antes da virtude, os ornamentos antes da santidade.

Martha, Martha, sollicita es et turbaris erga plurima[uuuu].

Nós nos contentaremos com o necessário, o mesmo no que se refere aos objetos do culto; pobres, simples e limpos; nada do que chama a atenção, do que é brilhante, elegante, que excita a curiosidade; importa que tudo seja grave, modesto, sólido. O belo e o grande podem ser muito simples: assim, um cálice em ouro pode ser muito simples e, no entanto, será belo e grande. Sobretudo, nada do que excite a curiosidade ou a inveja das pessoas, nada que cheire a profusão.

Facilmente se mete vaidade, requinte, elegância nas alvas, nas sobrepelizes, nos ornamentos, na ornamentação. Procura-se o que é bonito, gracioso, sai-se depressa da simplicidade porque os que trabalham nestas coisas, não tendo o espírito de pobreza, põem nelas o seu gosto, a sua mundanidade; se não se os retoma, sai-se imediatamente do espírito de simplicidade e de pobreza e se-é dominado, governado pelas ideias dos comerciantes ou do mundo. As sobrepelizes e as alvas devem ser de tecido forte e sólido; deve-se engomá-las muito pouco e colocar aí só algumas pregas para poder dobrá-las; deve-se muito raramente servir-se de alvas bordadas, apenas nos grandes [dias] solenes e mesmo isso não é necessário. Diz-se sempre: Mas é para Deus! É preciso que seja bonito! Ilusão! Deus ri-se das nossas belezas e bagatelas. Importa servir a Deus em espírito e em verdade. É o essencial. E ordinariamente quanto mais se põe coisas exteriores menos interior há; quanto mais se ocupa destas coisas exteriores, menos fundo interior há. Instruir o mundo, eis aí o essencial.

Devemos representar o presépio e o calvário; deixemos aos outros o cuidado de representar os mistérios gloriosos.

Quanto a nós, contentemo-nos com a pequenez e a pobreza, aí está a nossa herança e não devemos sair daí; os pobres não devem sair da sua categoria, mesmo por relação a Deus e não expor-se a agir por ostentação e orgulho e não para satisfazer mais a sua vaidade do que para agradar a Deus.

Tornemo-nos santos, isso valerá mais que tudo o resto.

E, tornando-nos santos, tudo o resto nos virá sem que nos inquietemos com isso.

É uma grande riqueza a piedade e a moderação de um espírito que se contenta com o que basta para as necessidades da vida presente. (1 Tim 6,6).

Unum est necessarium

Maria escolheu a melhor parte que não lhe será tirada.

Este único necessário para nós é catequizar bem e rezar, o resto não é nada. Dá-se muita importância a estes nadas e estas coisas exteriores tornam-se sempre causas de disputas, querelas: um quer de uma maneira, outro doutra; pouco importa. Oh! como se guardaria a paz e a união e a caridade, se se aplicassemos antes de tudo ao único necessário, o amor de Deus. Pietas ad omnia utilis est exercitatio corporalis ad modicum[vvvv]; este exterior é pouco, caro non prodest quidquam[wwww]; assim, que uma coisa seja branca, negra, pouco importa, desde que isso não impeça amar a Deus.

Importa recordar-nos que somos pobres, que vivemos de esmolas; não devemos fazer como os ricos que podem fazer despesas sem ferir a pobreza, querer fazer como os ricos seria sair do nosso lugar, seríamos semelhantes a estes pobres que levam belos vestidos e que não têm nada por baixo; devemos guardar o nosso lugar e glorificar Nosso Senhor na nossa pobreza, como o rico deve glorificá-lo na grandeza e na opulência. Tomemos e guardemos sempre o que há de mais simples e de mais pobre; entre duas coisas, escolher sempre o que há de mais simples e de mais pobre. Não tenhamos esta maneira de sempre querer fazer novidade, de sempre procurar embelezar, ornamentar, adornar; perde-se o próprio tempo em ocupar-se destas coisas e deixa-se o sólido e o único necessário: tornar-se santos e instruir o mundo.

Uma só coisa é necessária: amar a Deus, para cada um de nós; instruir os pobres para os padres e para os que a isso estão destinados. Instruir e curar, o resto não é nada. Quebra-se a cabeça, ofende-se por ninharias. Um quer uma coisa, outro quer outra; um quer de uma maneira, outro doutra e discute-se, amua-se por [nadas].

Não nos ocupemos, pois, destas coisas inúteis. Uma só coisa é necessária: fazer bem o seu catecismo. Quando uma coisa importante se faz bem, o resto também vai bem.


3º Dar a quem pede

Na sua instrução aos seus apóstolos, Nosso Senhor, querendo inspirar-lhes a caridade tal como o desprendimento das coisas da terra, diz-lhes: Se alguém vos tomar o vosso manto, deixai-o ainda tomar a vossa túnica.

Dai a todos os que vos peçam e não reclameis o que é vosso àquele que vo-lo toma.

Emprestai sem nada esperar e sereis filhos do Altíssimo que é bom para os ingratos e os maus. (Lc 6,27; Mt 5,40).

Eis aí até onde Nosso Senhor quer que levemos o desprendimento das coisas da terra, até dar a quem nos pede, enquanto temos algo de nosso, até não reclamar o nosso bem a quem no-lo leva. Podia levar mais longe o espírito de desprendimento e de mansidão?

Quanto desprendimento, mansidão e caridade encerram estas palavras! Como o cumprimento destas palavras, ou antes, o seu espírito, nos coloca ao abrigo de todo o sentimento de perturbação, de rancor, de aborrecimento de pena, de agitação, de ódio e nos mantém na calma, na paz da alma!

É quase sempre o apego aos bens da terra que nos faz recusar a esmola aos que no-la pedem; e é também uma prova de desapego e de caridade, quando damos aos que nos pedem.

Entre os que nos pedem, distingue-se os pobres, os operários que trabalham para nós, os comerciantes, os que pedem emprestado, os regateadores e os ladrões.

Nosso Senhor entra ele mesmo em todos estes detalhes e indica-nos a conduta que devemos ter nestas circunstâncias para ser verdadeiros discípulos de Jesus Cristo.

(Pobres das paróquias das quais não estamos encarregados)[xxxx].

Quanto aos pobres, nunca devemos recusar dar a todo o pobre que nos pede e dar-lhe tudo o que podemos em dinheiro, em roupa, em alimento e até o alojamento se necessário.

Nosso Senhor não faz exceção: dai a quem pede.

Os pretextos que se invoca frequentemente para não dar nada dizendo que são preguiçosos, que poderiam trabalhar, que não os conhece, não são mais do que pretextos para camuflar o nosso apego e a nossa avareza; dai a quem pede, conforme o vosso poder, segundo os vossos meios; mas não recuseis a ninguém e se não temos dinheiro ou não podemos dar nada, devemos fazer a esmola espiritual e dizer como São Pedro: Não tenho ouro, nem prata; mas o que tenho, eu te o dou, dando-lhes qualquer coisa, ainda que pequena: imagem, terço e rezando a Deus por eles.

Para cumprir este preceito do Senhor, haverá em cada casa, um

padre encarregado de distribuir as esmolas e, quando se sair, sempre se terá no seu bolso algumas moedas para dar aos pobres que se encontrar.

Quanto aos credores e aos operários que trabalharam para nós, é de toda a justiça pagar-lhes, não só quando eles o pedem, mas até imediatamente após os seus trabalhos: Dignus est operarius mercede sua[yyyy], e é uma falta fazê-los esperar e nunca se deve comprar nem mandar trabalhar quem quer que seja, se não se pode pagar imediatamente. É melhor o próprio esperar do que expor-se a fazer esperar ou fazer sofrer os outros[309].

Quanto aos que pedem emprestado, é necessário emprestar-lhes o que se pode e sem interesse.

Emprestai sem interesse, diz Nosso Senhor.

Porém, é melhor dar do que emprestar; dá-se o que se pode e tudo acabou, sobretudo quando se trata de dinheiro. Geralmente, as pessoas que pedem emprestado não podem devolver e, então, acontecem mil penas, mil dificuldades.

Se se conta com o que se emprestou para pagar ou fazer face a alguns assuntos, então fica-se embaraçado e prejudica-se a outros por ter prestado serviço a alguém; e, muitas vezes, este serviço que prestastes ao vosso próximo torna-se causa de frieza e de afastamento, se não se chega mesmo até à briga e à maldade; se reclamais o que emprestastes e ele não o possa devolver, como acontece quase sempre, recebe-vos mal e acha muito mal da vossa parte reclamar tão cedo… e a desgraça só pode azedar…

Quando se [vos] pede 100 francos emprestado, é melhor dar 50 francos ou 20 francos, se se pode, e não ter mais nada a reclamar; por este meio, faz-se uma boa ação, não se está obrigado a pedir de volta a estes pobres que não podem devolver e conserva-se a amizade e a caridade com toda a gente. Se não se tratasse de dinheiro, mas simplesmente de objetos particulares, tais como utensílios, roupas ou outros objetos, isso não tem os mesmos inconvenientes e também não se deve emprestar verdadeiramente senão o que se tem realmente a intenção de dar, para não ter a decepção de não mais voltar a ver.

Todavia, o cumprimento desta palavra ajuda-nos muito a praticar a pobreza perfeita e se realmente se quer chegar a tornar-se verdadeiramente pobre, só há que emprestar a todos os que pedem e dar tudo o que se lhe pede, certos de, em breve, não ter mais nada vosso.

Quanto aos regateadores, Nosso Senhor diz-nos: Se alguém quer regatear contra vós para pegar o vosso manto, dai-lhe também a vossa túnica.

Eis até onde deveríamos levar o espírito de desprendimento no mundo, para evitar todos os enfrentamentos com o mundo por causa das coisas da terra.

Nada há mais oposto ao espírito de pobreza do que estes enfrentamentos diários que acontecem no mundo e, muito frequentemente, mesmo entre pessoas piedosas e cristãs; discute-se por ninharias, por um trapo, por uma crítica, por um centésimo; zanga-se, guarda-se ódio, rancor até à morte; não é o que acontece num grande número de famílias, sobretudo nas partilhas?

Oh! evitemos cuidadosamente este espírito de ganância e de avareza e recordemos sempre nestes casos estas palavras do Mestre: Se vos querem levar a vosso manto, dai também a vossa túnica; em vez de discutir e regatear por coisas tão pequenas, tão vis, tão terrestres.

As almas grandes e espirituais têm o espírito acima da terra e o seu coração está no céu: Onde está o vosso tesouro, aí está também o vosso coração.

Para entrar neste espírito de desprendimento e de desprezo das coisas da terra, evitaremos todos os enfrentamentos, todas as disputas, no que diz respeito às coisas da terra; nada de processos com ninguém[310].

É também contrário ao espírito de desprendimento discutir demasiado com os comerciantes, regatear preços, pechinchar[zzzz], não é necessário que o operário e o comerciante ganhem a sua vida? Ordinariamente, demos, mais ou menos, o que se nos pede[311]. É bom ter um pouco de confiança naqueles que nos vendem ou nos fornecem. Se não temos confiança neles, não vamos a suas casas. Se sabemos que nos enganam, não voltemos lá; procuremos tratar sempre com pessoas sérias.

Há também os que não querem nunca fiar-se dos operários, é preciso sempre terceiros para examinar, para medir; não é melhor entender-se amavelmente e fazer as coisas de boa fé? Todas estas precauções não vêm senão da falta de confiança e de boa fé; tanto pior para os que nos enganam! Não levaram consigo nada para o outro mundo.

Actuemos com simplicidade e boa fé; tenhamos um pouco de confiança nos outros, mesmo quando não a mereceria.

É melhor que se diga de nós: é um imbecil, enganei-o bem, pagou bem; do que se dissesse de nós: é um avarento, é um regateador, nunca se chega a acordo com ele; far-se-ia enforcar por um centavo.

Quão prejudiciais são para a religião e contrárias ao espírito de Jesus Cristo estas reflexões que infelizmente se fazem muito frequentemente a respeito de pessoas religiosas!

Em tudo, importa ser largo e generoso e não faltar à caridade.

Há os que, sob o pretexto do espírito de pobreza, de virtude da economia, de boa gestão, de habilidade, de bem conduzir o governo da casa, estão sempre a regatear, a calcular, a correr de um lado para o outro. Tudo isso não é muitas vazes senão pretexto para esconder a avareza, o apego às coisas da terra ou o temor de ter falta e a desconfiança na Santa Providência.

Sejamos para os outros como queremos que Deus seja para nós, generoso e misericordioso.

É o Espírito Santo que dá às almas esta sabedoria para manter este justo meio que faz com que se pratique o desprendimento e que ao mesmo tempo se conserve os interesses de Deus e dos seus pobres.

Quanto aos ladrões, não é possível tirar grande coisa àquele que não tem nada e que não está preso a nada. Este conselho do Salvador: Não reclameis o que é vosso àquele que vo-lo tira, é para nos fazer evitar os processos, os ódios, os tribunais, as disputas, as suspeitas injustas, os juízos temerários, para nos fazer conservar a paz dentro de nós mesmos e nos fazer praticar a mansidão e a caridade e o desprendimento, até mesmo quando se nos tira o que é nosso. Assim se evitam as perturbações do espírito, as investigações inúteis, a perda de tempo, as mentiras, porque aquele que roubou não quererá confessá-lo.

Se se nos tira qualquer coisa, é necessário pensar que os que no-la tiram, tinham necessidade dela e mais necessidade do que nós, que não no-la ousavam pedir e que Deus o permite para nos forçar a praticar o desprendimento e a caridade.

Tudo deve resultar em bem para aquele que é justo.

Se se vem a descobrir o ladrão, é necessário dar-lhe o que roubou, se é possível e, sobretudo, se não o pode devolver, dizendo-lhe que teria feito melhor tendo-o pedido, que se poderia bem mandá-lo punir, mas que, por amor a Deus e ao bem da sua alma, se lhe perdoa e se lho dá, a fim de que não seja condenado por isso.

Por este meio, evitam-se muitas perturbações, misérias, inquietudes; o Senhor é glorificado; fizemos um grande ato de virtude e teremos ganho provavelmente o nosso irmão para Deus, porque os exemplos de mansidão, de desprendimento e de caridade convertem muito mais as almas do que a perseguição e a severidade.

Nosso Senhor, após nos ter dado estas regras de conduta tão elevadas, tão opostas às nossas ideias terrenas, acrescenta: Se fizerdes estas coisas, sereis

filhos do Altíssimo que é bom para os ingratos e os maus e faz chover sobre os justos e os injustos. (Mt 5,45).

4º Não se envolver em assuntos temporais

O ministério do padre é um ministério totalmente espiritual.

Quando Nosso Senhor envia os seus apóstolos, não os envia para se ocupar do mundo, trabalhar, edificar, comerciar; envia-os para pregar e curar; eis as duas grandes missões que Jesus Cristo lhes confia: pregar e curar. Eu vos envio como o meu Pai me enviou.

Os apóstolos que tinham recebido os ensinamentos do Salvador, dão-nos o exemplo deste dever, tal como nós o vemos nos Atos dos Apóstolos. Considerando o cuidado dos pobres como uma ocupação que os absorvia demasiado e tomava um tempo que devia ser empregue inteiramente no espiritual, estabeleceram diáconos para se ocupar dos pobres e guardaram para si a oração e a pregação como sendo a sua ocupação única e verdadeira: nos vero orationi et ministerio verbi instantes erimus. (At 6,4).

São Paulo diz formalmente nas suas epístolas a Timóteo: Que aquele que está admitido ao serviço de Deus não se envolve nos assuntos do século, para não se ocupar senão em agradar àquele a quem se entregou. (2 Tim 2,4)[aaaaa]. Portanto, não há que enredar-se nos assuntos temporais.

Quer dizer que é necessário deixar de lado toda a ocupação dos bens, de terras, de cultivos, de processos, de vendas, de compras, de negócio, tudo o que cheira a comércio ou que se faz para ganhar dinheiro, tudo o que põe em relação com os homens de negócios; é necessário deixar estas coisas aos leigos: os padres não devem tocar nisso nem com a ponta dos dedos.[bbbbb]

Há que empregar bons leigos para tudo o que diz respeito aos assuntos temporais. Para nos conformar a este espírito do Evangelho, evitaremos criar casas ou providências[ccccc] onde se tem de ocupar em trabalhos manuais; o padre à frende destas casas de trabalho é obrigado a ocupar-se de todas as espécies de coisas, marcenaria, ferraria, sapataria, vendas, compras, ter correspondências, relações com homens de negócios, ter armazéns, depósitos; ao entrar no quarto ou na casa destes diretores dir-se-ia que é verdadeiramente um negociante.

O nosso fim deve ser totalmente espiritual e nós não devemos tomar as crianças, como os adultos, senão para os instruir, ensinar-lhes a religião e não para os fazer trabalhar.

Não se censura que um filho de boa família ou mesmo de simples operário, passe três anos, quatro anos, dez anos na escola ou em internatos sem fazer nada, apenas para a sua instrução ou sua educação e censurar-nos-ão, a nós, por ter durante cinco meses crianças pobres para os formar na vida cristã, ensinar-lhes os seus deveres, sem fazer trabalhar[ddddd]!

Seria compreender mal a importância da educação ou da instrução para nos censurar este pouco tempo que eles passam sem trabalhar… tempo que nós próprios nem sempre achamos suficiente.

No entanto, não desaprovamos um pequeno trabalho de ocupação de um instante ao longo do dia, trabalho de ocupação útil à casa, moral, próprio para ocupar o seu corpo e para lhes ensinar a desenvolver-se, como seja, remendar, preparar as refeições, limpar, lavar, fazer terços, cavar um pequeno jardim, etc… Não temos criados e devemos fazer a nossa obra, eis aí o nosso trabalho: ser marceneiro, pedreiro, modelador de gesso, varredor, lavrador, costureiro. Porém rejeitamos toda a profissão: oficina, fábrica, trabalho para fora, todo o trabalho que cheire a comércio, que se faz para ganhar dinheiro. Tudo isto é assunto de bons leigos e não assunto de padres.

É ainda para nos conformar a este espírito de pobreza e de afastamento de tudo o que cheire a mundo, que não possuiremos nem terras, nem bens, nem casas, além das casas que habitamos.

Faremos de maneira a não ter senão o necessário em matéria de habitação, casa, pátio e jardim para não ter de se ocupar de cultivo, de sítio, de operários, de criados ou de caseiros. Todas estas coisas arrastam sempre consigo inconvenientes e embaraços e são contrárias à pobreza evangélica e lançam-nos em todas as espécies de incómodos que é preciso evitar.

Se Deus nos envia bens para as nossas Providências, para as nossas escolas e para as nossas obras, estabeleceremos pais ou mães temporais para que possuam estes bens, os façam frutificar em seu próprio nome, tendo a direcção deles, a gestão e dando as respectivas rendas ao superior geral que ele mesmo os distribuirá pelas diferentes obras, sem que estas pessoas tenham de se meter no emprego destas rendas[eeeee].

Tudo isso se deve fazer sob a direcção geral dos superiores eclesiásticos da congregação.

Há que distinguir o trabalho que se faz por humildade, por obediência, por necessidade, para ganhar a sua vida, como fazia São Paulo e um trabalho que cheira a comércio, que se faz para ganhar dinheiro e que arrasta consigo incómodos de negócios, rendas, complicações absolutamente contrárias ao ministério[312].

Há um trabalho que está dentro do espírito de pobreza, que é mesmo necessário, útil e conforme ao espírito evangélico, pois que Jesus Cristo diz que não veio para ser servido, mas para servir; o pobre deve trabalhar e fazer o que pode para ganhar a sua vida[313].

5º Não pedir nada a ninguém

Quando Nosso Senhor Jesus Cristo envia os seus apóstolos para o mundo, diz-lhes: Ide, ensinai todas as nações, batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Não tenhais ouro, nem prata, nem moeda na cinta, nem duas túnicas, nem sapatos, mas sandálias.

Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: Que a paz esteja nesta casa!

Comei e bebei do que vos derem, o operário é digno do seu salário e do seu alimento. (Mt 10,10; Lc 9,1; 10,4).

E noutro lugar: Não vos inquieteis dizendo: Que havemos de comer, que havemos de beber ou que havemos de vestir? O Vosso Pai celeste sabe que tendes necessidade disso. (Lc 12,30).

Procurai o reino de Deus e tudo o resto vos será dado por acréscimo. (Mt 6,33).

Portanto, quando o Mestre envia os seus operários, [os seus] apóstolos no mundo, não os envia para fazer coleta, pedir, edificar, construir, estabelecer-se no mundo, envia-os para ensinar, instruir e batizar. Eis aí a grande finalidade.

E se trabalham para ele, promete dar-lhes o seu salário.

Quando se manda trabalhar um operário deve-se-lhe pagar; o operário é digno do seu salário; uma vez que é Deus que envia, encarrega-se dos seus operários.

Assim, quando vamos a um lugar qualquer, a primeira coisa

a fazer é instruir, fazer o catecismo, batizar, curar, prestar serviço a toda a gente; aí está a nossa primeira missão.

Se se começa por edificar, arranjar, alinhar, comprar, pedir, fazer coleta, não se faz a obra de Deus: faz-se obra material.

É necessário começar pela obra espiritual.

A obra material só vem depois[314].

Quando os apóstolos percorram o mundo, não começaram por fazer coletas, pedir, construir e edificar casas, igrejas. Não.

Começaram por erguer uma cruz e, ao pé desta cruz, instruíram o mundo; ou instruíram nas sinagogas, nas casas, e quando o mundo se convertia, os fiéis construíam eles próprios as igrejas porque sentiam necessidade delas[fffff].

A conversão do mundo passa à frente de tudo.

Não há que deixar as almas para correr atrás das pedras. Para que servem as pedras quando não se tem as almas?

É, pois, necessário fazer passar a obra espiritual antes de tudo; instruir, catequizar, aí está o primeiro dever a cumprir[315].

Se não se tem o necessário, pouco importa. Nosso Senhor tinha o que era preciso quando veio à terra?

Tinha o que era necessário nas suas viagens na Galileia, na Judeia, na Capadócia?

Tinha o que era necessário quando estava na sua cruz?

Se há que sofrer, tanto melhor! só assim a obra de Deus será mais sólida e

terá melhor êxito; atrai-se mais e ganha-se mais almas para Deus pela pobreza e o sofrimento do que pelo bem-estar e as riquezas.

Os fiéis nos darão muito mais ou, antes, estarão muito mais dispostos a dar-nos, quando nos virem pobres e sofredores.

Se Deus não nos envia recursos, é uma prova de que quer que soframos e que mereçamos pelo sofrimento, aquilo de que temos necessidade; quanta prudência e sabedoria nos falta quando vamos demasiado depressa! presunção.

É talvez também uma prova de que Deus não quer esta obra ou que não somos dignos de a fazer, de a estabelecer, de a conduzir bem; e que é melhor não empreendê-la do que querer fazê-la à força.

Toda a obra de Deus deve, antes de tudo, levar o selo da pobreza e [do] sofrimento.

Além disso, as coletas não trazem consigo grandes inconvenientes? não é preciso perder muito tempo para ir a casa de um, a casa de outro, esperar o senhor, a senhora, fazer sala, dizer muitas palavras inúteis, por vezes, até mentiras; exaltar o que se faz e mesmo frequentemente o que não se faz? contar as penas que se tem ou que não se tem, ouvir palavras lisonjeiras de louvores? e, muitas vezes, não se volta apenas com o espírito do mundo e cheio de tolices; fazer isto, é fazer a obra de Deus? e Deus vincula o sucesso da sua obra a coisas tão vãs e pueris?

Dir-se-á que há muito mérito em fazer a coleta. Sim, sem dúvida, há sofrimentos, afrontas, humilhações. Mas também há mérito em sofrer e em esperar tudo da Providência.

E as pessoas do mundo não estão muitas vezes cansadas de ver continuamente à sua porta coletores? e, frequentemente, não se lhes dá senão de má vontade e não faltam os que censuram e criticam estes mendicantes contínuos.

Além disso, não são nem as terras, nem as casas, nem o ouro, nem o dinheiro que fazem obras de Deus. São os homens, homens generosos, devotados, que sabem sofrer, animados do espírito de Deus.

Aí está o que é necessário para fazer as obras.

Dai-me uma alma generosa, devotada, que saiba sofrer, valerá mais que um milhão. E quando, ao lado desta alma, se junta uma outra animada do mesmo desejo e caminhando para o mesmo fim e unidas juntamente pelo amor de Deus, está fundada a obra[316].

É o Espírito Santo que o diz: Bem-aventurado o homem puro e sem mancha, que não corre atrás do ouro e não pôs a sua confiança no dinheiro e nos tesouros; fará coisas admiráveis durante a sua vida. (Ecl. 31,8).

Quando se faz o bem espiritual, o temporal vem sempre. Deus prometeu-o.

Se damos bens espirituais pelo valor de uma onça, Deus nos dará cem libras de bens temporais. Era a nossa divisa ao começar o Prado.

Compreende-se que leigos, ao fazer uma obra, peçam esmolas para a fazer, para a continuar, aumentá-la.

Porém o padre, tão rico, tão poderoso, que possui todos os tesouros celestes, que distribui os dons de Deus, tem necessidade de ir correr atrás de dinheiro para ele ou para os outros?

Toda a gente tem necessidade dele, os pobres e os ricos ainda mais do que os pobres. É o médico das almas, o consolador de toda a gente; dá a toda a gente os dons de Deus. As pessoas têm mais necessidade dele do que ele tem necessidade dos outros. Ele dá mais do que ninguém lhe dará e o que se lhe dá não é nada em comparação com o que ele próprio dá. Ele é mais rico do que todos os ricos da terra e os ricos têm mais necessidade dele do que ele tem necessidade dos ricos.

Se, pois, o padre conhece as duas riquezas e se sabe distribuir como deve ser as graças de Deus, não lhe faltará nunca bens da terra.

E correr atrás dos bens da terra é anunciar publicamente a sua miséria espiritual, é confessar que não trabalha segundo Deus, dado que Deus não lhe paga, é confessar que não dá nada ao mundo porque o mundo não lhe dá nada.

O padre que dá ao mundo a vida espiritual não tem necessidade de se ocupar das coisas temporais. Deus as enviará de sobra.

Procurai o reino de Deus e a sua justiça e o resto vos será dado por acréscimo. (Mt 6,33).

O padre que trabalha para Deus será de preferência alimentado e mantido pelos pobres e depois virão os ricos, é a regra[317].

Indicações práticas

Para observar esta regra de pobreza, de fé, de confiança em Deus propomo-nos, antes de mais, ocupar-nos exclusivamente das obras de Deus e fazer passar a obra de Deus à frente de tudo; nunca começar pelo temporal, mas começar pelo espiritual, não solicitar coisa alguma das pessoas do mundo, nunca empregar nenhum destes meios humanos bastante em uso no mundo para ter dinheiro, tais como lotaria, concerto, veladas, reuniões, sermões e outros em que se faz coletas. Todos estes meios de atrair dinheiro não cheiram a caridade, confiança, humildade. Não é necessário sacar dinheiro, nem forçar o mundo a no-lo dar.

Ao contrário, convém que todo o dinheiro ou bens que recebemos seja absolutamente o dinheiro da Providência e que os fiéis no-lo dêem livremente, voluntariamente, afetuosamente, espontaneamente.

Podemos dar a conhecer as nossas necessidades aos que no-lo perguntem, mas não aos que não no-lo perguntam.

Podemos ir a casa dos que nos dizem para ir a sua casa buscar qualquer coisa[318], mas não a casa dos que não nos conhecem ou não nos dizem nada. Podemos fazer a coleta na igreja dizendo qual o motivo, cada qual dá o que quer. Podemos ir à porta de uma igreja, como os pobres, pedir esmola.

(É terminantemente proibido fazer pagar os seus serviços, solicitar dinheiro aos pais dos filhos que temos conosco, pedir-lhes o que quer que seja, seria perder a sua liberdade de ação, expor-se a baixezas, perder a sua dignidade e ir contra o espírito de Jesus Cristo. É-se mais feliz em dar do que em receber, prestar serviço a todo o mundo sem interesse).

Em todos estes casos, é o dinheiro da Providência e não um dinheiro solicitado, atormentado, que não se dá, muitas vezes, senão a custo e para se desembaraçar de nós.

Podemos ainda, por espírito de pobreza, de humildade e de penitência, ir pedir esmola para nós próprios como um pobre, pedindo de porta em porta ou no caminho, sem dizer nada. Há o pedido do pobre que pede pão quando tem fome. Esta não é proibida quando é realmente necessário e é para si próprio.

Quando não temos nada, primeiro devemos trabalhar, como São Paulo, para não ser pesado a ninguém e, quando não podemos suprir às nossas necessidades, devemos diminuir as nossas despesas e vender o que temos a mais.

Acontece frequentemente que se tem muitas coisas inúteis, que se tem muita abundância, que se não é realmente pobre e é por isso que se não recebe; então, vendei o que tendes em demasia e trabalhai para ganhar a vossa vida, e Deus vos enviará o que vos falta.

Só quando se vendeu tudo o que se tem a mais e se trabalha como verdadeiros pobres, se pode ir pedir, se realmente se tem falta do necessário. E, quando se pede, fazê-lo sempre com humildade, reserva e prudência, e lembrar-se sempre bem que ninguém nos deve nada.

Infelizmente há os que crêem que, porque fazem uma obra, porque têm tal ou tal cargo, que todo o mundo deve ajudá-los, recebê-los bem, dar-lhes;

esses não são senão orgulhosos; não merecem senão umas pauladas e não são dignos de fazer a obra de Deus. Os mendicantes são frequentemente pessoas perdidas para o espiritual e para a sua vocação.

Acontece também que se habituam a pedir e, com frequência, não mais se pede para ter o estritamente necessário, mas para se engrandecer, adornar-se, acomodar-se, enriquecer-se. Então, não mais se faz a obra de Deus: é a obra do diabo, porque Deus disse: Ai dos ricos! e aquele que se torna rico através de coletas não é mais do que um enganador e cai nas armadilhas do diabo[319].

Não receber senão coisas conformes à pobreza.

Não receber nada para si em particular, mas para as obras e para a casa.

Não receber sem permissão e, se se recebe alguma coisa, remetê-la ao superior que dispõe dela conforme o julga conveniente e a dá a quem crê dever dá-la.

Não pedir nada a ninguém nas funções do santo ministério

Nosso Senhor instruindo os seus apóstolos diz-lhes também estas palavras: recebestes de graça, dai de graça.

Este conselho de perfeição que Nosso Senhor recomenda aos seus apóstolos, São Pedro recomenda-o também aos padres da Igreja e São Paulo põe-no em prática com todo o seu rigor, na sua conduta para com os fiéis de Corinto, de Tessalónica e de Éfeso e de toda a Acaia; e o ritual romano fala disso no seu prefácio dirigido aos padres.

São Pedro, escrevendo aos padres e bispos, diz-lhes: Apascentai o rebanho de Deus que vos foi confiado, vigiando a sua conduta, não por uma necessidade forçada, mas por uma afeição totalmente voluntária que seja segundo Deus, não por um vergonhoso desejo de ganho, mas por uma caridade desinteressada. (1 Ped 5,2).

São Paulo exprime-se com vigor e claramente sobre este ponto e mostra-nos até onde leva o desprendimento e a caridade neste aspecto.

Eis o que ele diz aos Coríntios: Se em vós semeamos bens espirituais, será demais que recolhamos de vós bens temporais? Se outros se servem deste poder a vosso respeito, porque não o usaríamos nós de preferência a eles? Porém, não o utilizamos e nós sofremos, pelo contrário, de toda a espécie de incomodidades para não pôr nenhum obstáculo ao Evangelho de Jesus Cristo. Deus ordenou aos que anunciam o Evangelho viver do Evangelho; por mim, não usei destes direitos e não vos escrevo

isto para que se faça assim para comigo, pois que preferiria morrer do que suportar que alguém me fizesse perder esta glória de evangelizar gratuitamente. (1 Cor 9,11).

Escrevendo em outra ocasião aos mesmos fiéis, diz-lhes ainda: É a terceira vez que me preparo para ir ter convosco e isto ainda sem estar ao vosso cargo, porque sois vós que eu procuro e não o vosso bem. Não compete aos filhos acumular tesouros para os seus pais, mas aos pais é que cabe acumular tesouros para os seus filhos. Também, pelo que me diz respeito, darei voluntariamente tudo o que tenho e dar-me-ei ainda a mim mesmo, pela salvação das vossas almas, ainda que tendo tanta afeição por vós, vós tenhais tão pouca para mim. (2 Cor 12,14).

Nas suas despedidas aos bispos de Éfeso, diz: Vigiai lembrando-vos que, durante três anos, não cessei, dia e noite, de vos exortar cada um de vós, com lágrimas. E agora recomendo-vos a Deus e à palavra da sua graça.

Não desejei receber de ninguém nem ouro, nem dinheiro, nem vestes e vós próprios sabeis que estas mãos que vedes, proveram a tudo o que nos era necessário, a mim e a todos os que estavam comigo. Mostrei-vos em tudo que é assim trabalhando com suas mãos e anunciando gratuitamente o Evangelho que importa tratar dos fracos ( e tirar-lhes todo o motivo de crer que se lhes prega por interesse) e recordar-se desta palavra que o próprio Senhor disse, que há mais felicidade em dar do que em receber. (At 20,31).

Escreve ainda aos Coríntios: Não penso ter sido em nada inferior aos maiores dos apóstolos. Será que errei quando, para vos elevar, me rebaixei a mim mesmo, pregando-vos gratuitamente o Evangelho de Deus? É verdade que recebi das outras Igrejas aquilo de que tinha necessidade para vos servir e que, quando estava entre vós e estava em necessidade, não estive a cargo de ninguém; contudo os meus irmãos da Macedónia supriram às necessidades que eu podia ter e tive o cuidado de não estar ao vosso cargo no que quer que fosse, como o farei no futuro. A verdade de Jesus Cristo está em mim e ninguém me arrebatará esta glória em toda a Acaia; e que não se diga que recebi alguma coisa daqueles a quem anunciei o Evangelho. (2 Cor 11,5).

Escrevendo aos Tessalonicenses, recorda-lhes também a sua conduta a respeito deles, dizendo-lhes: E não comemos gratuitamente o pão de ninguém; com efeito, trabalhamos com as nossas mãos, dia e noite, com cansaço e com fadiga, para não estar a cargo de nenhum de vós; não é que não tivéssemos tal poder, mas é que quisemos dar-nos a nós próprios por modelo, a fim de que vós nos imitásseis trabalhando vós mesmos para comer. (2 Tes 3,7).

E noutro lugar, diz ainda aos Coríntios: Até este momento suportamos a fome, a sede, a nudez, os maus tratos; não temos morada estável; trabalhamos com muito sofrimento com as nossas próprias mãos; somos amaldiçoados e abençoamos; expostos à perseguição e sofremo-la.

Tornamo-nos como o lixo do mundo, com as sujeiras que são rejeitadas por todos. (1 Cor 4,11).

Exposto a toda a espécie de trabalhos, de fadigas, de numerosas vigílias, à fome, à sede, a repetidos jejuns, ao frio, à nudez. (2 Cor 11,27).

Eis como se conduzia o grande São Paulo.

Eis até onde levava o devotamento, a pobreza, a caridade.

Onde estamos nós?

Que diferença entre a nossa vida e a sua!

Prescrições do ritual romano

Ao abrir o ritual romano que nos dá, no prefácio, as regras que devemos seguir na administração dos sacramentos, encontramos estas palavras:

Illud porro diligenter caveat ne, in sacramentorum administratione, aliquid, quavis de causa vel occasione, direte vel indirete exigat, aut petat; sed ea gratis administret, et ab omni simoniae atque avaritiae suspicione, nedum crimine, longissime absit.

Si quid vero nomine Eleemosynae aut devotionis studio, peracto jam sacramento, sponte a fidelibus offeratur, id licite pro consuetudine locorum accipere poterit, nisi aliter Episcopo videatur[ggggg]. (Rituale Rom. Preface).

Exercer gratuitamente o santo ministério

Não se pode encontrar nada mais claro, mais preciso, sobre este artigo e se o uso contrário prevaleceu na França, tal não foi senão por uma concessão resultante das circunstâncias aborrecidas em que se encontrava o clero após a Revolução.

Em 1864, estando em Roma, dirigimos a S. Santidade Pio IX uma súplica para lhe pedir a permissão de exercer gratuitamente o santo ministério.

Eis aqui o teor da súplica e a resposta de Sua Santidade.

Súplica a Sua Santidade

Santíssimo Padre,

O sacerdote Antônio François Marie Chevrier, da Ordem Terceira de São Francisco, humildemente prostrado aos pés de Vossa Santidade, expõe-lhe o desejo que vários padres têm de se reunir, na medida em que a autoridade diocesana lhes permita, para levar uma vida regular e exercer o santo ministério sem outra retribuição que aquela que os fiéis lhes oferecerem espontaneamente.

Pede, para ele e para os seus padres, a benção de Sua Santidade.

Roma, 1 de Outubro de 1864.

Eis aqui a resposta que sua Santidade nos dirigiu pelo Padre Piscivillo, secretário de Sua Santidade e redator la Civittá Catholica, que houve por bem apresentar a nossa súplica ao Papa:

Resposta de Sua Santidade pelo Padre Piscivillo

Meu respeitável amigo,

Na audiência de 12 do mês de Outubro, apresentei a Sua Santidade a vossa súplica. Dignou-se lê-la com toda a atenção. Fez-me perguntas e questionou-me sobre diversas pequenas coisas que podiam dizer respeito à vossa maneira de viver. Respondi o melhor que soube e como pude.

Depois destas informações, Sua Santidade diz-me: Não posso assinar nada, trata-se de um assunto muito grave no qual a Santa Sé procede com toda a lentidão e prudência.

Abençoo de todo o coração o sacerdote Chevrier e seus companheiros e encarrego-vos de lhes transmitir a minha benção.

A obra é boa, mas antes de o aprovar, é preciso que os anos passem, que os bispos testemunhem a sua oportunidade e o seu sucesso; de momento, não posso senão aprovar as intenções e abençoar as pessoas, o que faço de todo o meu coração.

Roma, 1º de Novembro de 1864

Carlos Piscivillo

O Santo Padre diz que a obra é boa, mas que, para aprová-la é preciso encontrar bispos que nos recebam e nos admitam com esta maneira de viver, e dêem testemunho do sucesso, que, de momento, não pode senão aprovar as intenções e abençoar as pessoas.

Não podíamos ter uma resposta mais favorável e mais sábia ao mesmo tempo.

Pedimos, pois, a permissão de exercer o ministério gratuitamente e de não receber, nas nossas funções santas, senão o que os fiéis nos quiserem dar livre e espontaneamente e não exigir nunca nada pelas funções do santo ministério, a fim de pôr em prática esta palavra de Nosso Senhor: Recebestes gratuitamente, dai gratuitamente, e de conformar a nossa conduta como a de São Paulo que trabalhava com as suas mãos de preferência a pedir e que considerava uma glória e uma felicidade evangelizar gratuitamente[320].

Poremos uma caixa das esmolas na sacristia e na igreja, destinada a receber as ofertas dos fiéis por ocasião da administração dos sacramentos e do Santo Sacrifício da missa[321].

Faremos passar um irmão ou uma irmã pela igreja, após os ofícios para receber a esmola no caso das cadeiras.[322]

Evitaremos colocar nas nossas igrejas e sacristias estas listas, estas tarifas que fixam o preço das coisas santas, dos enterros e das cadeiras[323].

Os fiéis que têm fé compreendem este dever para com o padre e dão facilmente aos padres que realizaram uma função santa.

Porém, que quereis pedir vós a ímpios, a pessoas que desprezam já o padre, que consideram o padre como um avarento e um homem de bom comer, a pessoas que não vêm senão três ou quatro vezes à igreja durante a sua vida: aos casamentos, aos batismos e aos enterros e que todas as vezes que vêm à igreja, ouvem do padre ou do sacristão estas palavras: deveis-me tanto, e isso com autoridade e exigência.

Estas maneiras de agir não fazem senão desviar da Igreja e eles vão-se embora jurando, criticando a religião e tratando a religião como uma religião de dinheiro. É um fato certo que muito poucas pessoas dão de bom coração o seu dinheiro ao padre e, ordinariamente, não se o deixa senão dizendo algumas palavras injuriosas.

É por esta razão que São Paulo não queria receber nada dos coríntios, tessalonicenses e outros, e que recebia dos macedónios, para nos mostrar que não há que pedir àqueles que não estão firmes na fé, para lhes dar o exemplo do desprendimento e não colocar obstáculo ao Evangelho.

Como destruir estas más impressões no coração dos povos? como fazer renascer neles a confiança e o respeito pelo padre?

Será pelo desprendimento e pela pobreza que reencontraremos o nosso lugar no coração dos povos.

Como se ama, geralmente um padre desinteressado, inclusive, os mais maus! e como se despreza um padre avarento, interessado!

Quanto mais pobres e desinteressados formos, menos exigentes seremos, mais seremos amigos do povo[hhhhh] e mais fácil nos será fazer o bem[324].

Vale mais dizer: Dai o que quiserdes, do que dizer: deveis-me tanto, é tanto.

Não se pensaria num comércio quando se diz: Deveis-me tanto? e quando os fiéis vos perguntam: Quanto é? quanto é a missa?

E, depois, como é difícil não fazer as coisas um pouco por dinheiro! não ter atenções pelos que dão mais! não preferir uma missa ou uma outra função mais bem paga a uma outra função menos retribuída! e ser tentado a pedir ou desejar receber mais! Não desejei ouro, nem prata, nem nada. (At 20,33)

Como o dinheiro tenta! como faz inveja geralmente e como é difícil não cometer alguma falta neste gênero e não imitar Judas: quanto me dareis e eu vo-lo entregarei, vo-lo darei?[iiiii].

Com que vigor Nosso Senhor expulsa os vendedores do templo; é um pecado que aflige grandemente o seu coração, é necessário separar das coisas santas tudo o que cheira a dinheiro, a comércio, a tráfico.

Não é muitas vezes para punir a nossa avareza e o nosso apego aos bens da terra que Deus envia as revoluções e nos faz despojar pelos próprios fiéis de tudo o que possuímos? É a primeira coisa que fazem os revolucionários: despojar-nos, tornar-nos pobres.

Não se diria que Deus quer punir-nos pelo nosso apego aos bens da terra e forçar-nos, por aí, a praticar a pobreza, dado que não queremos praticá-la voluntariamente?

E, por vezes, é muito bom que tal aconteça porque nós adormeceríamos

nas riquezas e no bem-estar e não nos ocuparíamos mais das coisas de Deus[jjjjj]. Quando Deus diz: Ai dos ricos, o diz ainda mais para os seus ministros do que para os outros, porque se alguém deve praticar a pobreza, são sobretudo os padres, seus servidores.

6º Não se inquietar com o futuro

Nosso Senhor quer que retiremos do nosso coração toda a inquietude do futuro e não teme falar longamente desta confiança que devemos ter em Deus e de entrar em longos detalhes, para nos mostrar que Deus quer ser verdadeiramente nosso Pai e que seria fazer-lhe uma grave injúria inquietar-se com o temporal quando se trabalha para ele[325].

Escutemos o que nos diz: Eu vo-lo digo, não vos inquieteis pela vossa vida, com o que haveis de comer, nem com o vosso corpo com o que haveis de vestir. A vida não é mais do que o alimento e o corpo mais do que o vestido? Olhai as aves do céu que não semeiam, nem ceifam, nem recolhem nos seus celeiros e o vosso Pai celeste as alimenta. Não valeis mais do que elas?

Quem de vós, à força de cálculo, pode ajuntar um côvado à sua estatura?

E quanto à vossa veste, porque vos inquietais?

Olhai os lírios do campo, como crescem; não trabalham nem fiam e eu vos digo que mesmo Salomão em toda a sua glória não se vestiu como um deles.

Pois se Deus veste assim a erva do campo que hoje existe e que, amanhã, será lançada ao forno, quanto mais vós, gente de pouca fé?

Não vos inquieteis, pois, dizendo: que havemos de comer? ou o que havemos de beber? ou o que havemos de vestir?

Porque todas estas coisas são os gentios que as procuram.

Porém, o vosso Pai celeste sabe que tendes necessidade destas coisas.

Não vos inquieteis com o amanhã: o dia de amanhã se preocupará consigo próprio, a ca da dia basta o seu afã. (Mt 6,25; Lc 12,22).

Na oração do Pai Nosso, dizemos: Dai-nos hoje o pão nosso de cada dia. Noutro lugar, diz-nos também: Não vos preocupeis em amontoar tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem, os ladrões os desenterram e os roubam; fazei tesouros no céu onde nem a ferrugem, nem a traça os consomem. (Mt 6,19). Guardai-vos de toda a avareza, diz Nosso Senhor Jesus Cristo, porque qualquer que seja a abundância que um homem tenha, a conservação da sua vida não depende do que possui. (Lc 12,15). Depois, Nosso Senhor conta-nos a história de um rico que, tendo feito grandes colheitas, manda acrescentar os seus celeiros, põe lá os seus frutos e diz: Agora, descansa, minha alma, come, bebe, regala-te; eis que, naquela mesma noite, Deus lhe reclama a sua alma. Assim acontece com aquele que acumula tesouros para si mesmo e que não é rico em Deus. (Lc 12,16).

Quando Jesus envia os seus apóstolos em missão, diz-lhes: Não vos preocupeis em ter ouro ou prata ou outra moeda no vosso bolso, não prepareis para a vossa viagem, nem saco, nem túnicas, nem calçado, nem bastão. (Mt 10,9). Não leveis nada para o caminho: nem cajado para vos defender, nem saco, nem provisão, nem pão, nem dinheiro e não tenhais mesmo duas túnicas. (Mt 10,10; Lc 9,3; 10,4).

Com todas estes discursos, Nosso Senhor quer banir da nossa alma toda a inquietação com o futuro. Somos seus filhos, seus operários, seus servidores: cuidará de nós; o operário é digno do seu salário.

Se ele cuida das avezinhas, com maior razão cuidará de nós que somos suas criaturas privilegiadas, seus operários que ele envia a trabalhar na sua vinha. Não se manda trabalhar um operário sem lhe pagar[326].

Libertando-nos de toda a inquietude face ao futuro, Nosso Senhor por aí nos preserva de toda a avareza. É porque se tem medo de faltar o necessário no futuro que se faz economias, que se não gasta senão o estritamente necessário, que se procura ganhar o mais possível, gastar o menos possível, pôr de lado, acumular tesouros[327]. Aquele que tem medo do futuro é tacanho, mesquinho; tem sempre medo de faltar o necessário mais tarde; não é nem generoso, nem caridoso: é avaro. É precisamente contra este desgraçado defeito que Nosso Senhor quer pôr-nos de sobreaviso dando-nos esta confiança nele.

Aquele que é avaro amontoa o seu ouro e a sua prata; põe de lado qualquer coisa cada mês, cada ano; amontoa quanto pode, para usufruir mais tarde. Gosta de ver o seu tesouro; conta o seu dinheiro de quando em quando; deposita-o para o fazer valer e aumentar os seus interesses. Já não se trabalha para Deus, trabalha-se para adquirir dinheiro. Que infelicidade chegar até aí! Quando se é rico e se tem com que bastar-se, além de que se perde o espírito de pobreza, não se conta mais com Deus como quando se é pobre; já não se reza tão bem, já não se mantém mais na humildade para pedir o seu pão de cada dia; confia-se nos seus tesouros; torna-se negligente, preguiçoso para o trabalho. Tem-se de que viver; torna-se burguês; instala-se. Senta-se e conta-se o seu dinheiro, as suas rendas; em seguida regula as suas obras com as suas rendas e não há mais a caridade e o devotamento que são o princípio das nossas obras de caridade, mas a quantidade de rendimentos que temos.

A pobreza mantém-nos na humildade e na confiança em Deus.

As riquezas e os tesouros são as ruínas das casas; a pobreza conserva-as e mantém-nas no vigor e na caridade[328]. Para nos conformar a este espírito de pobreza que pede Nosso Senhor, que não quer que acumulemos tesouros, mas que tenhamos confiança nele face ao futuro, renunciamos pessoalmente a tudo o que nos pode criar um futuro, tal como rendimento, sitios, terras, valores, propriedades.

Devemos ater-nos estritamente ao que a Igreja pede e exige em relação ao título clerical.

Comprometemo-nos a gastar o que se nos der, empregando-o nas necessidades dos pobres e nas boas obras da comunidade, sem procurar acumular.

A viver tanto quanto possível o dia-a-dia, pedindo a Deus o pão de cada dia, para viver na humildade e na pobreza.

Inclusive, evitaremos ter nas casas estas grandes e demasiado abundantes provisões que são, por vezes, um motivo de desperdício e de perda.

Não possuiremos senão os bens necessários para viver, tais como casas, hortas, pátio, casas de anciãos e de enfermos, lugares de retiro.

Os bens que possuem as mães temporais são para as escolas e para as escolas clericais[kkkkk] e não são para os padres.

Os padres devem sustentar-se entre si.


7º Contar só com Deus

Não há que contar com o mundo:

hoje está por nós; amanhã estará contra nós.

O mundo é variável e inconstante: hoje promete-vos, amanhã retira a sua promessa; hoje sois-lhe conveniente, amanhã lhe desagradais; isso resulta em nada, se não fazeis como ele quer, volta-vos as costas.

Infeliz daquele que constrói sobre promessas, encontrar-se-á na desgraça e na ruína.

Não há que pôr a sua confiança em tal ou tal pessoa, ou porque é rica, ou porque é devotada.

Não há que apoiar-se nem na ciência, nem na riqueza.

Não há que contar com ninguém no mundo, nem mesmo sobre os que estão conosco, a menos que tenham dado provas certas de fidelidade e de perseverança e estas provas estão no sofrimento.

Vós permanecestes comigo nas minhas tentações, dizia Nosso Senhor aos seus apóstolos.

O sofrimento é a única prova de fidelidade.

Quando tiverdes sofrido, contarei convosco.

É por isso que não há que comprometer ninguém em nada antes de que tenha dado provas certas de fidelidade à obra pelo sofrimento.

É um grande erro dizer: tal pessoa é rica, vai me dar; tal pessoa é generosa; vai me dar; tal pessoa me estima, tem-me afeto, vai me dar. O mundo ama ainda mais o seu dinheiro do que vós e as vossas obras.

Não contemos com promessas que vos possam fazer, nem com os depósitos que se nos pode fazer, mesmo quando se nos diz que isso nos pertencerá após a sua morte.

O provérbio é verdadeiro: o um que tens vale mais que dois que terás.

Não aceitar doações feitas a meias, o que só é um embaraço, uma preocupação e pode ser uma ocasião de mal-estar para eles e para nós.

Não há nunca que se apoiar em bases vacilantes.

Há que contar só com Deus.

Desde que façamos verdadeiramente a obra de Deus, que tenhamos realmente a vocação de Deus para fazer a sua obra, Deus será por nós, é a sua promessa.

Condições para ter o apoio de Deus

Procurai primeiro o reino de Deus e a sua justiça e o resto vos será dado por acréscimo. (Mt 6,33).

A primeira condição é ser chamado por Deus para trabalhar na sua obra.

Depois, é necessário procurar o reino de Deus primeiro do que tudo e a sua justiça e Deus nos dará o resto.

É bem certo que se procuramos instalar-nos a nós próprios, se procuramos as nossas satisfações, as nossas comodidades, fazer construções, não procuramos Deus, mas a nós próprios e, por vezes, o reino de Deus não passa senão depois do nosso[329].

É necessário trabalhar e trabalhar para Deus; é necessário que o lavrador trabalhe para recolher grãos.

Deus não recompensa e não paga senão os que trabalham para ele. O operário é digno do seu salário. Não se paga senão àqueles que trabalham. Deus também só paga àqueles que trabalham para ele.

É necessário trabalhar para Deus e com Deus, isto é, [com] o seu espírito.

Se ultrapassais os limites que Deus quer, se em vez de ficar no sofrimento e na pobreza que Deus pede sempre nas obras que lhe pertencem, vós saís destes limites, e vos ocupais demasiado de coisas exteriores, saís da simplicidade, da pobreza, aventurais-vos, fazeis mais do que devíeis, do que podíeis, embelezais, gastais inutilmente, se numa cega presunção dizeis: “Deus pagará bem”, não, Deus não paga as asneiras, as imprudências e, por vezes, abandona-nos e nos deixa cair, quando queremos fazer mais do que ele quer, sobretudo no material[330].

É necessário, pois, agir com toda a prudência, moderação, sabedoria, saber ser pobre, sofrer.

Quando não se tem, nunca comprometer-se em despesas inúteis e além das próprias forças.

Importa contar com a Providência, mas não tentar a Providência e nunca empreender nada de que não se esteja seguro de poder pagar.

Quando Deus envia, agir, fazer na proporção do que Deus envia.

Quando vos enviei sem bolsa, sem saco, sem calçado, faltou-vos alguma coisa? Nada, responderam os apóstolos. (Lc 22,35).

Deus envia os seus apóstolos na pobreza e dá-lhes o necessário, mas eles não se ocupam em construir, em assuntos temporais.

Deus promete o cêntuplo neste mundo, quando se trabalha para ele e se faz realmente a obra de Deus.

E ninguém terá deixado casa, pai, irmãs ou mãe, ou mulher, ou filhos, ou terras por causa de mim, por causa do reino de Deus, por causa do Evangelho, que não receba agora, mesmo neste tempo, cem vezes e até muito mais, casas e irmãos, irmãs, filhos e terras, com perseguições e a vida eterna no século futuro. (Mc 10,29).

Como é belo este homem de Deus, cujos pés apenas tocam a terra!

Quam pulchri pedes Egangelizantium pacem, evangelizantium bona![lllll] Nem as mãos, nem o coração, nem a cabeça tocam na terra!

E estes mesmos pés são belos, porque não fazem senão roçar a terra.

Que liberdade, que poder dá ao padre esta santa e bela pobreza de Jesus Cristo!

Que força adquire para lutar contra os vícios do mundo!

Que exemplo é para o mundo, este mundo que não trabalha senão por dinheiro, que não pensa senão em dinheiro, que não vive senão para o dinheiro!

E ao lado deste mundo material, sensual, um homem totalmente espiritual, que não vive para a terra, que despreza o dinheiro e os bens deste mundo, que não quer nada destas coisas da terra e diz ao mundo: guarda o teu ouro e o teu dinheiro; o meu tesouro está no céu; a minha vida é Jesus Cristo.

Quem se contenta com o estritamente necessário, que não pede nada a ninguém, quem não trabalha senão para Deus, que não discuta nem pela sua veste, nem pelo seu manto e não reclama o que se lhe tirou e que se abandona nas mãos da divina Providência.

Como é belo! como é grande! como é admirável este homem!

E como o mundo se deve virar ao vê-lo e admirar nele o poder da fé, do amor e da confiança em Deus.

Onde estiverem estes homens, farão coisas admiráveis, diz a Sabedoria.

Ô pobreza, como és bela!

Jesus Cristo, meu Mestre, achou-te tão bela que te desposou ao descer do céu,

que fez dela a companheira da sua vida e quis morrer contigo na cruz.

Dai-me, meu Mestre, esta bela pobreza.

Que eu a procure com solicitude,

que eu a siga com alegria,

que eu a abrace com amor,

para fazer dela a companheira de toda a minha vida[331] e morrer com ela sobre um pedaço de madeira,

como o meu Mestre!

Hoc fac et vives[mmmmm].

Quarta Condição:
Levar A Sua Cruz[nnnnn]



Quarta condição, anuncia o Padre Chevrier, mas ele reenvia-nos às condições precedentes: a cruz é a pobreza, a renúncia às criaturas e a si mesmo[332].

No seu pensamento, portanto, a cruz sucede bem às condições precedentes porque aqui, ele fixa a nossa atenção sobre as consequências das renúncias[333]. O acento é posto num ponto: a vida evangélica põe à prova a nossa paciência.

Com a graça de Deus, é relativamente fácil de se decidir pela pobreza, por exemplo. Com efeito, de início, somos levados geralmente por um certo entusiasmo. Estamos de acordo em dizer que onde não há sofrimento, não há verdadeira pobreza[334], e que se há algo a sofrer, tanto melhor! a obra de Deus só será mais sólida[335]. Estes primeiros passos são custosos, mas trazem consigo a sua recompensa.

Ao contrário, quando o caminho que se alarga, à medida que o tempo passa, o entusiasmo desaparece e é então que é preciso levar a cruz cada dia, quer dizer, ser pobre todos os dias[336]. Por causa disso, muitos aceitam, tomam a cruz e não [a] levam[337]. É uma meditação sobre a ação de levar a cruz que nos é proposta, com vista a que nos armemos de paciência, para ir até ao fim. É a constância na provação, tão cara a São Paulo. Assim, «a tribulação produz a constância, a constância uma virtude comprovada, a virtude comprovada, a esperança. E a esperança não decepciona»…[338].

Ao fazer a Via-sacra na capela do Prado, o Padre Chevrier gostava de dizer que cada um tem de tomar a sua cruz[339]. Ele lembrava-o brevemente


aos seus ouvintes na segunda estação da Via-sacra, onde, tradicionalmente se vê Jesus recebendo o peso da cruz.

Esta vida está semeada de cruzes… todos, em todas as condições, no palácio e na cabana… aí onde menos se pensa, cruz de madeira, cruz de ouro para o rico, não menos pesada, brilhante na aparência. Pobreza, trabalho – cruz na tua esposa, esposo, filhos. Calúnias, maledicências – perdas de bens, de familiares, decepções, insucessos.

É a nossa condição humana – consequência do pecado, da enfermidade.

Para onde quer que vamos, onde quer que vivamos, inevitável[340].

Este gênero de meditação encontra-se várias vezes nas suas notas sobre a Via-sacra ou sobre os Mistérios do rosário. No Verdadeiro Discípulo, a conclusão é que o padre e todo o apóstolo em geral, não deve espantar-se de partilhar a sorte comum, ao contrário, porque quis tomar a cruz da vida evangélica[341].

O fim do capítulo pode deixar-nos perplexos. Após uma evocação da paciência apostólica, da constância de São Paulo, insiste-se sobre uma prática bem exterior: o emprego de um crucifixo, a levar sobre o lado esquerdo, de 9 a 10 centímetros de comprimento[342]. Encontramos aí, precisamente, um exemplo da maneira de proceder do Padre Chevrier.

Ele tem a sua intuição fundamental sobre o padre. Para que esta intuição não fique no domínio das ideias, é necessário que ela se realiza num gênero de vida. Para encontrar este gênero de vida, antes de dispor de uma experiência pessoal suficiente, o Padre Chevrier procura nos outros o que lhe poderia servir.

No caso presente, ele sonha em tomar emprestado o uso de certos religiosos e, sobretudo, de sociedades missionárias. Trata-se de ter constantemente consigo uma cruz bastante grande para poder servir-se dela[343], isto é, um instrumento destinado ao catecismo, ao anúncio de Jesus Cristo crucificado. Mas esta cruz é também um apelo: para realizar este ministério, é necessário assemelhar-se a Jesus Cristo levando a sua cruz[344].

De fato, se não levamos sempre sobre nós um crucifixo, frequentemente temos ocasião de ter um diante dos olhos, na igreja, sobre uma mesa de trabalho, na parede de um quarto. Será para nós rotina ou humilde prática apostólica?


A quarta condição para ser um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo é tomar a sua cruz[ooooo].

Doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre este ponto

Nosso Senhor diz: Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. (Mt 16,24).

Se alguém não toma a sua cruz e não me segue, não é digno de mim. (Mt 10,38).

Quem não leva a sua cruz e não me segue, não pode ser meu discípulo. (Lc 14,27).

Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, leva a sua cruz todos os dias e siga-me. (Lc 9,23).

Segundo estas palavras de Jesus Cristo, vemos que, para ser seu verdadeiro discípulo, é preciso primeiro tomar a sua cruz.

Que se não a toma, não se pode ser seu discípulo: condição essencial, que não apenas é preciso tomá-la, mas ainda, é preciso levá-la, e em terceiro lugar, é preciso levá-la cada dia.

Tudo isso está bem explicado nos textos precedentes.

O que é a cruz?

É o sinal do sofrimento.

Sinal geral que compreende toda a espécie de sofrimento.

Sinal da salvação, sinal da redenção, sinal do cristão e, sobretudo, do verdadeiro discípulo de Jesus Cristo.

A cruz é a pobreza, a renúncia às criaturas e a si mesmo[345].

É o sofrimento que há em observar a lei do Senhor, o jugo do Senhor.

É o jugo do Evangelho que nós vemos neste livro. É o conhecimento desta vida tão diferente da dos outros homens.

Esta cruz é Jesus que no-la apresenta e nos diz: Tomai o meu jugo sobre vós, o meu jogo é suave e a minha carga é leve.

Ubi amatur non laboratur aut si laboratur labor amatur[ppppp].

É o regulamento de uma casa.

São as perseguições do mundo que são preditas, os ódios do mundo, os espinhos.

A cruz é a salvação, é a glória.

Como se tornou gloriosa a cruz desde que Jesus Cristo a tomou e a levou!

Jesus apresenta a sua cruz às almas generosas.

É necessário tomar a sua cruz. Aceitar. Tomar voluntariamente.

Quando se é feito padre ou religioso, não é para levar uma vida agradável, mais cómoda do que os outros, do que as pessoas do mundo. Não. Bem longe disso; ao contrário, é para tomar uma cruz, e uma cruz mais pesada do que a das pessoas do mundo, para levar uma vida mais estrita, mais perfeita, mais penosa para a natureza[346][qqqqq].

Há que tomar a sua cruz, tomar a cruz que Jesus nos dá.

Cruz numa vida estrita e rigorosa, vida evangélica.

E esta condição é tão essencial que Nosso Senhor diz que aquele que não aceita esta cruz, que não toma a sua cruz, não pode ser seu discípulo.

Assim, pois, se não se quer aceitar, tomar esta cruz oferecida por Jesus Cristo, o Mestre, há que renunciar a isso.

Tomar a cruz é, pois, tomar a vida evangélica tal como Nosso Senhor no-la dá. É aceitar os sofrimentos que estão unidos a esta vida de pobreza, de renúncia, na renúncia às criaturas, na renúncia a si mesmo, de sacrifício, de entrega. Se se não aceita isso, não se pode ser seu discípulo.

Se alguém não toma a sua cruz, não é digno de mim. Deus não o quer para seu discípulo.

Com efeito, Nosso Senhor quer consigo almas corajosas, generosas. É necessário ter coragem de aceitar esta cruz que Nosso Senhor nos apresenta ou, então, renunciar a ela, porque Nosso Senhor não nos quer.

Non est me dignus[rrrrr].

Convite de Nosso Senhor Jesus Cristo a tomar a cruz

Nosso Senhor convida-nos a tomar a sua cruz.

Jugum meum suave est et onus meum leve[sssss].

Ele próprio tomou-a por nós.

É necessário tomá-la no seu seguimento. Ele próprio no-la apresenta.

Ecce ancilla Domini fiat mihi secundum verbum tuum[ttttt].

Cada um tem a sua cruz no mundo. Diferentes cruzes para cada posição

Cada um tem a sua cruz a tomar.

Cruz do cristão, cruz do soldado, do padre, do discípulo, do lavrador, do pai de família.

É necessário levar a sua cruz

Não se trata apenas de a tomar.

Pode-se tomar uma coisa e não a levar. Pode-se aceitar uma coisa e não fazer uso dela.

Porém, Nosso Senhor põe bem os pontos nos “is”.

“Quem não leva a sua cruz, não pode ser meu discípulo.” (Lc 14,27)

É necessário não somente aceitá-la, mas levá-la. Muitos aceitam, tomam a cruz mas não [a] levam.

Levar a cruz é realmente suportar os sofrimentos da cruz. Há os que tomam a cruz e a rejeitam, logo que ela doa um pouco. Não é isso. É necessário levá-la.

Tollite jugum meum super vos[uuuuu].

Quer dizer que é necessário levar os inconvenientes da vida apostólica.

É necessário levar os sofrimentos que são as consequências da pobreza, da renúncia às criaturas, a si mesmo, do ódio, do desprezo do mundo, das perseguições que são a consequência da nossa vida oposta ao mundo. Consequência de um regulamento de vida mais sério, duma vida de desprendimento, de renúncia e de sacrifício.

É necessário levar a sua cruz, quer dizer, suportar tudo isso com humildade, paciência, resignação.

Com alegria e amor, pois que é a cruz de Deus e é pela cruz que vamos ao céu, que glorificamos Deus na terra, que salvamos almas.

É levando a sua cruz que Jesus Cristo nos salvou e que ele próprio entrou na glória.

“Oportuit pati Christum et ita intrare in gloriam”[vvvvv]. (Lc 24,26)

“Quando eu for elevado na cruz, atrairei tudo a mim.” (Jo 12,32)

É necessário, pois, levar a cruz e levá-la com alegria e amor, pensando que é pela cruz que glorificamos Deus e ganhamos almas.

“Tollite jugum meum super vos.” (Mt 11,29)

É necessário dobrar as costas e carregar com ele.

Super vos[347]. (Mt 11,29)

Levar a sua cruz todos os dias

Nosso Senhor ajunta em último lugar:

Que leve a sua cruz cada dia!

Como pensa em tudo; como determina bem os nossos deveres!

É necessário levar a nossa cruz cada dia, todos os dias é necessário recomeçar.

Quando se a deixa, à noite, importa retomá-la de manhã e levá-la como na véspera e melhor do que na véspera.

Cada dia,

sem se cansar,

com perseverança,

se se a deixa cair,

é necessário retomá-la até ao fim.

Importa não se desencorajar no caminho da cruz.

Há sempre algo a sofrer, até à morte, e será necessário morrer na cruz, deixar-se pregar na cruz como Nosso Senhor; cair algumas vezes, mas levantar-se pela oração e continuar a sua marcha.

É necessária a perseverança.

Nosso Senhor diz-nos esta palavra porque a pobre natureza se revolta muitas vezes e que, frequentemente, ela se cansa e quer deixar a cruz.

Mas não. Quando se começou uma vez, é preciso perseverar e levar a sua cruz todos os dias.

Todos os dias fazer o catecismo,

todos os dias ser pobre,

todos os dias suportar o próximo, o mundo

resistir aos cansaços da natureza com a graça de Deus.

A cruz era o amor dos santos e sobretudo de São Paulo que amava tanto a cruz. Fazia dela a sua glória.

Mihi absit gloriari nisi in cruce Domini nostri Jesu Christi.[wwwww]

Levo impressas sobre o meu corpo as chagas do meu Senhor Jesus. (Gál 6,17).[xxxxx]

Comprazia-se na cruz.

Regozijava-se na cruz.[yyyyy]

A cruz é o amor dos santos.


Prática

Para nos recordar esta palavra de Nosso Senhor Jesus Cristo e o dever que esta palavra impõe,

Levaremos sobre o lado esquerdo uma cruz benzida e indulgenciada de 8 a 10 centímetros de comprimento (Cristo), para nos recordar esta grande verdade, beijaremos este Cristo, sobretudo de manhã e à noite e também durante o dia[348][zzzzz].

Quinta condição:
Seguir Jesus Cristo[aaaaaa]

Última condição a cumprir[349]. Quando se fala de seguir Jesus Cristo, pode-se ainda falar de condição? não se está mesmo no fim? Sim, sem dúvida, mas o Padre Chevrier não esquece o termo para o qual devem convergir os nossos esforços, o termo do desígnio de Deus. Este fim não será atingido senão quando Deus for tudo em todos[350]. Assim, seguir Jesus Cristo na vida presente é ainda uma condição para chegar ao termo ao qual Deus destina a criação.

No entanto, as páginas que se seguem, descrevem um cume de vida espiritual e apostólica, impossível de ultrapassar na terra; é a santidade realizada o mais que se pode na condição humana presente.

Vamos reencontrar muitas vezes os mesmos temas precedentes, porque o Padre Chevrier não se atém nunca rigorosamente a um plano. Porém estes temas são retomados também porque é necessário vê-los sob uma nova luz, na situação daquele que está liberto de tudo o que pode parar a nossa caminhada[351], plenamente livre no Espírito Santo.

Então, ele pode ir, percorrer, caminhar, subir, com Jesus Cristo, não deixá-lo nunca[352]. Estas páginas põem-nos em comunhão com o mistério da passagem, da Páscoa do Filho de Deus entre nós. Vindo de Deus, voltou a Deus e arrasta os seus discípulos atrás de si. Não está aí todo o Evangelho?[353].

Para que serve tomar em consideração um estado ao qual ninguém se atreverá a pensar que chegou? Precisamente, importa pensar nisso, porque se fazemos algo de bom, é na medida em que aspiramos a este estado. Segue-me, diz Jesus ao chamar o seu discípulo[354], e, inclusivamente, se ele diz de modo explícito: Vende o que tens, acrescenta sempre[355]: Segue-me[356].


Por outro lado, Jesus dizia aos seus discípulos: Vós que me seguistes[357]. Portanto, muitas coisas deviam ainda ser purificadas neles. Porém, com certeza, este estado tão perfeito em si mesmo, já está secretamente presente e atuante em nós.

Assim, mesmo se é ainda de modo visivelmente muito miserável, podemos, sem mais demora, esforçar-nos em seguir Jesus Cristo, sem ter cumprido as outras condições, desde que tenhamos a disposição essencialmente requerida: ter a vontade séria e eficaz de as cumprir e estar disposto a fazer todos os sacrifícios para as cumprir[358].

Para os capítulos desta última parte do Verdadeiro Discípulo, pode-se reencontrar um plano tipo, o qual, aliás, inspirou partes anteriores do livro.

Eis aqui o plano:

Exemplos de Jesus Cristo.

Ensinamentos de Jesus Cristo.

Resumo.

Exemplos de São Paulo.

Ensinamentos de São Paulo.

Resumo.

Práticas, isto é, aplicações para nós.

Este plano não foi nunca, por assim dizer, seguido completamente, porque, como nós já o dissemos, o Padre Chevrier nunca se obriga exatamente a manter o seu plano. Há que dizer também que a maior parte dos capítulos que se seguem ficaram inacabados. São bastante breves e as introduções correspondentes também o serão.

A ordem geral desta última parte é de assinalar. Esta ordem não é sem importância para apreender o pensamento do Padre Chevrier.

Começa-se pelo jejum e a oração de Cristo: com efeito, é sobre a permanência no deserto que se abre o que se chama a vida pública de Cristo. Trata-se de seguir Jesus Cristo anunciando o Evangelho. Do mesmo modo, toda esta última parte se ordena em torno do capítulo: Segui-me nas minhas pregações[359].

O jejum e a oração precedem a obra do pregador.

A mansidão, a humildade, a pobreza são disposições essenciais daquele que quer anunciar o Evangelho aos pobres.

É em comunhão com a caridade de Cristo para com os homens que há que realizar este ministério.

É necessário também preparar-se para suportar lutas, perseguições, sofrimentos que são as consequências inevitáveis do anúncio da palavra, pois que, será o mesmo para o discípulo como foi para o Mestre[360].

E tudo isso, um dia, para o discípulo, tem como resultado seguir o seu Mestre na sua morte para passar com ele à glória, junto do Pai.


[seguir Jesus Cristo]

É a quinta e última condição a cumprir para ser um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo.

Nosso Senhor coloca sempre esta condição, a última, para nos mostrar que não se pode cumpri-la sem ter cumprido as outras ou, ao menos, a vontade séria e eficaz de as cumprir e estar disposto a fazer todos os sacrifícios para as cumprir.

Com efeito, como se poderia seguir Nosso Senhor, tão elevado, tão perfeito, que é o homem espiritual e divino, se ainda somos totalmente carnais, totalmente ligados à matéria?

Como seguir um homem que anda tão depressa e que sobe tão alto se se está enredado por toda a espécie de coisas exteriores, temporais e se não se está desligado de tudo o que pode parar a nossa caminhada?

E ele põe sempre esta condição após ter assinalado as outras e é a que ele repete mais vezes.

Todas as vezes que fala das outras, acrescenta sempre aquela, para nos mostrar que aquela deve sempre seguir as outras e que ela é a coroa das outras e que é a principal e o fim para o qual devemos tender:

Seguir Jesus Cristo.

Ego sum via.

Segui-me. Segui-me. Segui-me.

É esta condição que mais glorifica Deus na terra e que é a mais útil ao próximo e que leva mais diretamente ao céu.

Ego sum via, veritas et vita[bbbbbb].

Quando Jesus escolheu os seus apóstolos, escolheu doze, para estar com ele, não o deixar, segui-lo por onde quer que fosse.


O que é seguir Jesus Cristo?

Seguir Jesus Cristo é ir por todo o lado onde ele vai, fazer tudo o que ele fez, é nunca abandoná-lo.

É imitá-lo em tudo o que é possível.

É seguir os seus exemplos, é parecer-se com ele o mais perfeitamente possível para se tornar um outro ele-mesmo: Sacerdos alter Christus.[cccccc]

É poder dizer como São Paulo: imitatores mei estote sicut et ego Christi.[dddddd] (1 Co 11,1)

É o que Nosso Senhor indica quando diz aos seus apóstolos: exemplum dedi vobis ut quemadmodum ego feci ita et vos faciatis.[eeeeee]

Seguir Jesus Cristo é ir com ele ao Presépio para ali se fazer pobre.

É ir com ele ao Egito para ali partilhar o seu exílio e a sua pobreza.

É permanecer com ele em Nazaré no silêncio para ali levar uma vida obscura e escondida.

É ir com ele ao deserto para ali jejuar e orar.

É percorrer as cidades e as aldeias para instruir os ignorantes, consolar os aflitos, curar os doentes e anunciar a salvação ao mundo.

É combater contra os vícios e lutar contra o mal com coragem, firmeza.

É caminhar no meio das perseguições e das injustiças do mundo.

É subir ao Calvário para aí morrer.

É deixar-se cravar na cruz e morrer nela para obedecer a Deus e salvar o mundo.

É ir para o céu com ele, porque disse que os que tivessem seguido na terra estariam ao lado dele no céu.

“Não é o discípulo mais do que o mestre, nem é o servo mais do que o seu senhor. Basta ao discípulo ser como seu mestre para ser perfeito.” (Mt 10,24-25)

Ego sum via. (Jo 14,6)


É não somente segui-lo exteriormente fazendo como ele fez, seguindo os seus exemplos, mas é também encher-se do seu espírito.

Hoc sentite in vobis quod et in Christo Jesu. (Fil 2,5).[ffffff]

Encher-se do seu espírito de humildade, de pobreza, de mansidão e de caridade: qui dicit se in ipso manere debet sicut ille ambulavit et ipse ambulare. (I Jo 2,6).[gggggg]

Também, seria pouca coisa contentar-se com o exterior, mas é preciso, sobretudo, encher-se do seu interior, para caminhar realmente nos seus traços e agir no mesmo sentido e no mesmo espírito[361].

Como seguir Jesus Cristo?

Com fé, amor e generosidade!

É o Verbo eterno, a Palavra de Deus visível.

Com fé. Eu sou o Caminho, a Verdade, a Vida. (Jo 14,16).

Se pode seguir alguém de perto, de longe ou de nenhuma maneira.

Eu sou a luz do mundo; aquele que me segue não anda nas trevas, mas terá a luz da vida. (Jo 8,12).

“Verbum vitae.” (1 Jo 1,1)

“Lux vera quae illuminat omnem hominem venientem in hunc mundum.” (Jo 1,9)

“Splendor patris. Candor lucis aeternae.” (Sb 7,26)

“In quo sunt omnes thesauri sapientiae et scientiae.”

In ipso inhabitat omnis plenitudo divinitatis corporaliter.[hhhhhh]

A quem iremos? vós tendes palavras de vida eterna. (Jo 6,68)[362].

Com amor. É o nosso Salvador.

Nós somos dele: chamou-nos, cumulou-nos dos seus benefícios, deu-nos tudo. É nosso Pai, nosso benfeitor.

Segui-me. Jugum meum suave et onus meum leve et invenientes requiem animabus vestris. (Mt 11,29).[iiiiii]

Com generosidade. O discípulo não é mais do que o mestre. (Lc 6,40).

Basta ao discípulo parecer-se com o seu mestre. (Mt 10,25).

Seguir-vos-ei por onde quer que fordes,

Estou pronto a morrer por vós.

Darei a minha vida por vós.

Vamos e morramos com ele.

Pode-se seguir alguém de perto, de longe; de longe, de perto, não.

Há três espécies de discípulos: os bons, os maus, os perfeitos.

Os bons fazem o necessário: lei; muito: bons párocos, bons vigários…

Os maus não fazem nada, escandalizam…

Os perfeitos que sentem a necessidade de seguir Jesus Cristo de mais perto, que são tocados pela sua pobreza, sua caridade, sua entrega, [seu] sacrifício e que procuram assemelhar-se a ele o mais possível… Mais do que a vida ordinária: isso não lhes basta… Que diferença entre estas almas santas, generosas e as outras! Como glorificam mais a Deus! Um verdadeiro discípulo glorifica mais a Jesus Cristo do que outros cem bons[363].

Nada de lentidão, desgosto, negligência.

Não de longe, mas de perto.

A glória de meu Pai é que vos torneis meus discípulos e deis muito fruto.

Como há que seguir Jesus Cristo.

Se examinamos as principais ações de Nosso Senhor Jesus Cristo, constatamos que para imitar Jesus Cristo há que segui-lo

no jejum e na oração,

na sua mansidão, na sua humildade e na sua pobreza,

na sua caridade para com os homens,

nas suas pregações,

nos seus combates,

nas suas perseguições,

nos seus sofrimentos,

e depois segui-lo-emos na sua glória.

Ego sum via.

Exemplum.

Sigamos Jesus Cristo.

1. Segui-me no meu jejum[jjjjjj]

O Padre Chevrier vê o jejum em relação com a missão apostólica, conforme aliás ao que se encontra na Bíblia.

As regras que dá parecem-nos rigorosas. Importa recordar que na época, a lei eclesiástica do jejum era ainda exigente. Era necessário principalmente jejuar todos os dias da quaresma, excepto aos domingos. O Padre Chevrier acrescenta a isso os jejuns então prescritos na Ordem Terceira de São Francisco. Porém, pede que se tome o necessário quanto à quantidade, para poder fazer o seu catecismo[364] e sente-se que as suas preferências vão para o jejum de caridade[365] quando não se tem tempo de comer e se prefere prestar serviço ao próximo de preferência a ir comer[366].

No centro de tudo, propostas à nossa meditação, há estas palavras de Jesus que tanto impressionaram o Padre Chevrier: O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou[367]. Que belas palavras![368].

Para este capítulo, o Padre Chevrier fez um texto redigido de seguida deixando, como de costume, uma margem na qual contava pôr possivelmente subtítulos, como se poderá ver na disposição tipográfica adotada; praticamente não fez este trabalho; não há senão dois subtítulos no fim.

É o primeiro exemplo que Jesus nos dá na sua vida ao começar a sua vida apostólica; antes de pregar, de ensinar, retira-se.

Jejuar é privar-se de alimento,

ou para obedecer a um preceito do Senhor,

ou para adquirir, comprar graça particular,

ou para cumprir um preceito de caridade que é mais urgente do que ir tomar o seu alimento.

É o que notamos na conduta de Nosso Senhor Jesus Cristo, nosso Mestre.

Três atos preparatórios para a sua missão.

– Batizado por João: receber a consagração de João, o testemunho [de João]. [A] missão de João era mostrar Jesus Cristo, pregar Jesus Cristo, anunciá-lo ao mundo… Ele vem, por assim dizer, receber a missão de João, pois que João era o seu precursor, o anjo[kkkkkk]… Não podemos agir sem missão… Era a sua consagração exterior.

– jejuar: despojamento da carne, corte de tudo o que é carnal, grosseiro, natural[llllll]

– Orar, homem espiritual pelo jejum e a oração. E desde logo vemo-lo depois de ter recebido o batismo, levado pelo Espírito Santo, ir para o deserto para ali passar quarenta dias no jejum e na oração.

Jejua, pois, nesta circunstância para obedecer à vontade de seu Pai e adquirir as graças de que tem necessidade para começar a sua grande missão na terra que é evangelizar os homens.

Assim, nós, quando temos alguma missão a realizar, devemos começá-la pelo jejum e a oração.

O próprio Espírito Santo diz: Bona esta oratio cum jejunio[mmmmmm].

Um dia os apóstolos não tinham podido expulsar um demônio impuro do corpo de um possesso e como eles perguntavam a razão disso, Nosso Senhor responde-lhes que este demônio não pode expulsar-se senão pelo jejum e a oração. (Mt 17,20).

Há, pois, graças que não podemos obter a não ser pelo jejum e a oração.

É o que Moisés fez na montanha onde jejuou durante quarenta dias e quarenta noites.

É o que João Batista fazia no deserto onde não vivia senão de gafanhotos e mel silvestre. (Mt 3,4).

Ana que não saía do templo, servindo a Deus, dia e noite, no jejum e na oração. (Lc 2,37).

E os próprios apóstolos, antes de impor as mãos a Paulo e a Barnabé, jejuaram e rezaram e, depois de ter jejuado e rezado, impuseram-lhes as mãos e deixaram-nos ir. (At 13,3).

E São Paulo recomenda aos padres mostrarem-se dignos ministros de Deus suportando com paciência as tribulações, as prisões, as necessidades e vivendo no trabalho, nas vigílias, nos jejuns e na castidade. (2 Cor 6,4).

E em todas as coisas nos tornamos recomendáveis como ministros de Deus por uma grande paciência nos males, nas necessidades, nas angústias, sob os golpes, nas prisões, nos motins, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns. (2 Cor 6,4).

Estive exposto a toda a espécie de trabalhos, de fadigas,

de numerosas vigílias, à fome, à sede, a repetidos jejuns, ao frio, à nudez. (2 Cor 11,27).

Quatro espécies de jejuns,

  1. Pode-se jejuar ou porque a lei manda,
  2. ou porque não se tem que comer,
  3. ou então porque se quer fazer penitência para obter algumas graças particulares,
  4. ou porque não se tem tempo para comer e se prefere prestar um serviço ao próximo do que ir comer.

Há o jejum voluntário pelo que alguém se priva de alimento para prestar serviço ao próximo.

É o jejum que nos impõe a caridade e o amor de Deus e das almas, pelo qual se prefere servir Deus e o próximo a tomar o seu alimento.

É [o] que Nosso Senhor exprime muito bem quando responde aos seus apóstolos que lhe dizem para comer: Tenho um alimento que vós não conheceis, o meu alimento é fazer a vontade de meu Pai. (Jo 4,34).

Que belas palavras! A vontade de seu Pai é o seu alimento. Quando os outros não pensam senão em comer, em comprar, em preparar o que devem comer, Jesus Cristo não pensa senão em fazer a vontade de seu Pai e esquece, por assim dizer, este alimento do corpo que nós procuramos tanto. A vontade de seu Pai está primeiro do que tudo; deixa tudo para realizar esta santa vontade.

Que belo exemplo para nós, nós que tememos tanto atrasar as nossas refeições, que falte um prato, a sobremesa!

Como se ocupava pouco deste alimento corporal! Sentado à beira do poço de Jacob, pede um pouco de água à Samaritana. (Jo 4,7).

Quando os apóstolos lhe trazem de comer, diz-lhes que tem um alimento que não conhecem. Alimento invisível que é o de fazer a vontade de seu Pai.

Passando ao longo dos campos de trigo com os apóstolos, estes machucam espigas nas suas mãos para as comer, porque tinham fome. (Mt 12,1).

Procura figos numa figueira porque tinha fome. (Mt 21,18)[369].

E muitas vezes não tinham tempo de comer porque a multidão de gente era tão grande que não podiam sair e contentavam-se, provavelmente, com um bocado de pão.

Na cruz, tem sede e não se lhe dá senão fel e vinagre.

Eis aí, assim, como vivia Nosso Senhor.

Procurava a vontade de seu Pai e a salvação do próximo primeiro que o seu próprio alimento.

E este jejum que impõe a caridade não é o menos agradável a Deus e vale mais do que aquele que é mandado e que frequentemente se faz só a metade ou com repugnância.

É este jejum de que fala São Paulo: jejum voluntário, jejum de caridade. (2 Cor 6,4).

Os santos não tinham hora para comer; comiam à pressa e comiam o que tinham, o que encontravam, o que podiam.

E nós, queremos sempre ser bem tratados, ter sempre um certo número de pratos, que não falte a sobremesa,

ter sempre a quantidade e a qualidade,

ter sempre a sua mesa bem posta, bem limpa, bem preparada, bem arranjada.

Nosso Senhor e os santos tinham umas vezes o que era preciso, outras faltava o necessário e faziam como podiam.

Scio esurire. Scio abundare[nnnnnn].

O mérito do jejum vem de que se faz um sacrifício real de si mesmo a Deus por obediência ou voluntariamente.

E quando esta privação se faz por um motivo de caridade para com o próximo, em que se priva para ser útil ao seu próximo, então há duplo mérito.

Quanto à abstinência, Deus mostra-nos a

sua necessidade e utilidade quando ele próprio a impõe a Adão o fazer merecer o céu por um ato de obediência e privação; ela é, pois, justa e legítima[oooooo].

Prática

Para seguir Nosso Senhor Jesus Cristo no seu jejum e entrar no seu espírito, observaremos, tanto quanto pudermos, os jejuns de preceito, os jejuns do pobre, os jejuns de caridade e a abstinência.

–     Jejuns de preceito: são os jejuns da Igreja: quaresma, vigílias, quatro têmporas; jejuns da Ordem Terceira, advento (quarta e sexta-feira somente), vigílias de São Francisco e da Imaculada Conceição e todas as sextas-feiras do ano.

–     Jejum do pobre: saber jejuar quando não se tem de quê; comer o que se nos dá, uma vez por mês, no dia de retiro mensal.

–     Jejum de caridade, quer dizer, que não teremos medo de atrasar a nossa refeição, quando isso for necessário para exercer a caridade, de levantar-nos da mesa para ir desempenhar um outro dever de caridade para com o próximo. É necessário esquecer-se de si mesmo para os outros. Nestes casos, para não estorvar ninguém e não ser, para os outros, um motivo de descontentamento ou de incómodo, dever-se-á comer a sua parte que deve ficar sobre a mesa e que se terá o cuidado de não retirar. Se está fria, tanto pior. E, se se quer, far-se-á bem em lavar o seu prato e o copo para não causar incómodo a ninguém por sua causa. É necessário saber sofrer e não fazer sofrer ninguém.

Abstinência: quarta-feira, sexta-feira e sábado.

Observância sobre o jejum.

Nos dias de jejum tomaremos o «frustrulum»[pppppp] permitido pela Igreja.

Servir-se-á sempre, nos dias de jejum, de manhã, pão, vinho e fruta e cada qual tomará o que lhe for necessário quanto à quantidade, para poder fazer o seu catecismo.

É necessário empenhar-se sobretudo em que haja uma diferença entre os dias de jejum e os outros dias; que o serviço da manhã seja totalmente diferente e represente um sinal de penitência.

Se a saúde não permite jejuar, pode-se tomar a mesma quantidade de alimento, mas que seja diferente, isto é, mais pobre, mais simples, mais espessa: pão, vinho, fruta, mas nada cozido, preparado expressamente e, então, se entra no espírito de penitência.

Os estômagos mais delicados, mais débeis poderão tomar chocolate ou café só, em quantidade suficiente para cumprir os deveres do seu cargo, porque os deveres de caridade, os ofícios espirituais, os empregos do seu cargo são mais excelentes do que o jejum. Se não se pode jejuar materialmente, pode-se sempre fazer o jejum espiritual.

Quando não se pode jejuar absolutamente, dir-se-á, de joelhos, antes do almoço, no seu quarto ou no refeitório, se se pode, um Pater e uma Ave Maria de joelhos, de braços em cruz, para nos lembrar que se comemos é por graça e por necessidade e que é preciso pedir perdão a Deus antes de o fazer.

2. Segui-me na minha oração[qqqqqq]

O Padre Chevrier nunca deu muitas explicações sobre o que é a oração em si mesma, quer seja no Verdadeiro Discípulo ou em outra parte. Prefere mostrar-lhe os resultados, os bons efeitos da oração[370]. Estes efeitos culminam na transfiguração daquele que reza, é cada vez mais transformado à imagem de Cristo[371]. Encontramo-nos, assim, numa perspectiva simultaneamente apostólica e contemplativa.

Como aprender a orar? O Padre Chevrier coloca-nos simplesmente diante dos exemplos e dos ensinamentos de Jesus Cristo. É à força de olhar, de escutar Jesus orando que se pode descobrir em si a oração.

Uma outra preocupação do Padre Chevrier é a de vivificar os exercícios habituais de oração. Foi assim que ele fez sempre, seja em relação às crianças da Primeira Comunhão, seja em relação ao público da capela do Prado, seja para com os padres e seminaristas da casa. Não procurou especialmente criar novas fórmulas de orações mas fez muitas tentativas para adaptar as fórmulas correntemente empregadas à sua volta, particularmente o Rosário e a Via Sacra. Nos seus esforços de adaptação quer pôr em primeiro plano o conhecimento de Jesus Cristo, a meditação dos mistérios de Cristo. As fórmulas de orações são utilizadas para ajudar e sustentar esta meditação e, em caso de necessidade, são adaptadas para melhor o conseguir.

Para a celebração do Ofício divino a que os padres estão obrigados, percebe-se uma preocupação análoga. Propõe intenções de oração para cada parte do Ofício[372]. É uma tentativa para mostrar a unidade que deve existir entre a oração do padre e a sua atividade apostólica.

Pode-se perceber uma outra preocupação. Na época do Padre Chevrier, o costume era que um bom padre dissesse, de tarde ou à noite, matinas e laudes que deveriam ser a oração noturna e o ofício da manhã. No início do seu dia, reza de seguida Prima, Tercia, Sexta e Noa, que deveriam ser repartidas no decurso do dia, e, no princípio da tarde, Vésperas e Completas, que são, de fato,


dois ofícios da noite. O Padre Chevrier não pensa em reagir contra esta deslocação anormal; porém, as orações que propõe ao levantar, o Cântico das criaturas[373] e o salmo 50,são como um resumo do Ofício de Laudes e as orações previstas para o deitar são diversas peças do Ofício de Completas.

Aliás, encontra-se, no Padre Chevrier, este desejo de vida litúrgica adaptada. Quando se trata de iniciar os seminaristas no estudo pessoal do Evangelho, propõe fazê-lo em conformidade com o quadro do ciclo litúrgico anual. Na formação catequética  das crianças do Prado ele tinha o desejo de os fazer participar na missa de tal maneira que não se aborrecessem (pelo menos demasiado!) e, sobretudo, que descobrissem na missa a presença de tudo o que aprendiam no catecismo.

É um instinto apostólico muito seguro que lhe dava estas preocupações, porém a vida litúrgica da época não lhe facultada, por assim dizer, nenhum meio adaptado e ele não era capaz de ser um precursor neste campo, a não ser pelo desejo.

A oração é um dos deveres mais importantes da religião. Portanto temos de examinar bem como Nosso Senhor o exerceu a fim de que possamos fazer o mesmo.

Retira-se durante quarenta dias no deserto para aí jejuar e rezar

Ora, Jesus, cheio do Espírito Santo, volta do Jordão e imediatamente o Espírito impeliu-o para o deserto a fim de ser tentado pelo diabo e estava entre os animais e ali ficou quarenta dias e quarenta noites. (Lc 4,1).

Levanta-se muito cedo para ir orar num lugar deserto

Quando amanheceu, Jesus, tendo-se levantado muito cedo, saiu e foi-se embora para um lugar deserto e aí, orava. E os seus apóstolos procuravam-no e, tendo-o encontrado, foi com eles. (Mc 1,35).

Retira-se da multidão e vai rezar no deserto

Depois dos seus milagres, quando a multidão afluía de todas as partes, ele retirava-se para o deserto e ali orava. (Lc 5,16).

Orava no caminho com os seus discípulos

Quando ia a caminho, mesmo com os seus discípulos, às vezes ficava só, à distância, e rezava. (Lc 9,18).

Retira-se à noite para o jardim das oliveiras para aí rezar

De dia, Jesus ensinava no templo; mas, de noite, saindo, retirava-se para o monte das oliveiras para orar e todo o povo vinha logo de manhã ter com ele ao templo, para o escutar. (Lc 21,37).


Retira-se para um alto monte para orar

Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e conduziu-os só a eles a uma alta montanha, à parte e subiu à montanha para orar, e enquanto orava, o seu rosto tornou-se totalmente outro e foi transfigurado diante deles. (Lc 9,28).

Os seus apóstolos vendo-o orar sempre, pediram-lhe como se devia orar

Uma vez em que ele orava num certo lugar, um dos seus discípulos, após ele ter terminado, disse-lhe: Senhor, ensina-nos a orar, tal como o próprio João ensinou aos seus discípulos. (Lc 11,1).

Ele ora após o seu Batismo

E eis que, após o seu batismo, enquanto Jesus estava em oração, os céus abriram-se-lhe. (Lc 3,21)

Ora após a Santa Eucaristia

No jardim das oliveiras, ora longamente de joelhos, de fronte prostrada, derramando lágrimas de sangue e repetindo sempre a mesma oração

E, tendo-se adiantado um pouco, afastou-se dos seus discípulos à distância de um tiro de pedra, e, tendo-se posto de joelhos, prostrou-se com a face por terra e pedia que, se fosse possível, se afastasse dele esta hora.

Então apareceu a Jesus um anjo do céu, confortando-o; e ele, entrando em agonia, orava mais longamente; e veio-lhe um suor como gotas de sangue escorrendo até ao solo. (Lc 22,43).

Ora de braços estendidos sobre a cruz

Durante três horas, ora de braços estendidos sobre a cruz.

Instrução que Nosso Senhor Jesus Cristo dá aos seus apóstolos sobre a oração.

Quando orardes, não sejais como os hipócritas que gostam de orar de pé nas sinagogas e no canto das praças para serem vistos pelos homens.

Na verdade, eu vo-lo digo que já receberam a sua recompensa. (Mt 6,5)

Orar em segredo.

Mas tu, quando orares, entra no teu quarto e, de porta fechada, ora a teu Pai em segredo e teu Pai que vê no segredo, te recompensará. (Mt 6,6)


E sem muitas palavras

Quando orardes, não multipliqueis as vossas palavras como os pagãos que pensam que é à força de palavras que serão escutados. Não os imiteis porque o vosso Pai sabe do que tendes necessidade, antes de lho pedirdes.

Assim sendo, eis como deveis orar:

Pai Nosso que estais nos céus… (Mt 6,5-9).

É necessário orar sempre

Jesus disse ainda aos seus discípulos que é preciso orar sempre e nunca se cansar de o fazer. (Lc 18,1).

Adorar em espírito e em verdade.

Jesus diz à Samaritana que o interrogava acerca do lugar onde se devia adorar:

Chegou a hora, e é já, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade, porque o Pai deseja.

Deus é espírito e os que o adoram, devem adorá-lo em espírito e em verdade. (Jo 4,23).

Que a oração comum é muito poderosa

De novo vos digo que se dois de entre vós se puserem de acordo na terra, qualquer coisa que peçam lhes será dada por meu Pai que está nos céus, porque onde estão dois ou três reunidos em meu nome, eu estou no meio deles. (Mt 18,19).

Orar em nome de Jesus Cristo

E tudo o que pedirdes a meu Pai em meu nome, eu o farei, a fim de que o Pai seja glorificado no Filho. (Jo 14,13).

Não pedistes nada em meu nome: pedi e recebereis.

Repreensão de Jesus aos seus apóstolos

Simão, dormes! Nem sequer pudestes vigiar uma hora comigo, porque dormis?

Levantai-vos! Vigiai e orai para que não entreis em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca. (Mt 26,40).

Bons efeitos da oração

Fortifica-nos, preserva contra as tentações

Vigiai e orai para não cair em tentação. (Mt 26,41).

Expulsa o demônio impuro

Este demônio não se expulsa senão com o jejum e a oração, diz Nosso Senhor aos seus apóstolos.

Tudo se obtém pela oração

Tudo o que pedirdes a meu Pai em meu nome, eu o farei.

Dá-nos o Espírito Santo

Depois do seu batismo, enquanto Jesus orava, o Espírito Santo veio sobre ele e repousou sobre ele.

Transfigura-nos

Enquanto Jesus estava em oração no Tabor, o seu rosto foi transfigurado e tornou-se totalmente outro.

Exemplos dos apóstolos e dos santos

Os apóstolos deixam tudo para dedicar-se à oração e à pregação.

São Paulo orava dia e noite, por ele e seus fiéis.

Resumo deste capítulo sobre a oração

Nosso Senhor Jesus Cristo retira-se durante quarenta dias para o deserto, para ali jejuar e orar.

Levantava-se de manhã cedo para ir orar num lugar afastado.

Retira-se da multidão para ir orar no deserto.

Orava a caminho, retirando-se um pouco dos seus discípulos.

Retira-se de vez em quando, durante a noite, para o jardim das oliveiras para ali orar.

Retira-se para um alto monte para ali orar.

Os apóstolos, vendo-o muitas vezes orar, pedem-lhe que ele os ensinasse a orar.

Ele ora após o seu batismo.

Ora após a Santa Eucaristia.

No jardim das oliveiras, ora de joelhos, de fronte prostrada na terra, com lágrimas e repetindo sempre a mesma oração.

Ora de braços estendidos sobre a cruz.

Ensina-nos que é preciso orar no silêncio e em segredo,

que é necessário orar sempre,

que é necessário orar em espírito e em verdade,

que a oração comum é muito eficaz.

que é necessário orar em nome de Jesus Cristo.

Censura que faz aos seus apóstolos por não orarem.

Que a oração nos fortifica contra as tentações.

Que a oração expulsa o demônio.

Que a oração obtém tudo.

Que nos dá o Espírito Santo.

Que nos transfigura.

Que os santos não cessavam de orar a exemplo de Nosso Senhor.

Convida os seus apóstolos, de vez em quando, a ir descansar e orar.

Não há que espantar-se se se vê Nosso Senhor Jesus Cristo orar tão frequentemente, tão longamente e retirar-se muitas vezes para orar e nos dar o exemplo de uma oração tão assídua; é que a vida sobrenatural é tão alta, a prática das virtudes evangélicas tão difícil à natureza, que temos necessidade de tantas graças para as praticar, como nós o vamos ver nas virtudes sublimes de mansidão, de humildade, de caridade, de perseguição[rrrrrr], que é necessário grandes graças para chegar a elas.

Prática

Ao levantar-nos, recitaremos o salmo Benedicite omnia opera Domini Domino.[ssssss]

Ao lavar-nos, o salmo Miserere mei[tttttt].

Faremos uma hora de oração por dia, três quartos de hora de manhã e um quarto de hora de tarde.

Celebraremos a santa missa com o maior respeito, não omitindo nunca a preparação e a ação de graças, sem uma grave necessidade e suprindo-se durante o dia, se não se pôde fazer a ação de graças imediatamente.

Recitaremos em conjunto ou separadamente, conforme a possibilidade, o ofício divino, com dignidade, devoção e atenção[uuuuuu] cumprindo exatamente as rubricas do breviário, levantando-se ou pondo-se de joelhos nos lugares indicados, fazendo a pausa nos versículos e tomando em cada hora canónica uma intenção particular.

Matinas, para adorar a Santíssima Trindade: infiéis.

Prima, incarnação: famílias.

Tércia, Espírito Santo: Igreja.

Sexta, Jesus Cristo ensinando; pregadores.

Noa, Paixão: pecadores.

Vésperas, Maria, mãe das dores: aflitos, doentes.

Completas, boa morte: moribundos, purgatório, agonizantes.

Horas menores, antes das 9 horas da manhã.

Vésperas, às 2 horas.

Matinas e Laudes ao entardecer.

Não há que atrasar o seu breviário e reenviá-lo para a tarde, é negligenciar o dever da oração, expor-se a dizê-lo mal e para se desembaraçar dele; como dizer bem o seu breviário quando se trabalhou todo o dia e se está cansado; importa começar o dia pela oração.

Após o almoço, às oito e meia, pediremos o Espírito Santo recitando sete Ave Marias em honra dos sete dons do Espírito Santo, e o Veni Creator ao qual acrescentamos a oração.

Orações antes e após as refeições:

Pater, Benedicite, Agimus tibi.

Pater, Benedicamus.

Todos os dias uma parte do rosário.

À noite, às quatro e meia, ou a uma outra hora conveniente, um quarto de hora de visita ao Santíssimo Sacramento.

Todas as noites, a oração ordinária, exame, ato de contrição, ladainha da Santíssima Virgem, de profundis, três Ave Marias, Lembrai-vos, invocações ordinárias.

Ao deitar-se: in manus tuas, salva nos, dignare, oração, benedicamus.

Cada semana

Recitaremos o nosso rosário inteiro em particular,

faremos a nossa Via-Sacra,

faremos a Hora Santa, das 9 às 10 horas, ou das nove e meia às dez e meia, uma vez por semana, cada um no seu dia marcado.

Cada mês

Tomamos um dia no início de cada mês para fazer o retiro mensal; pode-se fazê-lo em casa continuando os seus trabalhos ou na capela de Saint-Fons, ou em qualquer outra parte, pedindo esmola.

Nas festas de Nosso Senhor e da Santíssima Virgem, trataremos de recitar o rosário inteiro, se tivermos tempo.

Nas festas da Paixão, faremos a nossa Via-Sacra.

Durante o mês de Maio, trataremos de recitar cada dia o rosário inteiro, a menos que os nossos trabalhos nos impeçam de o fazer.

Cada ano

Retirar-nos-emos ao menos durante oito dias para fazer um retiro sério, para nos retemperar no fervor e no amor de Deus e retomar os nossos deveres com mais coragem e fidelidade.

Rezaremos algumas vezes de braços em cruz ou de fronte prostrada na terra, à imitação de Nosso Senhor Jesus Cristo e solicitar, para nos humilhar diante de Deus e

solicitar, para nós e para o próximo, as graças tão grandes de que temos necessidade para nós e para os outros.

É o espírito de oração que é necessário ter.

Ter o espírito de oração é ser levado à oração naturalmente; é sentir a necessidade dela; é fazê-la espontaneamente e compreender a necessidade que temos da graça de Deus para cumprir os nossos deveres tão elevados e tão grandes e, ao mesmo tempo, tão difíceis para a pobre natureza.

Pode-se orar sem ter o espírito de oração.

3. Segui-me na minha mansidão[vvvvvv]

O capítulo sobre a mansidão é fácil de compreender.

A mansidão é o caráter particular do Salvador[374], do Messias dos pobres. Esta mansidão revela a força de uma alma capaz de repreender severamente, como Jesus, os que, pela sua dureza e suas exigências, impedem os pequenos e os pobres de encontrar o caminho da salvação. Os que são grosseiros e violentos extinguem a chama da fé[375].

Não nos detenhamos no plano relativamente superficial das questões de temperamento, de caráter. Trata-se de uma orientação essencial da ação apostólica. A mansidão é uma aptidão necessária ao missionário. No anúncio do Evangelho, é necessário proceder com mansidão[376].

Exemplos e doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a mansidão

Chama toda a gente a ir até ele e diz-lhes que não temam

“Vinde a mim, vós todos que trabalhais e estais sobrecarregados e eu vos aliviarei” (Mt.11,28)

Ele quer que saibamos que é manso e humilde de coração[377]

“Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração e encontrareis o repouso das vossas almas, porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve.” (Mt 11,29-30).

O profeta diz em que consiste a mansidão

Falando do seu Filho, Deus diz pela boca do profeta:

Eis o meu Servo que eu escolhi; o meu bem-amado em quem pus todas as minhas complacências.

Farei repousar o meu espírito sobre ele e anunciará a justiça às nações.

Não discutirá, não gritará e ninguém ouvirá a sua voz nas praças públicas.

Não quebrará a cana já fendida; não apagará a chama que ainda fumega; não será nem triste nem turbulento, até que assegure a vitória da justiça; e as nações porão nele a sua esperança. (Mt 12,17; Is. 42,1).


Não diz aos seus apóstolos senão o que podem suportar de momento

Nosso Senhor diz aos seus apóstolos em São João 16,12: Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, mas não podeis suportá-las por agora.

Quando vier o espírito de verdade, vos ensinará toda a verdade, porque não falará de si mesmo, mas dirá o que tiver ouvido e vos anunciará o que está para vir.

Não exige nada demasiado duro dos seus apóstolos, de momento

Nosso Senhor responde aos Judeus que lhe perguntam porque é que os seus discípulos não jejuam como os de João e os fariseus: os vossos discípulos bebem e comem; diz-lhes:

Podeis fazer jejuar os filhos do esposo enquanto o esposo ainda está com eles?

Enquanto têm o esposo com eles, não podem jejuar.

Virão dias em que o esposo lhes será tirado; quando tiverem chegado esses dias, então hão-de jejuar.

Comparação de que se serve para nos fazer compreender com que cuidado é necessário agir na condução dos outros

Diz-lhes ainda esta comparação: Ninguém põe um remendo de pano novo num vestido velho, porque arranca o tecido do vestido; o pano novo leva uma parte do velho e o rasgo fica maior; a peça do novo não convém ao velho.

Assim, ninguém põe vinho novo em odres velhos, de outro modo, o vinho fará rebentar os odres e o vinho se derramará e os odres se perderão; o vinho novo deve pôr-se em odres novos e conserva-se um e outro; e ninguém, bebendo do vinho velho, não quer logo a seguir o novo, porque diz: O velho é melhor. (Mc 2,18 e paralelos).

Como Nosso Senhor responde aos fariseus que se escandalizavam porque os apóstolos tinham esmagado espigas para as comer em dia de sábado

Os apóstolos num dia de sábado tendo esmagado espigas nas suas mãos para as comer, os fariseus escandalizaram-se e vieram dizer a Jesus: Eis que os teus discípulos fazem o que não é permitido fazer nos dias de sábado.

E Jesus diz-lhes: Não lestes o que fez David quando se encontrou em necessidade e teve fome, assim como os que estavam com ele?

Como entrou na Casa de Deus, no tempo de Abiatar, príncipe dos sacerdotes, e comeu os pães da proposição que a ninguém era lícito comer, senão aos sacerdotes, e deu-lhes aos que estavam com ele.


Não ser severo com os outros, nem comandar o próximo

E dizia: o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado.

Ou, não lestes na Lei que os sacerdotes violam o sábado no templo nos dias de sábado e estão isentos de culpa?

Pois eu vos digo que há aqui alguém maior que o templo.

Eu quero a misericórdia e não o sacrifício

Porém se soubésseis o que quer dizer: Quero a misericórdia e não o sacrifício, não teríeis nunca condenado inocentes. (Mc 12,1).

Jesus reprova aos escribas e [aos] fariseus o impor aos outros um jugo pesado e insuportável

Jesus falou ao povo e aos seus discípulos, dizendo-lhes no seu ensino: os escribas e os fariseus sentaram-se na cadeira de Moisés. Guardai e observai tudo o que vos dizem; mas não façais o que eles fazem, porque dizem e não fazem.

Atam fardos pesados que ninguém pode levar e põem às costas dos homens, mas eles nem com um dedo os querem mover. (Mt 23,1).

Jesus repreende os seus apóstolos que impediam as crianças de virem até ele

Apresentam a Jesus crianças para que ele as tocasse, lhes impusesse as mãos e orasse.

Vendo isso, os apóstolos ameaçavam os que as apresentavam.

Jesus, vendo-os, indignou-se e, chamando-os a si, disse-lhes: Deixai estas criancinhas e não as impeçais de vir a mim, porque aos que são como elas pertence o reino dos céus.

Em verdade, em verdade vos digo, quem não receber o Reino de Deus como uma criança, não entrará lá. E abençoando-as, impunha-lhes as mãos e abençoava-as. (Mt 19,13 e paralelos).

Jesus repreende Tiago e João que querem fazer cair fogo do céu sobre a Samaria

Quando se aproximava o tempo em que devia ser levado deste mundo, pôs-se a caminho com um rosto decidido para ir para Jerusalém, onde devia consumar o seu sacrifício.

E enviava algumas pessoas à sua frente para anunciar a sua chegada. Estas pessoas, tendo partido, entraram numa aldeia de samaritanos para lhe preparar uma pousada; porém os deste lugar não o quiseram receber, porque

parecia que ele ia para Jerusalém para celebrar a Páscoa, o que não agradava aos Samaritanos que queriam que não se adorasse Deus senão no monte Garizim.

Tiago e João, seus discípulos, tendo visto a injúria que se fazia ao seu Mestre, disseram-lhe: Senhor, queres que mandemos fogo do céu que desça sobre essas pessoas e as consuma?

Mas, Jesus voltando-se, repreendeu-os dizendo-lhes: Vós não sabeis a que espírito fostes chamados; o Filho do homem não veio para perder os homens, mas para os salvar. Assim, foram-se embora para uma outra aldeia. (Lc 9,51).

Como recebe até mesmo Judas que o vem trair

Ora, o traidor tinha-lhes dado um sinal, dizendo: Aquele a quem eu beijar, é ele, agarrai-o e levai-o com precaução; e, tendo chegado, ele precedia-os.

De imediato, aproximando-se de Jesus para o beijar, diz: Salve Mestre. E beijou-o.

E Jesus lhe diz: Meu amigo, com que ideia vieste? Judas, é com um beijo que atraiçoas o Filho do homem? (Mt 26,50 e paralelos).

Como repreende Pedro que falta à mansidão ferindo à espada

Então os soldados e a multidão se adiantaram e deitaram as mãos a Jesus e prenderam-no.

Ora, os que estavam à volta dele, vendo o que ia acontecer, disseram-lhe: Senhor, e se feríssemos à espada? E, Simão Pedro, tirou a sua espada e, ferindo um servo do príncipe dos sacerdotes, cortou-lhe a orelha direita. O nome do servo era Malco.

Mas Jesus tomando a palavra diz: parai aí. E, tendo tocado a sua orelha, curou-a.

Jesus disse então a Pedro: Mete a tua espada na bainha, porque todos os que tiverem empunhado a espada, perecerão à espada.

Pensas que não posso rogar a meu Pai e que não me enviaria, de imediato, mais de doze legiões de anjos? Porém, como se cumprirão estão as Escrituras, pois que é assim que deve suceder? E o cálice que meu Pai me deu, acaso não o hei-de beber? (Mt 26,50 e paralelos).

Como Jesus repreende Pedro com mansidão e o faz expiar as suas três negações

Depois de comer, diz Jesus a Simão Pedro: Simão, filho de João, amas-me mais do que estes? Ele respondeu: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Diz-lhe Jesus: Apascenta os meus cordeiros.

Diz-lhe de novo: Simão, filho de João, tu amas-me? Ele respondeu-lhe: Sim, Senhor, vós sabeis que vos amo. Jesus diz-lhe: Apascenta as minhas ovelhas.

Diz-lhe uma terceira vez: Simão, filho de João, tu amas-me? Pedro entristeceu-se por lhe ter dito pela terceira vez: tu amas-me? ele respondeu-lhe: Vós conheceis todas as coisas, Senhor, sabeis que vos amo. Jesus diz-lhe: Apascenta as minhas ovelhas.

Em verdade, em verdade te digo, quando eras novo, tu próprio te cingias e ias para onde querias, mas quando fores velho, estenderás as tuas mãos e um outro te cingirá e te conduzirá para onde tu não queiras. (Jo 21,15).

Instrução de Jesus Cristo aos seus apóstolos sobre a mansidão

Eis que vos envio como ovelhas para o meio de lobos. Sede, pois, prudentes como as serpentes e simples como as pombas. (Mt 10,16).

Ouvistes o que foi dito: olho por olho e dente por dente, porém eu digo-vos: não resistais ao mal.

Mas se alguém te bateu na face direita, apresenta-lhe também a outra; e àquele que quiser levar-te à justiça para te tirar a túnica, deixa-lhe também o teu manto; e aqulele que te obrigar a andar com ele uma milha, vai com ele outras duas. (Mt 5,38).

Ouvistes o que foi dito aos antigos: não matarás e o que matar será submetido a julgamento. Porém eu digo-vos que quem se irar contra o seu irmão será submetido a julgamento; o que tiver chamado a seu irmão raca, será submetido a conselho; e aquele que lhe tiver chamado louco, será réu a geena do fogo. (Mt 5,21).

Graças, favores reservados aos que são mansos

Bem-aventurados os que são mansos, porque eles possuirão a terra. (Mt 5,5).

Resumo dos ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a mansidão

Por estes exemplos e por estas palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo vemos que:

–     Ele quer que saibamos acima de tudo que ele é manso e humilde de coração.

–     Ele chama toda a gente a si para aproveitar da sua mansidão.

–     O espírito de Deus repousou sobre ele e lhe comunicou a mansidão.

–     Deus achou-o tão manso e tão amável que pôs nele todas as suas complacências.


Em que consiste a mansidão

em não discutir, em não gritar,

em não fazer ouvir a sua voz nas praças,

em não quebrar a cana já fendida,

em não apagar a chama que ainda fumega,

em não ser nem triste, nem turbulento.

Explicação destas palavras[wwwwww].

Não discutirá. (Mt 12,9; Is 42,2)

Ele vem anunciar a justiça às nações, anuncia-o com autoridade e mansidão, Sim, sim, não, não[xxxxxx], tudo o mais vem do maligno. Na discussão, nasce sempre azedume, animosidade, apego às próprias ideias. Tudo isso vem do mal e é inteiramente oposto ao espírito de Deus, que é calma e que nunca se perturba e conserva a paz, a mansidão e a calma.

Não gritará. (Mt 12,19; Is 42,2)

Mansidão na voz: não haverá na sua boca estes estrondos de voz, estes gritos inúteis, estas palavras de cólera; antes, a sua voz será sempre mansa, calma, serena, moderada. O espírito de Deus não está nos gritos de voz, no barulho, nos ruídos; o barulho passa e não fica nada. O espírito de Deus está nos pensamentos, a doutrina e a virtude; virtus de illo exibat[yyyyyy]. As coisas de Deus fazem-se na calma, na paz, na mansidão. Fazer sem barulho, sem ruído. O bem não faz barulho e o barulho não faz bem.

Ninguém ouvirá a sua voz nas praças. (Mt 12,19; Is 42,2)

Não irá pelas praças fazer barulho para atrair gente. Atrairá tudo a si pela mansidão e não pelo barulho, o alvoroço, os cartazes ou todos estes meios humanos que são opostos ao espírito de Deus, que é um espírito manso, calmo, sereno.


Não quebrará a cana já fendida. (Mt 12,20; Is 42,3)

sentido natural

O seu caminhar e as suas maneiras serão tão mansas que não quebrará nada, nem sequer um objeto já fendido. Aquele que é grosseiro, pelo contrário, quebra tudo; age com grosseira, caminha com precipitação, tomba, quebra, rasga.

sentido figurado

A sua mansidão será tão grande em relação aos corpos e almas doentes que ao tocá-los, ao tratá-los, não lhes fará nenhum mal, mas, pelo contrário, os aliviará. Aquele que é grosseiro, ao contrário, faz mal, aumenta o mal; tem falta de precaução.

Não apagará a chama que ainda fumega (Mt 12,20; Is 42,3)

sentido natural

Saberá suportar sem se lamentar dos incómodos da vida; agirá com tanto cuidado e mansidão que reacenderá o fogo quase apagado

sentido figurado

Saberá suportar os incómodos do próximo sem se lamentar. Não extinguirá a pequena faísca de fé e de amor que permanece ainda na alma do próximo, mas saberá agir com tanta precaução e mansidão que a reacenderá e a fará reviver, lhe dará de novo a graça e a vida. Os que são grosseiros e altivos extinguem a faísca da fé. Que cuidado, que mansidão é necessário ter para com as almas!

Não será nem triste nem turbulento.

A mansidão estará desenhada no seu rosto, que não será nem triste nem turbulento. Mas o seu rosto será manso, afável; tudo nele respirará amabilidade, a atração, e as almas irão a ele com confiança e alegria. Um ar triste e severo afasta; é necessário fazer desaparecer estes ares tristes, severos, austeros; é necessário também evitar ser turbulento, agitado, apressado, correr de um lado para o outro; esta agitação, esta pressa é também oposta à mansidão e afasta a gente.

e as nações esperarão nele.

Como é manso em relação aos seus apóstolos[zzzzzz].

Não lhes diz as coisas senão com medida e gradualmente.

Não exige nada demasiado penoso à natureza no começo.

Ensina-lhes com que cuidado é necessário conduzir-se em relação aos outros.

Condena a severidade dos fariseus que acusam os apóstolos de pecado por terem esmagado espigas num dia de sábado, tendo fome…

O seu princípio de conduta é este: eu quero a misericórdia e não o sacrifício.

Reprova aos fariseus querer impor aos outros um jugo intolerável que eles próprios não querem levar.

Repreende os apóstolos que tinham falta de mansidão a respeito das criancinhas.

Repreende Tiago e João que querem fazer cair fogo do céu sobre uma aldeia da Samaria.

Como recebe Judas com mansidão.

Como repreende Pedro quando fere com a espada.

Como Jesus faz expiar a Pedro as suas três negações.

Quer que levemos a mansidão ao ponto de nos parecermos aos cordeirinhos, até não resistir ao mal,

até apresentar a face esquerda se alguém nos bate na direita,

a dar a nossa veste de preferência a ir para a justiça,

a dar dois mil passos com aquele que nos pede mil,

a nunca nos encolerizarmos,

a não dizer nenhuma palavra injuriosa ou que fira.

Conclusão

Àquele que agir assim, Deus promete a terra.

Regras de conduta em relação à virtude da mansidão.

Para conformar a nossa conduta com este espírito de mansidão que vemos em Jesus Cristo,

Recordar-nos-emos frequentemente que a mansidão é uma virtude que agrada singularmente a Deus e que sobretudo atrai as almas.

Evitaremos discutir com quer que seja; elevar demasiado a voz ao falar; andar com ruído e precipitação.

Faremos de modo a tratar todas as coisas com cuidado e mansidão para não quebrar nada, nem esmagar, ou partir.

Suportar os incômodos da vida e também os do próximo,

evitar todas as palavras ou ações grosseiras para não ofender os fracos,

conservar sempre um rosto alegre e afável com toda a gente,

não impor aos outros um jugo pesado e insuportável,

ter atenções para com cada pessoa em particular,

receber toda a gente com bondade e mansidão,

nunca ferir ninguém.

não fazer mal a quem quer que seja,

considerar-nos como cordeiros no meio de lobos,

levar a mansidão até ao ponto de não resistir ao mal,

até apresentar a face esquerda a quem nos bateu na direita,

até nos deixar despojar da nossa veste,

até caminhar dois mil passos com aquele não nos pede senão mil,

a não pronunciar nunca nenhuma palavra injuriosa ou que fira.

A mansidão é oposta a todo azedume, a todo o arrebatamento, a toda grosseira, palavra, ameaças, cólera, etc…

A mansidão é uma virtude que suporta tudo do próximo, sem se aborrecer e se irritar e que não faz sofrer nada a ninguém.

Patiens. Sabe sofrer.

Que Deus nos ajude a praticar esta bela virtude!

4. Segui-me na minha humildade[aaaaaaa]

«Eu sou manso e humilde de coração», disse Jesus[378]. Mansidão não vai sem humildade, é evidente. Aliás Jesus exprime-se segundo o costume judaico que gosta muito de dizer uma mesma coisa sob duas palavras diferentes.

Temos aqui um abundante estudo do Evangelho e de São Paulo que o Padre Chevrier não teve tempo de pôr perfeitamente em ordem.

Jesus chamou frequentemente os apóstolos à humildade. Isso dirige-se, pois, também aos padres e a todos os que são enviados em nome de Cristo.

Esta humildade é a de Jesus, Filho de Deus, bem convencido da sua missão e feliz de ser homem entre os homens. Ele amou este gênero de vida[379]. É a humildade do enviado de Cristo junto dos pobres que escolherá, de preferência a companhia dos pobres e dos pecadores, não por imposição mas por atração e por amor[380].



Ensinamento de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a humildade

Vede os exemplos de humildade de Nosso Senhor [pag. 390][bbbbbbb].

Não se deve fazer as próprias ações para serem vistas pelos homens

Tomai cuidado em não praticar a vossa justiça diante dos homens, para serdes vistos por eles, de outro modo, não tereis a recompensa do vosso Pai que está nos céus. (Mt 6,1)

Sua justiça, ações religiosas

Assim, quando deres esmola não toques a trombeta como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas para serem louvados pelos homens.

Em verdade, em verdade vos digo, já receberam a sua recompensa.

Quanto a ti, quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a direita, a fim de que a tua esmola seja feita no segredo e teu Pai que vê no segredo te recompensará.

E, quando rezardes, não sejais como os hipócritas que gostam de rezar de pé nas sinagogas e no canto das praças para serem vistos pelos homens.

Em verdade, em verdade eu vo-lo digo, já receberam a sua recompensa.

Porém tu, quando rezares, entra no teu quarto e, com a porta fechada, ora a teu Pai em segredo, e teu Pai que vê no segredo, te recompensará.

Quando jejuardes, não vos mostreis tristes como os hipócritas, porque desfiguram os seus rostos para mostrar aos homens que jejuam.

Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa.

Quanto a ti, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para não mostrar aos homens o teu jejum, mas a teu Pai que está presente às coisas escondidas, e teu Pai que vê as coisas escondidas, te recompensará. (Mt 6,1-18).


Importa escolher o último lugar

Jesus diz esta parábola aos convidados, ao ver como escolhiam os primeiros lugares à mesa.

Quando fores convidado para umas bodas, não te ponhas no primeiro lugar, não seja que alguém mais considerado do que tu tenha sido convidado e aquele que te convidou, não venha e te diga: Dá o lugar a este e que tu então, envergonhado, vás ocupar o último lugar.

Mas quando fores convidado, vai pôr-te no último lugar, a fim de que, quando vier aquele que te convidou, te diga: Amigo, vem mais para cima. Então, será uma honra para ti, diante dos que estiverem à mesa contigo. Porque quem se exalta será humilhado (ou abaixado) e quem se humilha (ou se abaixa) será exaltado. (Lc 14,7-11).

Tomar o último lugar sempre, por espírito de humildade, pensando que os outros valem mais do que nós e são mais dignos do que nós. Porque só Deus é que vê e conhece os homens e o interior. Os títulos e dignidades não são nada diante de Deus. Por caridade: deixando aos outros os lugares mais cómodos, os mais confortáveis, os mais agradáveis, onde se pode ver melhor, melhor…; agradar ao seu próximo. Nosso Senhor condena esta corrida a colocar- se bem, a arranjar-se bem; corre-se para ser os primeiros, para ser o primeiro, escolher… em todos os lugares.

Escolher o último lugar na terra para ter o primeiro no céu

E no século futuro, será o mesmo: muitos que eram os primeiros serão os últimos e muitos que eram os últimos serão os primeiros. (Mt 19,30); Mc 10,31).

Nosso Senhor diz isso dos que tiverem deixado tudo por ele na terra e que tiverem sido os últimos no mundo, humilhados, desprezados, que tiverem sido postos em último lugar no mundo, segundo o mundo; eles serão os primeiros no céu.

Jesus falou ao povo e aos seus discípulos e diz-lhes no seu ensino: Na cadeira de Moisés sentaram-se os escribas e os fariseus. Fazei, pois, e praticai o que vos dizem, mas não imiteis as suas obras; porque dizem e não fazem. Atam fardos pesados que não se pode levar, e põem-nos às costas dos homens; e eles próprios não querem mover nem com um dedo. Fazem todas as suas obras para serem vistos pelos homens.

Evitar mostrar-se nos seus trajes, parecer, mostrar-se, tomar os primeiros lugares

Estai atentos: guardai-vos dos escribas, que gostam de passear com longas vestes; alargam as suas filatérias e alongam as borlas dos seus mantos.

Gostam de sentar-se nos primeiros lugares nas sinagogas e nos primeiros lugares nos banquetes,


ser saudados

de ser saudados na praça pública, (Mt 23,7)

Apras-lhes os nomes, os títulos

de ser chamados mestres pelos homens.

Devoram as casas das viúvas a pretexto de longas orações, fingindo rezar longamente.

Esses homens serão submetidos a um juízo mais rigoroso, a uma condenação mais severa. (Mc 12,40)

Evitar os títulos e os nomes honoríficos, não aceitar os títulos de pai e de mestre, se alguém no-los dá, pensar que não há senão um Pai que está no céu e um Mestre, Jesus Cristo

Quanto a vós, não queirais ser chamados mestres, porque um só é o vosso mestre e vós sois todos irmãos. E não chameis Pai a ninguém sobre a terra, porque um só é o vosso Pai, o que está nos céus.

Que também não vos chame de mestres, porque um só é o vosso Mestre, o Cristo.

Aquele que é o maior entre vós, será vosso servo.

Porque aquele que se exaltar será humilhado e quem se humilhar será exaltado.

Vale mais ser perseguido, humilhado do que ser louvado, aplaudido

Ai de vós, quando os homens vos aplaudirem e disserem bem de vós. (Lc 6,26).

Sereis felizes, quando os homens vos odiarem, vos separarem, disserem injúrias e rejeitarem o vosso nome como mau, por causa do Filho do homem. (Lc 6,22).

Parábola do fariseu e do publicano

Jesus diz esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos julgando-se justos e desprezavam os outros.

Dois homens subiam ao templo para orar: um era fariseu e o outro publicano.

Ele compara-se aos outros

O fariseu, de pé, orava assim no seu interior: Ó Deus, dou-te graças, porque não sou como o resto dos homens que são ladrões, injustos, adúlteros, nem também como este publicano.

Está contente com o que faz, confia em as suas ações

Jejuo duas vezes por semana; pago o dízimo de tudo o que possuo. E o publicano, mantendo-se afastado, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tende piedade de mim, que sou um pecador.

Eu vo-lo digo, este voltou justificado para sua casa ao contrário do outro. Porque quem se exalta, será humilhado e quem se humilha será exaltado. (Lc 18,10).

Somos apenas servos inúteis

Quem de vós, tendo um servo a lavrar ou a apascentar gado lhe diz logo que regressa do campo: Vem depressa e põe-te à mesa; e não lhe dirá, ao contrário: prepara-me o jantar e cinge-te e serve-me até que tenha comido e bebido e, então, depois comerás e beberás tu.

Deve gratidão a este servo por ele ter feito o que fora mandado? Penso que não.

Assim, vós também, quando tiverdes feito tudo o que vos foi mandado dizei: Somos servos inúteis: fizemos o que devíamos fazer. (Lc 17,7).

Não há que se orgulhar do próprio poder

Os setenta e dois discípulos regressaram com alegria dizendo: Senhor, até os demônios se nos submeteram ao vosso Nome. E ele disse-lhes: Eu via Satanás caindo do céu como um raio.

Eis que vos dei o poder de pisar as serpentes e os escorpiões, e todo o poder do inimigo, e nada vos poderá causar dano.

No entanto, não vos alegreis de que os espíritos vos estejam submetidos; antes, regozijai-vos de que os vossos nomes estejam escritos nos céus. (Lc 10,17).

Resposta de Jesus a Tiago e João que pedem para ser os primeiros no seu reino

A mãe dos filhos de Zebedeu aproximou-se de Jesus com os seus filhos, adorando-o e fazendo-lhe um pedido. Jesus disse-lhe: Que queres tu? (Mt 20,20)

Pedido de uma mãe natural[ccccccc]

Ela diz-lhe: Ordena que estes dois meus filhos se sentem, um à tua direita e outro à tua esquerda, no teu reino (Mt 20,21)

Astúcia dos apóstolos

E Tiago e João, filhos de Zebedeu aproximaram-se, dizendo: Mestre, queremos que tudo o que pedirmos, vós o façais por nós. Mas ele diz-lhes: Que quereis que faça por vós? (Mc 10,35)

Ideias terrestres, glória

E eles disseram: Concede-nos que nos sentemos, um à tua direita e outro à tua esquerda, na tua glória. Mas Jesus, respondendo diz-lhes: Não sabeis o que pedis. (Mc 10,37-38)

Podeis beber o cálice que eu bebo? ou ser batizados no batismo em que vou ser batizado? Eles responderam: Podemos. (Mc 10,38-39)

Sofrimentos

Porém Jesus disse-lhes: Na verdade, o cálice que eu bebo, vós o bebereis. (Mc 10,39)

Morte

e sereis batizados com o batismo com que eu próprio vou ser batizado.

Porém, sentar-se à minha direita ou à minha esquerda, não me pertence conceder-lhes, antes, é para aqueles para os quais foi preparado por meu Pai.

Ora, ouvindo isso, os dez começaram a indignar-se contra os dois irmãos Tiago e João.

Porém, Jesus chamou-os a si e disse-lhes: (Mc 10,39-42)

De que maneira devemos ser os primeiros entre os nossos irmãos

Sabeis que os que governam sobre as nações, as dominam e que os grandes exercem o poder sobre elas. (Mc 10,42)

Diferença

Entre vós não será assim, mas o que quiser ser o maior entre vós, seja vosso servo e o que entre vós quiser ser o primeiro, seja o servo de todos.

Porque, mesmo o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida pela redenção do mundo. (Mt 20,26-28; Mc 10,43-45).

As coisas de Deus escondidas aos sábios do século, são reveladas aos pequenos e humildes

Naquela hora mesmo, quer dizer, após os discípulos terem regressado da sua missão, estavam alegres por ver que os demônios se lhes tinham submetido à sua voz em nome de Jesus, Jesus exultou no Espírito Santo e disse:

Eu te bendigo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos prudentes e as revelastes aos pequenos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado. Todas as coisas me foram dadas por meu Pai e ninguém sabe quem é o Filho, senão o Pai e quem é o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quis revelar. Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração. (Lc 10,21)

Jesus ensina aos seus apóstolos em que deve consistir entre eles o primado e a preeminência

Levantou-se uma polémica entre os apóstolos: saber qual dentre eles devia ser considerado o maior. Porém, Jesus disse-lhes: Os reis das

nações dominam-nas e os que têm o poder sobre elas são chamados benfeitores. Quanto a vós, não façais assim; mas, aquele que é o maior entre vós, seja como o menor, e aquele que preside, como aquele que serve. Porque quem é o maior: aquele que está à mesa ou aquele que serve? não é aquele que está à mesa? Ora eu, estou no meio de vós como aquele que serve. Vós sois os que permanecestes comigo nas minhas tentações. (Lc 22,24-28).

Lição de humildade que dá Nosso Senhor Jesus Cristo aos seus apóstolos que discutiam sobre o primeiro lugar

Um pensamento veio ao espírito dos apóstolos: saber qual de entre eles era o maior.

Porém, Jesus vendo os pensamentos do seu coração, chegados a casa, perguntou-lhes: O que discutíeis no caminho?

Eles calavam-se porque, no caminho, tinham discutido entre si sobre qual era o maior.

E, tendo-se sentado, chamou os Doze e os discípulos aproximaram-se de Jesus e disseram-lhe: Quem pensas que é o maior no reino dos céus? E ele disse-lhes: Se alguém quer ser o primeiro, seja o último de todos e o servo de todos.

E Jesus, chamando uma criança, toma-a e coloca-a junto de si, no meio deles, e segurando-a nos seus braços, diz-lhes:

É necessário tornar-se como crianças

Em verdade vos digo, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus. Aquele que se fizer pequeno como esta criança, esse é o maior no reino dos céus e quem recebe em meu nome uma criança como esta recebe-me a mim; e quem me recebe, não me recebe a mim, mas aquele que me enviou. Aquele que é o menor, humilde, entre vós, esse é o maior (Lc 9,46).[381]

Como Nosso Senhor Jesus Cristo praticou a humildade

Na sua incarnação.

O verbo fez-se carne e habitou entre nós. (Jo 1,14).

Ele aniquilou-se a si mesmo tomando a forma e a condição de escravo e tornando-se semelhante aos homens, sendo reconhecido como homem em todo o seu aspécto. (Fil 2,7).


No seu nascimento

E quando foram a Belém, chegou o dia do seu nascimento e ela deu à luz o seu primogênito, o envolveu em panos e o deitou num presépio, porque não havia lugar para eles na estalagem.

O anjo disse aos pastores: Hoje para vós nasceu o Salvador que é Cristo Senhor, na cidade de David. E isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado num presépio.

Nada de grande neste nascimento, nada que favoreça o amor próprio, a vaidade; nada que atraia a glória. Pelo contrário, tudo é pequeno, desprezível, indigno; é o rejeitado, o refugo do mundo, o lixo das ruas.[ddddddd]

É ali que nasce o Verbo eterno…

Na sua circuncisão

Foi circuncidado ao oitavo dia e foi-lhe dado o nome de Jesus. Ele toma a marca dos pecadores; submete-se a esta lei do pecado.[382]

Sua apresentação

Como um pobre, sem brilho, sem barulho, pais pobres, oferenda dos pobres, confundido com toda a gente. Maria confunde-se com as mulheres e recebe uma benção como as mulheres comuns.

A fuga para o Egito

Foge como um homem sem força, sem defesa: sem oposição. Que humilhação fugir diante de um homem! Que sinal de fraqueza, de medo, de temor! Ele não resiste: mansidão e humildade.

A sua vida escondida em Nazaré

No trabalho e na obediência. Era-lhes submisso. Submeter-se a inferiores, passar por uma criança, um ignorante, ter necessidade de ser cuidado, mandado, receber lições, as ordens de um homem, ele que comanda a natureza inteira, senhor da natureza.

Passa por filho de José

Ele, o Filho de Deus, concebido pelo Espírito Santo, Verbo eterno, como está escondida a sua dignidade!

O Filho de Deus passa por filho de homem, o filho de um carpinteiro.

Que lição para os que prezam os seus títulos e as suas dignidades!

Não exigiu favor nem privilégio; conduziu-se como um homem comum.

Faz-se batizar por João.

Jesus vai até João, seu inferior, reconhece e honra o ministério de João, embora muito inferior ao seu.

“Aconteceu que, enquanto todo o povo recebia o batismo de João, Jesus veio de Nazaré, cidade da Galileia, encontrar João no Jordão, para ser batizado por ele.” (Lc 3,21; Mt 3,13)

“Mas João resistia-lhe, dizendo: Sou eu que devo ser batizado por ti e vens ter comigo!” (Mt 3,14)

Não desdenha a graça que vem de João, E Jesus diz-lhe: “Deixa agora.” Confunde-se com os pecadores, recebe o batismo dos pecadores.

É necessário que se cumpra tudo o que é justo, bom. “Porque é assim que convém para que se cumpra toda a justiça.” (Mt 3,14-15)

Bom exemplo. Como Deus o honra em seguida!

Ele faz também o elogio de São João; mais tarde, não teme diminuir o seu ministério elevando o próprio

Então consentiu e Jesus foi batizado por João no Jordão; e durante a sua oração, a pomba, voz do céu…” (Mc 1,9)

Ele vai para o deserto para jejuar e ser tentado pelo diabo

“O Espírito Santo empurra-o para o deserto” (Mc 1,12) “E Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e imediatamente o Espírito conduziu-o para o deserto para ser tentado pelo diabo.” (Lc 4,1)

“Estava com os animais”

“E ele estava entre os animais.” (Mc 1,13)

Tem fome

“E quando jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, teve fome.”

Que humilhação ser tentado por um inferior que vem ver o que vós sois, tentar as vossas forças, estender-vos armadilhas, solicitar ao mal, ver se sois capaz de fazer qualquer coisa.

“E o Tentador aproximando-se diz-lhe: Se tu és o Filho de Deus, diz que estas pedras se tornem em pães.”

“e Jesus diz: O homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.” (Mt 4,2-4)

Jesus não mostra o que é; não faz nada de espetacular; não responde nada que lhe possa atrair qualquer glória, não se vangloria dos seus títulos; não mostra o seu poder; não pede a seu Pai milagres para si, coisas extraordinárias.

Jesus Cristo começa a sua grande missão por três grandes atos de humildade:

batismo,

jejum,

tentação, provação,

é necessário ser provado.

“Não havia lugares para eles na hospedária” (Lc 2,7)[eeeeeee]

Esconde-se quando faz uma boa ação

Após ter curado o paralítico da piscina, Jesus retirou-se da multidão. Aquele que tinha sido curado, ele próprio não sabia quem ele era, porque Jesus se tinha retirado da multidão de povo que ali estava. (Jo 5,13).

Proíbe aos doentes que curou falar do assunto a quem quer que seja

Jesus, tendo curado dois cegos, proibiu-os severamente de o contar, dizendo-lhes: Tende cuidado, que ninguém o saiba. (Mt 9,30).

Jesus, tendo curado um leproso, proibiu-o de falar do assunto a ninguém. (Lc 5,14).

Após a ressurreição da filha de Jairo, ordenou-lhes severamente que ninguém o soubesse. (Mc 5,43).

Ele afasta-se para curar o surdo-mudo

Quando Nosso Senhor curou o surdo-mudo conduzido à parte para o afastar das pessoas e disse: Efatá e ele foi curado, proibiu a todos os que estavam ali praecipit eis de o dizerem a ninguém; mas quanto mais os proibia, mais eles o publicavam. (Mc 7,36).

Procura mesmo atenuar a glória dos seus milagres

Jesus dirigia-se a casa de Jairo para curar a sua filha quando alguém vem dizer ao chefe da sinagoga: Não atormenteis mais o Mestre, a vossa filha morreu. Jesus, no entanto, foi com os seus três apóstolos e, entrando, diz: Porque fazeis tanto barulho e estais a chorar? esta menina não morreu, ela está a dormindo. E riam-se dele. Mandou retirar toda a gente; tomou o pai e a mãe e os seus três apóstolos; e tomando-a pela mão, disse-lhe:

Levanta-te” e ela pôs-se a andar; e ele ordenou-lhes muito severamente que não dissessem nada a ninguém e que ninguém o soubesse. (Mc 5,36).

Proíbe aos seus apóstolos falar da sua transfiguração, senão após a sua morte

Após a transfiguração, quando os apóstolos desciam da montanha, Jesus deu-lhes esta ordem e disse-lhes: Não faleis a ninguém do que acabastes de ver, até que o Filho do homem tenha ressuscitado dos mortos. (Mt 17,9).

Proíbe também os seus apóstolos de dizerem que ele era o Cristo

Quando São Pedro fez a sua profissão de fé e disse: Eu creio que tu és o Cristo, o Filho do Deus Vivo e que lhe deu as chaves do reino, ele proíbe aos seus discípulos de dizerem a alguém que ele era Jesus, o Cristo. (Mt 16,20).

Afasta-se da multidão que o admira e vai ao deserto para orar

Como a sua fama se difundia cada vez mais, numerosa multidão acorria para o ouvir e ser curados. Porém ele retirava-se para o deserto e ali orava. (Lc 5,15).

Quando toda a gente está a admirá-lo, fala da sua paixão

Depois dos seus milagres, todos estavam espantados com o grande poder de Deus nele e quando estavam admirados com tudo o que Jesus fazia, ele disse aos seus discípulos: Prestai muita atenção ao que vos vou dizer: O Filho do homem deve ser entregue às mãos dos homens. (Lc 9,44; Mt 16,21).

Esconde os seus nomes e títulos gloriosos

Esconde os seus nomes e títulos gloriosos para não se chamar senão o Filho do homem e o enviado de Deus.

Não se preocupa com o que se diz dele

Não responde aos falatórios que se dirigem contra ele

“Falando de João, ele disse: Veio João que não comia pão nem bebia vinho e dizem: Está possesso do demônio.”

“Veio o Filho do homem que come e bebe como os outros e dizem: Aí está um glutão e um homem que gosta de beber.” (Mt 11,19).


Faz dos pobres e dos pecadores a sua companhia predileta

Os escribas e os fariseus criticavam Jesus por comer com os publicanos e os pecadores e Jesus disse-lhes: Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. (Lc 5,31).

Vai a casa de Zaqueu, o publicano.

Vai fazer-se batizar com os pecadores.

É amigo dos publicanos e das pessoas de má vida, diziam os escribas e fariseus. (Mt 11,19).

Não aceita a glória dos homens

Não recebe a sua glória dos homens

Não recebo a minha glória dos homens. (Jo 5,41).

Não procura a sua glória

“Quanto a mim, não procuro a minha própria glória.” (Jo 8,50)

Deixa a seu Pai cuidar da sua glória

“Um outro a procurará.” (Jo 8,50)

e julgar o que deverá ser feito para isso

“e fará o que for justo.” (Jo 8,50).

Diz que tudo o que pode dizer para sua glória não é nada

“Se eu me glorifico, a minha glória não é nada.” (Jo 8,54)

que só seu Pai o pode glorificar

Porém, é meu Pai que me glorifica. (Jo 8,54).

Atribui a seu Pai as obras que fez

Nosso Senhor, tendo provado aos Judeus a sua divindade, disse-lhes: Fiz diante de vós muitas boas obras pelo poder de meu Pai; por qual delas me quereis apedrejar? (Jo 10,32).

Considera-se como o Servo de todos

Quem é o maior? O que está à mesa, ou aquele que serve? Não é aquele que está à mesa? Pois eu estou no meio de vós como aquele que serve. (Lc 22,27).

Aquele que quiser ser o primeiro entre vós, seja vosso escravo; do mesmo modo que o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir. (Mt 20,27).

Jesus lava os pés aos seus apóstolos

Depois da ceia, Jesus levantou-se da mesa, depôs as suas vestes e, tomando uma toalha pô-la à cintura; depois deitou água numa bacia e começou a lavar os pés dos seus discípulos e a enxugá-los com a toalha com que se tinha cingido. (Jo 13,4-5).

E ensina-lhes que devem fazer o mesmo aos outros

Depois de ter lavado os pés aos seus apóstolos e retomado as suas vestes, tendo-se voltado a sentar à mesa, disse-lhes: Sabeis o que vos fiz?

Vós me chamais Mestre e Senhor e dizeis bem, porque o sou.

Se, pois, eu que sou Senhor e Mestre, vos lavei os pés, vós deveis também lavar os pés uns aos outros, porque eu vos dei o exemplo a fim de que, tal como eu fiz, vós façais também.

O servo não é mais do que o seu mestre

Em verdade, em verdade vos digo, o servo não é mais do que o seu mestre, nem o apóstolo mais do que aquele que o enviou.

Se souberdes estas coisas, sereis felizes, se as puserdes em prática. (Jo 13,16).

Jesus prepara a refeição na margem

Os apóstolos tinham passado a noite sem tomar nada.

Depois da pesca milagrosa, os apóstolos vieram para a terra e viram umas brasas preparadas e peixe colocado em cima. Jesus disse-lhes: Trazei alguns dos peixes que apanhastes há pouco. Depois, Jesus disse-lhes: Vinde e comei.

Jesus aproximou-se, tomou o pão e deu-o a eles e do peixe igualmente. (Jo 21,9).

As humilhações do presépio,

da paixão.


Ensino de São Paulo sobre a humildade.

Recebemos tudo de Deus

Que temos nós que não tenhamos recebido de Deus? Porém se o recebestes de Deus, porque vos glorificais como se o não tivésseis recebido dele? (1 Cor 4,7).

Até mesmo incapazes de conceber um bom pensamento por nós próprios

Até mesmo não somos capazes de conceber um bom pensamento como de nós mesmos, porém é Deus que nos torna capazes disso. (2 Cor 3,5).

Porque Deus escolheu o que há de menor segundo o mundo para as suas obras

Deus escolheu os menos sábios segundo o mundo, para confundir os sábios.

Escolheu os fracos segundo o mundo, para confundir os fortes.

Escolheu os mais vis e os mais desprezíveis segundo o mundo e o que não era nada, para destruir o que era alguma coisa no mundo, a fim de que nenhum homem se glorie em sua presença, para que, como diz a Escritura, aquele que se gloria, glorie-se no Senhor. (1 Cor 1,27).

Não há que gloriar-se a não ser no Senhor

Que aquele que se glorie, glorie-se no Senhor.

A nossa glória não é nada

Porque não é aquele que dá testemunho de si próprio, que é verdadeiramente estimável, mas aquele a quem Deus dá testemunho. (2 Cor 10,17).

Só Deus é que faz crescer

Eu plantei, Apolo é que regou, mas foi Deus que deu o crescimento. Assim, aquele que planta não é nada, aquele que rega nada é, porém Deus que é quem dá o crescimento e que é tudo. (1 Cor 3,7).

Rebaixar-se nos seus pensamentos até às pessoas mais humildes

Mantende-vos sempre unidos uns aos outros, nos mesmos sentimentos e nas próprias afeições; e não vos eleveis no vosso interior com pensamentos presunçosos, mas rebaixai-vos até às pessoas mais humildes.

e não ser sábio aos seus próprios olhos

E não sejais sábios aos vossos próprios olhos. (Rom 12,16).

Sujeitar-se aos outros

Submetei-vos uns aos outros mediante uma caridade verdadeiramente espiritual, servite invicem. (Gál 5,13).

Não façais nada por espírito de contenda ou de vanglória.

Julgar os outros acima de si

Mas que cada qual, por humildade, julgue os outros superiores a si. (Fil 2,3).

Não somos nada

Se alguém julga ser alguma coisa, engana-se, porque não é nada.

Não há que comparar-se aos outros ou julgar-se mais do que os outros porque os outros caíram em alguma falta

Que cada um examine as suas próprias ações e encontrará a sua glória em si mesmo, isto é, no mérito das obras que lhe são próprias, e não num outro, nas relações que tenha com os outros. (Gál 6,3).

Adiantar-se aos outros na honra e na deferência

Que cada qual tenha para com o seu próximo uma afeição e uma ternura verdadeiramente fraterna.

Adiantai-vos uns aos outros em testemunhos de honra e de deferência. (Rom 12,10).

São Paulo adverte-nos que a ciência incha

São Paulo adverte-nos de que a ciência incha, que a caridade edifica.

Que a ciência sem a caridade não é nada

Se alguém pensa saber alguma coisa, não tendo a caridade, ainda não sabe

de que maneira se deve saber. (1 Cor 8,1).

Deus é senhor de fazer o que quer, não devemos murmurar contra Deus

Ó homem, quem és tu para discutir com Deus? Um vaso de argila, porventura, diz àquele que o fez: porque me fizeste assim? O oleiro não tem o poder de fazer da mesma massa de barro um vaso destinado a usos respeitáveis e outros destinados a usos vergonhosos?

Exemplos de humildade.

Abraão

Chama-se cinza e pó. (Gen 18,27).

David

Fostes vós que me formastes. (Sl 138,13. 119,73).

São Paulo

Sou o menor dos apóstolos e não digno de ser chamado apóstolo, por ter perseguido a Igreja de Deus.

Mas por graça de Deus sou o que sou e a sua graça não foi estéril em mim. Trabalhei mais do que os outros, não eu, mas a graça de Deus comigo. (1 Cor 15,9).

Está num estado de debilidade, de temor e de tremor diante dos coríntios. (1 Cor 2,3).

Falsa humildade

Pessoas que fingem humilhar-se e cujo interior está cheio de disfarce e de orgulho. (Ecl. 19,23).

Resumo dos ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a humildade.

Não é necessário fazer as nossas ações, a nossa justiça, para ser vistos pelos homens.

É necessário procurar os últimos lugares por humildade e caridade.

Evitar exibir-se nas suas vestes, nas suas maneiras.

Não procurar, nem mesmo aceitar as aclamações, os títulos, os nomes aduladores, os sinais de estima e de respeito.

Há que guardar-se muito dos aplausos dos homens.

Não há que pôr a sua confiança nas suas obras, nem se comparar com os outros.

Não se deve orgulhar dos próprios sucessos, pelo contrário, acreditar que não somos senão servos inúteis.

Não devemos desejar os primeiros lugares.

De que maneira devemos ser os primeiros.

Diferença que há entre os primeiros no meio de nós e os primeiros no mundo.

Importa tornar-se como crianças: são elas os maiores no reino dos céus.

É aos pequenos e aos humildes que o Senhor se revela.

Exemplos de humildade que Nosso Senhor Jesus Cristo nos dá durante a sua vida.

Na sua incarnação.

No seu nascimento.

Na sua apresentação no Templo.

Na sua fuga para o Egito.

Na sua vida oculta em Nazaré, em que passa por ser o filho de José, o carpinteiro.

Em todo este começo da sua vida, segue as leis ordinárias, não pede nem graças, nem privilégios, nem nenhuma isenção; só não assume o pecado, segue as leis ordinárias para todo o resto.

Ele reconhece e honra a missão e o ministério de João, seu precursor, fazendo-se batizar por ele.

Vai ao deserto onde jejua e reza como um pecador e um pobre que tem necessidade da graça.

Esconde-se quando faz uma boa ação.

Proíbe os doentes de falarem da sua cura a quem quer que seja.

Afasta-se com frequência, quando pode, para fazer milagres.

Procura atenuar a glória dos seus milagres antes de os fazer.

Proíbe os seus apóstolos de falarem da sua transfiguração, senão após a sua morte.

Proíbe até mesmo os seus apóstolos de dizerem, inclusive, que ele era o Cristo.

Retira-se da multidão que o admira, para ir orar no deserto.

Quando toda a gente está a admirá-lo, fala da sua paixão.

Esconde o seu nome e os seus títulos gloriosos para não se chamar senão o Filho do homem.

Não responde aos falatórios que se dizem contra ele.

Faz dos pobres e pecadores a sua companhia predileta.

Não aceita a glória dos homens.

Não obtém a sua glória dos homens.

Não procura a sua glória.

Ele deixa o cuidado da sua glória a seu Pai e a de julgar o que deve fazer para o efeito.

Tudo o que pode fazer para a sua glória não é nada.

Só seu Pai o pode glorificar.

Atribui a seu Pai a obras que faz.

Considera-se como o servo de todos.

Não veio para ser servido, mas para servir.

Lava os pés aos seus apóstolos.

Diz-lhes que o servo não é maior do que o mestre.

Prepara a refeição na margem, depois da sua ressurreição.

Humilhações da paixão.

Ensinamento de São Paulo sobre a humildade.

Recebemos tudo de Deus.

Não somos capazes, por nós próprios, de produzir um bom pensamento.

Não há que gloriar-se a não ser no Senhor.

A nossa glória não é nada.

Só Deus é que faz crescer.

Não ser sábio aos seus próprios olhos.

Há que rebaixar-se, nos nossos pensamentos, até às pessoas mais humildes.

Sujeitar-se uns aos outros,

e considerar os outros superiores a si mesmo.

Não nos comparar com os outros.

Não somos nada.

Adiantar-se uns aos outros em matéria de honra e de deferência.

Não há que orgulhar-se da ciência, que não faz senão inchar-nos se não está fundada na caridade.

Deus escolhe o que é mais pobre e menor para fazer as suas obras.

Deus é senhor de nós, faz de nós o que quer, devemos cuidar-nos de não murmurar contra ele.

Exemplos de humildade:

Abraão

David

São Paulo

Os Santos.


Práticas[fffffff]

Ms XII 357

Para seguir Nosso Senhor Jesus e imitar a sua humildade,

Escolheremos, como ele, o que há de mais humilde e de mais pobre sobre a terra.

Pediremos a Nosso Senhor esta humildade de coração, a fim de não o fazer por constrangimento, mas por atração e por amor. Humilde de coração.

Escolheremos de preferência a companhia dos pobres e dos pecadores. Ocultaremos tudo o que nos pode elevar aos olhos dos homens. Saberemos esconder-nos para evitar a glória e as honras.

Não faremos nada para nos fazer conhecer ou glorificar.

Referiremos tudo a Deus.

Falaremos com facilidade do que nos pode abaixar ou humilhar-nos.

Não temeremos realizar as ações mais baixas e humilhantes.

Suportaremos as humilhações sem nos queixar e em silêncio.

Evitaremos vangloriar-nos do que quer que seja, de dar a conhecer as nossas ações aos homens.

Nada temeremos tanto como os louvores e as honras.

Não aceitaremos nenhum título, nem nenhum nome lisonjeiro.

Tomaremos sempre os últimos lugares no mundo e em qualquer parte.

Quando tivermos feito tudo o que devemos fazer, diremos interiormente e em voz alta e com sinceridade: sou apenas um servo inútil.

Estaremos muito convictos de que o servo não é mais do que o mestre, e que, se queremos ser os primeiros no coração de Deus e dos homens, é necessário que sejamos os últimos, isto é, ser servo e seu escravo.

Qui potest capere capiat[ggggggg].

Sereis felizes se conhecerdes estas coisas e as puserdes em prática.

5. Segui-me na minha pobreza[hhhhhhh]

O tema da pobreza já foi tratado no capítulo Renúncia aos bens da terra ao qual é possível referir-se[383].

O Padre Chevrier certamente tinha a intenção de retomar o tema uma segunda vez, mas parece que o texto definitivo não tenha sido realizado. É assim que, no texto reproduzido aqui, se volta a encontrar, sob o título regras de pobreza[384], o enunciado das diversas partes da renúncia aos bens da terra.

Mas a maneira de abordar o assunto está muito de acordo com a linha geral da última parte do Verdadeiro Discípulo. Trata-se de um olhar sereno, atento, prolongado sobre Jesus Cristo nascido como um pobre que viveu como um pobre, e tudo isso por amor à pobreza, por obediência a seu Pai e por amor para conosco[385].

Como Nosso Senhor Jesus Cristo praticou a pobreza.

É o primeiro exemplo que Jesus Cristo nos dá ao entrar no mundo.

Ele quis ser pobre[iiiiiii],

escolheu pais pobres,

nasceu como um pobre,

a pobreza foi o seu caráter distintivo.

Pôs-se ao nível dos pobres,

comprazia-se com os pobres,

viveu como um pobre,

trabalhou como um pobre,

sofreu como um pobre,

foi desprezado como um pobre,

estava sem casa como um pobre.

Ele se comportava como um pobre,

abaixou-se como um pobre,

teve fome como um pobre,

teve sede como um pobre,

esteve nu como um pobre,

foi abandonado como um pobre,

morreu como um pobre.

E tudo isso, por amor à pobreza,

por obediência a seu Pai

e por amor para conosco.

Ele quis ser pobre[386].

São Paulo diz-nos: Vós sabeis qual foi a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se tornou pobre por nosso amor, para que nos tornássemos ricos pela sua pobreza. (2 Cor 8,9).

Escolheu pais pobres.

O anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma virgem que estava desposada com um homem da casa de David, chamado José, e o nome da virgem era Maria. (Lc 1,26).

Foi desprezado como um pobre.

Os Judeus desprezavam-no por causa disso e diziam: Não é este o filho do carpinteiro? sua mãe não se chama Maria? E escandalizavam-se a este respeito. (Mt 13,55).

Nasci como um pobre.

Maria em Belém. E o seu tempo chegou; deu à luz o seu primogênito, envolveu-o em panos e deitou-o numa manjedoura. (Lc 2,12)

Foi repelido como um pobre.

Porque não havia lugar para eles na estalagem. (Lc 2,7).

A pobreza foi o meu sinal, o meu caráter distintivo.

O anjo disse aos pastores: Eis o sinal que vos dou para o reconhecer. Encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura. (Lc 2,10-12).

Coloquei-me ao nível dos pobres.

Ao escolher uma mãe pobre. Pela família… pelo dever religioso… Apresentação… Na vida sempre com os pobres: era a censura dos Judeus.

Vivi como um pobre.

Na humildade, na pequenez, sem luxo, o trabalho. Sou pobre e na indigência. (Sl 39,17). Espigas esmagadas. No dia-a-dia. Mendicus et pauper.[jjjjjjj]

Trabalhei como um pobre.

Sou pobre e nos trabalhos desde a minha juventude. (Sl 87,16). Trabalhou até aos trinta anos para ganhar a sua vida, para obedecer à ordem de Deus: Trabalharás com o suor do teu rosto. (Gn 3,19)

Comprazia-se no meio dos pobres.

Sofri como um pobre.

Sou pobre e sofredor. (Sl 69,30).

Foi desprezado como um pobre.

Não havia lugar para eles na hospedaria. (Lc 2,7). In propria venit et sui eum non receperunt. (Jo 1,11).[kkkkkkk]

Estive sem abrigo como um pobre, durante a minha vida.

Jesus responde a um escriba que lhe diz: Mestre, seguir-te-ei por onde quer que vás. As raposas têm as suas tocas, as aves têm os seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a sua cabeça. (Mt 8,19).

Conduzi-me como um pobre.

Estou no meio de vós como aquele que serve. (Lc 22,27). O Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir. (Mt 20,28).

Humilhei-me como um pobre.

Lava os pés aos seus apóstolos. (Jo 13,5).

Tive fome como um pobre.

No deserto, após o seu jejum, esuriit, teve fome. De manhã, passando perto de uma figueira pediu-lhe frutos porque tinha fome. (Mt 21,18). E passando um dia ao longo de uns campos de trigo, os seus discípulos comeram espigas de trigo, porque tinham fome. (Mt 12,1).

Tive sede como um pobre.

Na cruz, disse: Sitio.

E, no caminho, cansado, sentou-se à beira do poço de Jacob e disse: da mihi bibere.[lllllll] Fel e vinagre sobre a cruz.

Estive nu como um pobre.

Antes de estar atado à cruz e, na cruz, foi despojado das suas vestes.

Fui abandonado como um pobre.

Na cruz diz: Meu Pai, porque me abandonaste? E ninguém que pudesse socorrê-lo…

Morri como um pobre.

Sobre um madeiro, nu, despojado, abandonado, desprezado.

E tudo isso porque quis.

São Paulo diz-nos: Sabeis qual foi a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, fez-se pobre, por nosso amor, a fim de que nos tornássemos ricos pela sua pobreza. (2 Cor 8,9).

O demônio veio oferecer a Jesus todas as riquezas da terra, fazendo-as ver e prometendo-as, se ele o adorasse. Jesus diz-lhe: Retira-te, Satanás, porque está escrito: Tu adorarás o teu Deus e só a ele servirás. (Mt 4,8).

Por obediência a meu Pai.

Não vim para fazer a minha vontade, mas a vontade de meu Pai.

E por vosso amor.

Sabeis qual foi a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por nosso amor, a fim de que nos tornássemos ricos pela sua pobreza. (2 Cor 8,9).

Ensinamento de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a pobreza.

Quando Jesus envia os seus apóstolos ao mundo a pregar e curar, recomenda-os:

dar gratuitamente, (Mt 10,8)

não ter nem ouro, nem prata, nem mochila, nem duas túnicas, comer do que se lhes der, (Lc 9,1; 10,1; Mt 10,1),

que não é necessário procurar tesouros na terra, (Mt 6,19),

que é necessário vender o que se tem e dá-lo aos pobres. (Lc 12,32).

Quer que levemos o desprendimento até deixar que nos tomem o nosso manto,

dar a quem pede,

a não reclamar o que nos foi levado,

e a emprestar sem nada esperar, a dar a quem pede. (Lc 6,27; Mt 5,40).

que o desprendimento de todas as coisas é uma das condições essenciais para ser seu verdadeiro discípulo. (Lc 14,33).

Quando alguém lhe pede para o seguir, exige primeiro deixar tudo. (Lc 9,57).

que, para ser perfeito, é necessário vender o que se tem, deixar todos os bens da terra e seguir Jesus Cristo. (Mt 19,21).

que é impossível a um homem ligado aos bens seguir realmente Jesus Cristo. (Mc 10,23-25).

que ninguém pode seguir dois senhores, (Mt 6,24).

que Deus se encarrega de alimentar e de vestir os que trabalham para ele. (Mt 6,25-35).

que nunca deixou faltar nada aos que trabalham realmente para ele. (Lc 22,35).

É a sua promessa: Procurai primeiramente o reino de Deus e a sua justiça. (Mt 6,33).

Que prometeu aos que tiverem deixado tudo por ele, o cêntuplo neste mundo e a vida eterna no outro. (Mc 10,29-30).

que a felicidade está unida à verdadeira pobreza. (Mt 5,3; Lc 6,20).

Nosso Senhor não pode suportar o menor comércio na sua Igreja. (Jo 2,15).

Que é necessário contentar-se com o necessário (Lc 10,38-42),

nem sequer ocupar-se de assunto de dinheiro (Lc 12,13-21).

Que só o pobre é verdadeiramente ditoso segundo Nosso Senhor (Mt 5,3)

Palavras de Nosso Senhor que podem ser a divisa do verdadeiro pobre são: “Tudo o que é meu é vosso e tudo o que é vosso é meu. (Jo 17,10).

Como Nosso Senhor Jesus praticou ele próprio a pobreza (Mais acima)[mmmmmmm]

Como os santos cumpriram estes preceitos do divino Mestre

São João Batista. (Mt 3,1).

Os primeiros cristãos. (At 4,32).


Exemplo de São Paulo.

evangeliza gratuitamente, (1 Cor 9,11-15)

cede os seus direitos em favor do Evangelho,

não é pesado a ninguém, (2 Cor 12,14-15)

não deseja os bens de ninguém,

trabalha com as próprias mãos, (At 20,33-34)

escusa-se de ter pregado gratuitamente, mas não quer cessar de o fazer até mesmo, porque é a sua glória, (1 Cor 9,15; 2 Cor 11,5-10)

não come gratuitamente o pão de ninguém1,(2 Tes 3,8-9)[387]

nem sequer tem criada consigo, (1 Cor 9,5)

aguenta todas as espécies de sofrimentos, (1 Cor 4,11-13; 2 Cor 11,17)

sabe habituar-se a tudo, (Fil 4,11-12)

sabe contentar-se com o necessário no alimento e no vestir (1 Tim 6,7).

Resumo dos exemplos e dos ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a pobreza

O que vos peço, eu mesmo o pratiquei.

Eu quis ser pobre,

escolhi pais pobres,

nasci como um pobre.

A pobreza foi o meu sinal, caráter distintivo.

Vivi como um pobre,

trabalhei como um pobre,

coloquei-me ao nível dos pobres.

Sofri como um pobre,

aguentei como um pobre,

não tive casa como um pobre (exílio).

Conduzi-me como um pobre,

humilhei-me como um pobre.

Tive sede como um pobre,

estive nu como um pobre,

morri como um pobre.

E tudo isso porque eu quis.

Faço como meu Pai me ordenou.

Quae placita sunt ei facio…[nnnnnnn]

Regras de pobreza

Para nos conformar aos ensinamentos e aos exemplos de Jesus Cristo,

1º   Renunciamos de espírito e de coração a todos os bens da terra.

2º   Contentar-nos-emos com o necessário.

3º   Daremos a quem pede.

4º   Não nos meteremos em assuntos temporais.

5º   Não pediremos nada a ninguém.

6º   Não nos inquietaremos com o futuro.

7º   Contaremos só com Deus.

Vida do verdadeiro pobre

Verdadeiro, quer dizer, aquele que escolheu a pobreza por amor a Nosso Senhor,

contenta-se com pouco, (1 Tim 6,7)

não deixa perder nada, (Jo 6,12)

recebe tudo com reconhecimento, (Lc 10,7-8)

tem um grande respeito pelo que se lhe dá a respeito às esmolas,

não se queixa de nada, (Fil 4,11-12)

trabalha para ganhar a sua vida.[388]

não tem doméstica,

faz todo o trabalho da sua casa,

não emprega operários senão em caso de necessidade.

Não teme fazer as coisas mais humildes e as mais baixas,

tem horror a tudo o que cheire a grande, [o] a luxo e a vaidade (burguês),

presta serviço a toda a gente,

cuida bem de tudo o que tem,

evita a profusão, a prodigalidade, não faz despesas inúteis,

é económico sem avareza.

Felicidade do pobre[389]. (Mt 5,3; Lc 6,20)

Poder do pobre….

Promessas de Nosso Senhor aos pobres. (Mt 5,3; Lc 6,20; Mc 10,29).

Condições para ter parte nas suas promessas.[390]

6. Segui-me na minha caridade[ooooooo]



Nos manuscritos do Padre Chevrier, encontram-se várias maneiras de intitular este capítulo. Ao tentar encontrar a ordem de sucessão, pareceu-nos que os primeiros intentos estavam intitulados: Segui-me na minha caridade para com o próximo[391]. Depois, o título tornou-se: Segui-me no meu amor pelos homens[392]. E, por fim, Segui-me na minha caridade. Esta última opção talvez foi feita numa preocupação de se ater estritamente às palavras da Escritura. Com efeito, não se encontra, no Novo Testamento, a expressão caridade para com o próximo, mas encontra-se ali amor pelos homens[393] e mais frequentemente caridade[394].

No seu conjunto, trata-se do Evangelho puro e simples. Um olhar sobre Jesus Cristo, uma escuta atenta do seu ensino, sem mais. Poder-se-á notar particularmente a preocupação de se deixar ensinar pelos motivos que nos podem determinar à caridade. Nestes motivos, o Padre Chevrier não escolhe os que lhe parecem mais nobres ou aqueles aos quais seria mais sensível, quer reunir todos os que Jesus Cristo apresentou.[395]

Uma das manifestações da caridade é posta mais em relevo, a compaixão.[396] Trata-se mesmo de sentimentos de ternura.[397] Certamente o conjunto mostra bem que não convem para ficar por aí, mas o Padre Chevrier é perspicaz. Ele viu bem que frequentemente a graça de uma caridade ativa se insinua em nós através da compaixão e que nós somos sempre tentados a endurecer-nos porque pressentimos que ao aceitar compadecer-nos, vamos ser levados mais longe.

Estas páginas fazem-nos compreender melhor em que consiste a renúncia ao seu coração[398] e o fim para que tende: tornar-nos realmente mais compassivos.


Ao pensar na casa do Prado onde viviam uma centena de jovens, moços e moças, mais ou menos irrequietos, o Padre Chevrier resumiu e concretizou o seu pensamento da seguinte maneira:

Pediremos a Deus para fazer crescer em nós uma grande compaixão pelos pobres e os pecadores, que é o fundamento da caridade e, sem esta compaixão espiritual, não faremos nada.

Excitaremos em nós esta divina caridade a fim de que possamos ir ao encontro das misérias do próximo e dizer como Jesus Cristo: vinde a mim. Imitaremos Nosso Senhor na sua bondade para com as crianças, chamando-as a si e dando-lhes testemunhos muito particulares de ternura e de afeição. Serviremos para elas de pai e de mãe, ocupando-nos delas com uma sincera afeição para ganhar as suas almas para Deus. Receberemos, quando se apresentar a ocasião, os pais das nossas crianças à nossa mesa, tal como os pobres, sentindo-nos felizes de os servir e de lhes mostrar toda a nossa afeição por eles. Lembrar-nos-emos muito desta palavra do Mestre: Prefiro a misericórdia ao sacrifício e que é necessário ganhar os corações pelo amor e não pela rigidez e pela severidade.

Seremos caridosos para com todos os que nos pedirem, ainda quando não seja mais que uma estampa ou uma palavra, lembrando-nos esta palavra de São Pedro: Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho, eu te o dou.” (At 3,6)

Não recusaremos nunca prestar serviço a quem quer que seja, com alegria e felicidade, olhando-nos, por caridade, como os servidores de todos.

Tomaremos como lema de caridade esta palavra de Nosso Senhor: “Tomai e comei” (Mt 26,26), considerando-nos como um pão espiritual que deve alimentar toda a gente pela palavra, pelo exemplo e pela entrega.[399]


Ao estudar a vida de Jesus Cristo, nosso divino modelo, constatamos de imediato que ele sentia na sua alma uma grande compaixão pelos infelizes

Ora, naqueles dias, como a multidão [não tinha que comer] (Mt 15,32; Mc 8,1), tendo levantado os olhos, Jesus viu [uma grande multidão] (Jo 6,5).

Jesus percorria todas as cidades e aldeias. (Mt 9,35).

Eis que se levava um morto a enterrar. (Lc 7,11).

Na morte de Lázaro [Jesus comoveu-se no seu interior] (Jo 11,33).

Os seus choros sobre Jerusalém. (Lc 19,41).

Chama Judas: Meu amigo. (Mt 26,50).

Tem compaixão da mulher pecadora a seus pés. (Lc 7,38).

Na cruz, perdoa os seus inimigos. (Lc 23,34).

Olha com compaixão todos os que o insultam, o desprezam.

A compaixão é o fundamento da caridade.

É o primeiro sentimento que deve apoderar-se da nossa alma à vista de quem quer que seja que esteja em desgraça. Aquele que permanece frio, insensível à vista dos males, é incapaz de qualquer caridade.[ppppppp]

Chamava a si todos os infelizes para os aliviar

Vinde a mim vós todos [que estais cansados]. (Mt 11,28).

Não quereis vir a mim [para ter a vida]. (Jo 5,40).

A vontade de meu Pai que [me enviou, é que todo o que vê o Filho e acredita nele, tenha a vida eterna]. (Jo 6,40).

Eu sou o caminho, a verdade, a vida. (Jo 14,6).

Quem vem a mim nunca mais terá [sede]. Jo 6,35).

Eu sou o pão vivo. (Jo 6,35).

Eu sou a ressurreição e a vida. (Jo 11,25).

Aquele que crê em mim [ainda que venha a morrer, viverá]. Jo 11,25).

Acolhia toda a gente com mansidão e caridade

Acolhe a multidão. (Jo 6,5).

E os acolhia a todos e devolvia-lhes a saúde. (Mt 14,14)

Traziam os enfermos aos seus pés e Ele os curava. (Mt 15,30)

As crianças

Crianças são apresentadas a Jesus. Mt 19,13 e paralelos).

Os pobres

E sendo já a hora muito avançada. (Mt 14,15).

Tenho compaixão desta multidão, pois que [há três dias que me suportam]. (Mc 8,2).

Dá-lhes vós mesmo de comer.

Estava sempre com os pobres, era a crítica que lhe faziam os fariseus.

Os doentes

Um cego sentado à beira do caminho. (Lc.18,35).

Ao entardecer, quando já se tinha [posto o sol]. Mc 1,32).

Impunha as mãos sobre cada um deles. (Lc 4,40).

Jesus parou numa planície, a multidão [seguia-o]. Lc 6,17).

Um surdo-mudo foi levado a Jesus. (Mc 7,32).

Jesus, tendo levantado os olhos, viu [uma grande multidão]. (Jo 6,5).

Quando chegaram a Betsaida [foi-lhe levado um cego]. (Mc 8,22).

Depois de ter curado um surdo-mudo [uma] grande multidão [veio até ele]. Mt 15,29).

Jesus dirigiu-se para o mar com os seus [discípulos]. Mc 3,10).

Os pecadores

Come com os pecadores e os publicanos. (Mc 2,15).

Vai hospedar-se em casa de Zaqueu. (Lc 19,5).

Suporta a mulher pecadora que lhe beija os pés. (Lc 7,37).

Não condena a mulher adúltera. (Jo 8,11)

A Samaritana. (Jo.4,17).

Não despedia ninguém sem socorro e consolação

Tudo o que meu Pai me dá virá a mim. (Jo 6,37).

A vontade de meu Pai que me enviou. (Jo 6,39).

O Filho do homem veio salvar o que estava [perdido]. (Mt 18,14; Lu 19,10).

Não perdi nenhum dos que me deste. (Jo 18,9).

Tenho piedade deste povo porque há três dias [que estão comigo]. (Mc 8,2).

Ia inclusive ao encontro dos infelizes para os aliviar

Jesus percorreu todas as cidades e aldeias. (Mt 9,35).

Um chefe da Sinagoga chamado Jairo. (Lc 8,41).

O centurião. (Mt 8,7).

Quando vai à piscina probática, pergunta: [queres ser curado?]. (Jo 5,6).

Ad hoc veni; ad hoc missus sum.[qqqqqqq]

Comparações de que se serve para fazer compreender o seu zelo e o seu amor

Parábola do bom pastor que corre atrás das suas ovelhas. (Lc 15,3).

A mulher que perdeu uma dracma. (Lc 15,8).

O pai do filho pródigo. (Lc 15,11).[400]

Parábola do banquete nupcial do filho do rei. Ninguém [vem]. (Mt 22,1).

Fazia o bem apesar da inveja e da maldade dos homens

Acontece que Jesus entrou na Sinagoga [… um homem com a mão ressequida]. (Lc 6,6).

E eis que chega uma mulher que tinha uma [enfermidade]. (Lc 13,10).

Uma mulher surpreendida em adultério. (Jo 8,1).

Mulher pecadora. (Lc 7,37).

Hospeda-se em casa de Zaqueu, mesmo quando sabe que os fariseus o vão criticar. (Lc 19,5).

Haveis de ter mau olhar porque eu sou bom? (Mt 20,15).

Levou a sua caridade até aos últimos limites

Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a sua vida. (Jo 10,11).

Ninguém pode ter maior amor [do que dar a sua vida pelos amigos]. Jo (15,13).

Por isso é que meu Pai me ama, porque [dou a minha vida]. (Jo 10,17).

Tomou sobre si os nossos pecados. Ecce agnus Dei.[rrrrrrr]

Tomou sobre si as nossas enfermidades. (Mt 8,17).

Tenho de receber um batismo e devora-me o desejo de o ver realizar. (Lc 12,50).

Desejei ardentemente comer [esta Páscoa convosco]. (Lc 22,15).

Amou até suportar os seus apóstolos, até lavar os pés aos seus apóstolos, até se fazer servidor dos outros.

Não vim para ser servido, mas para servir. (Mt 20,28).

Tomai e comei, isto é o meu corpo que será entregue por vós.