“Que é que vocês estão conversando pelo caminho?” (13 de março de 2006)

“Que é que vocês estão conversando pelo caminho?”[1]

“Que é que vocês estão conversando pelo caminho?”… Pergunta Jesus aos discípulos de Emaús… “Não parecia que o nosso coração queimava dentro do peito quando ele nos falava na estrada e nos explicava as Escrituras Sagradas?”… A páscoa está se aproximando… Como prometido, vou tentar partilhar como aqui, hoje, depois de quatro meses e meio no Brasil, descobro alguma coisa do Ressuscitado que está sempre chamando, agindo, falando, enviando, e que sempre fica dificil em reconhecê-lo, segui-lo, que é sempre o “Tudo-Outro”.

Tentarei ser mais breve do que da outra vez… mas prefiro ser um pouco longo e partilhar mais coisas do que alguns flash caricaturais. Para compensar escreverei raramente. Junto o editorial do nosso jornal paroquiano de fevereiro.

Na segunda carta coletiva, a do Natal, partilhava como me maravilhava com o acolhimento recebido, a fé da gente, e, ao mesmo tempo bastante perguntas sobre a injustiça, e o que percebia da Igreja. Dizia como me maravilhava da fraternidade entre os padres, dos encontros regulares onde todos se reunem com o bispo. É durante o retiro diocesano no qual todos os padres se encontram com o bispo deixando todas as paróquias da diocese viver sozinhas durante 5 dias, experiência forte de estarmos juntos um presbiterium, que eu escrevo esta carta. Cada noite, a eucaristia é retransmetida pela rádio diocesana, outra experiência de comunhão forte.

Dom José Mauro prega o retiro. Ele é bispo de Janaúba, nova Diocese criada numa região pobre do norte do Minhas Gerais. Jovem, muito aberto, ele nos chama muito a não ficarmos fechados nas igrejas, a acolher o mundo tal como é, a conhecê-lo e amá-lo para anunciar lá o Evangelho. Ele nos chama também a ajudar a Igreja a denunciar os mecanismos de pobreza. Ele nos faz lembrar que a “opção preferencial pelos pobres não é uma opção da Igreja, mas de Cristo que se identificou a eles e se dá a encontrar neles. A sua maneira de pregar, apoiando-se sobre a carta de João-Paulo II « Novo Milenium Ineunte », insistindo sobre a chamada a santidade duma maneira não moralisante criou entre nós um clima simples e profundo.

Escrever a vocês, é também uma maneira para mim de parar, de acolher o que me foi dado nestes quatro meses. Todas as respostas da carta precedente que vocês me enviaram foram para mim caminho de comunhão com vocês e de interpelação pessoal.

A vida de equipa com Padre Juarez e Padre Pedro, e em equipe pastoral

Onde estou agora? Se me inquietei em a minha maneira de questionar com pressa demais, se gostei ser interpelado por tal ou tal de vocês neste assunto, me alegro em ver que este questionamento foi percebido sendo respetuoso e abriu um caminho. Sinto-me feliz com a alegria das pessoas comigo, a começar pela alegria do Padre Juarez, de minha alegria com eles. Fiquei também feliz em ser questionado pelo Padre Juarez.

Tanto que as minhas interrogações, o que me abriu muitos espaços, é o desejo muito forte que Padre Juarez tem em adiantar numa vida de verdadeiro discípulo e apóstolo. Ele vai fazer 36 anos e é Padre já há cinco anos. Sentindo que ele estava em perigo nas múltiplas responsabilidades recebidas enquanto iniciava o ministério, convidou uma comunidade de três irmãs para não viver a missão sozinho. Ele pediu para me acolher para fazer equipe com ele. Numa preocupação fraterna, também pediu para acolher o Padre Pedro, 76 anos, para lhe oferecer uma vida comunitária e a possibilidade de participar um pouco a vida pastoral.

Desde do início de fevereiro, nós temos pois uma vida comunitária, enquanto assumimos duas paróquias (Guaçuí e Dores de Rio Preto), o que representa 40 Comunidades de Base. As duas igrejas mas afastadas são distantes de 85 quilómetros. A largura do território é aproximadamente de 30 quilómetros. Cada comunidade rural é ligada com Dores ou Guaçuí com 10 a 30 quilómetros de pista inaccessível quando chuve demais.

O meu horário teórico é aproximadamente o seguinte:

Cada dia começa, em princípio (infelizmente não sempre e sinto com pressa a diferença) por duas horas de tempo pessoal de estudo do Evangelho, caderno da vida e ofício das Laudes com Padre Juarez e Padre Pedro. Nós nos encontramos também pelo ofício das Vésperas. Depois, saímos para celebrar a missa numa das comunidades. Somos nós dois em Guaçuí com Padre Pedro de segunda-feira até a quinta-feira. Na sexta-feira, nós vamos a Dores de Rio Preto. No sábado e domingo, um fica em Dores, o outro regressa a Guaçuí.

  • segunda-feira: bicicleta e estudo do Evangelho
  • segunda-feira a noite, uma vez por mês, encontro da equipe pastoral com as irmãs e os diáconos (missa, jantar, reflexão); senão missa numa comunidade.
  • terça-feira de manhã: visitas a doentes e outras bênçãos de casas em Guaçuí
  • terça-feira a tarde: correção das Cartas de António Chevrier, que eu traduzo, com uma professora de português para aprender a língua, dar accesso ao Prado do Brasil a estes textos, me deixar trabalhar a mim mesmo por estas cartas; missa numa comunidade à noite.
  • quarta-feira: jornada reservada ao estudo do Evangelho e ao trabalho de reflexão pessoal. Missa numa comunidade à noite.
  • quinta-feira: atendimento das 9h30 às 12h e das 14h às 17h. Missa numa comunidade à noite.
  • sexta-feira: visitas ou atendimento em Dores. Missa numa comunidade rural a noite. É neste dia que nós temos mais a possibilidade de partilhar com o Padre Juarez, preparando o calendârio do mês, o encontro do C.P.P.
  • Sábado de manhã:
  • P.P. no segundo e terceiro sábado do mês (em Guaçuí e em Dores)
  • Retiro mensal com as irmãs e os diáconos até às 15h uma vez por mês
  • Visitas nos outros sábados
  • Sábado à tarde: visitas em uma comunidade e missa
  • domingo
  • missa radiodifusada em Guaçuí às 7h ou em Dores às 8h
  • depois visitas e missa na roça às 16h
  • missa às 19h na cidade

Depois de quatro meses, acho que o ponto mais positivo da minha presença aqui, é a amizade com o Padre Juarez. Nasceu no questionamento mútuo, na missão e na oração partilhada. A nossa alegria também é ver o Padre Pedro feliz por estar conosco, porque foi dificil para ele deixar a carga de pároco. Ele aceitou por obediência ao bispo. Nada lhe dá tanto prazer como lhe propor rezarmos o terço juntos. O que me alegra também, é a amizade com o Padre Olímpio. Encontramo-nos de vez em quando entre duas viagens ao serviço do Prado do Brasil.

É uma sorte poder viver juntos uma ajuda na oração, uma partilha sobre o que vivemos nas visitas nas comunidades. É uma sorte ainda maior para mim que sou estrangeiro. Assim posso entrar aqui em comunhão com dois outros padres, receber deles, partilhar as riquezas da Igreja da França e do Prado.

Neste ministério, descubro de maneira renovada muitas das intuições de António Chevrier: o caráter diocesano da espiritualidade de Antônio Chevrier, a chamada a uma vida fraterna, a uma vida simples, uma vida onde o Evangelho é sem cessar lido e posto no centro da pastoral. Outro dia, fiquei feliz em ouvir Padre Juarez me pedir para o ajudar a bloquear um dia por semana, além da segunda-feira, para estudar o Evangelho, fazer o caderno da vida, refletir e não só viver duma solicitação a uma outra, “por o meu ministério em ordem”, disse ele. Decidimos bloquear juntamente a quarta-feira e nos ajudar em ser fiel neste compromisso.

Hoje, nós fazemos juntos o serviço depois do almoço e não é raro as duas empregadas que comem conosco rirem percebendo que estão sentadas e falando enquanto os padres faziam o serviço. Limpamos a loça do jantar para não mais nos deixar servir em tudo como era antes.

No início de março, perguntei ao Padre Juarez sobre o assunto da taxa dos sacramentos. Encontrei uma preocupação que tinha e ele propôs vivermos só com o salário que nos dá a paróquia[2]. É uma maneira de buscarmos juntos uma vida simples, mas longe de ser pobre. Assim, o salário não depende de maneira nenhuma dos sacramentos celebrados. Fiquei feliz em encontrar um irmão que partilha a mesma busca.

Decidimos abrir o retiro mensal com as irmãs aos diáconos permanentes que ocorre agora no sábado. Além disso, desde o mês de janeiro, nos encontramos uma segunda-feira a noite por mês em “equipe pastoral”. Começamos celebrando, depois jantamos, e tentamos refletir juntos a seguir. Isso fica dificil porque não há tradição de busca em comum senão de fazer calendârios e organizar procissões e celebrações.

Os encontros dos coordenadores das Comunidades de Base

Uma outra alegria foi ver que as perguntas feitas sobre a maneira de viver os encontros dos coordenadores das Comunidades de Base tinham aberto um caminho. Até agora, a partir do que pude ver, o padre dizia a “boa palavra” sobre o Evangelho, depois, várias pessoas comunicavam informações, ordens, e cada um regressava para executar de maneira mais ou menos fiel. Os ¾ dos participantes não tinham aberto a boca, e tiveram bastante dificuldades em escutar.

Padre Juarez me pediu para preparar com ele o primeiro encontro e nós o animamos juntos. Os encontros são em um sábado de manhã por mês. Decidimos ajudar os coordenadores a descobrirem a “Campanha da Fraternidade”, campanha da quaresma da Igreja do Brasil que é sobre o acolhimento das pessoas portadoras duma deficiência com o slogan: “Levanta-te, vem para o meio!” (Mc 3,3). Esta Campanha da Fraternidade é uma boa ocasião para chamar a se abrir ao mundo, à vida do mais pobre.

Inicíamos com 40 minutos de busca no Evangelho da cura do homem com a mão seca (Mc 3,1-6), evangelho escolhido para a Campanha da Fraternidade. Cada um dos coordenadores exprimiu as luzes que achava no texto. Como a cada vez, fiquei assustado em descobrir tantas coisas neste texto tão curto e conhecido.

Depois, nos reunimos em pequenos grupos. Tínhamos colocado os coordenadores das comunidades rurais em duas equipes, os 6 coordenadores das grandes comunidades da cidade num terceiro grupo e os 6 das comunidades urbanas mais pequeninas e fracas num outro. Para refletir, tínhamos proposto as perguntas seguintes:

  • Como vamos viver a Campanha da Fraternidade? Com quem e quando vamos refletir nisso na nossa comunidade?
  • Quem são os deficientes da nossa comunidade (não só aqueles que são católicos e que praticam)?
  • Como “dar a palavra” aos que são deficientes e as suas familias? O que eles vivem?
  • Quais são os gestos concretos que nos parecem possíveis a propor?

Assim, todos os responsáveis tomaram a palavra. Na plenária, a palavra mais forte foi a das comunidades mais fracas, dos coordenadores mais pobres, quando eles falaram das initiativas que já tinham começado a tomar para criar um grupo de alfabetização, lutando assim contra uma deficiência que não era prevista na Campanha da Fraternidade, mas que eles perceberam como fonte de exclusão. A alegria dos participantes, o que se exprimiu sobre o Evangelho, nos maravilhou.

Em Dores, pediram que todos os coordenadores das Comunidades de Base fossam convidados e não só os dos setores. Pediram que, na próxima vez, fizéssemos uma avaliação do que já for feito, vivido, recebido, sobre o que fica dificil. Alegro-me com este pedido para uma verificação a seguir.

A celebração de entrada na quaresma e de lançamento da Campanha da Fraternidade

Há dois meses, na saída dum encontro do C.P.R. onde a Maria-Luisa nos falou da Campanha da Fraternidade, lhe provoquei a se tornar inventiva para que pessoas com deficiências pudessem ser ativas e exprimirem-se durante a missa das cinzas. Do seu lado, Padre Juarez tinha previsto que Gui, jovem trisómico, for instituído coroinha. No último momento, descobri que a celebração seria radiodifusada em direto em Guaçuí pela radio pública local. Maria-Luisa tinha associado A.P.A.E. Houve várias procissões com danças com crianças com deficiência mental, uma leitura por um cego em braille, e, depois, três testemunhas imediatamente depois duma homilia curta chamando a não assistir, mas a escutar, receber, dar a palavra àqueles que têm uma deficiência e ás suas familias:

–     uma mulher com 35 anos, paralisada por uma poliartrita muito invalidante, testemunhou suas revoltas, mas também o caminho de fé, os “anjos” que sempre a ajudaram a superar as dificuldades;

–     uma mulher, que tinha adotado o neto autista do homem viúvo com o qual se casou, falou da sua fé que cresceu e lhe permetiu não ser vencida pelo autismo;

–     uma joven mãe, cujo primeiro filho é trisómico, disse o seu sofrimento, a humilhação quando o diretor da escola privada lhe pediu para retirar o seu filho porque outros pais retiravam os filhos por causa da presença do seu filho trisómico, mas, também, como esta “criança excepcional” fez dela uma “mãe excepcional”, que aprende a amar dum jeito diferente do que antes, como Cristo ajudou-a neste caminho; agora, ela é diretora da escola especializada fundada pela A.P.A.E.

Não imaginava celebrar depois de uns meses em Guaçuí uma missa na qual acolhemos a palavra de Deus que se diz no Evangelho, mas também na vida das pessoas, missa na qual a palavra foi dada às pessoas.

Confio que amo muito a situação de “vigário”, nunca em situação de decidir num país que não é meu, mas em situação de sugerir ou encorajar caminhos, como a insistência de colocar o Evangelho nas mãos das pessoas, como um outro jeito para animar os encontros dos responsáveis.

Estou certo que, mesmo sendo estrangeiro, não corro o risco de me enganar provocando as pessoas a ler o Evangelho, o ler nos grupos e nas tradições que são as suas, em exprimir também o que eles vivem. Olímpio que me acompanha falava da inculturação dizendo que era dar a possibilidade a gente de dizer a palavra que brota neles quando lêem o Evangelho, que era também provocar a cultura a se deixar questionar pelo Evangelho, porque, o Evangelho ficará sempre por uma parte, em contradição com as nossas culturas.

O fato de sistematicamente provocar a ler o Evangelho do dia me dá a possibilidade de acolher sem medo as numerosas expressões de religiosidade popular, fazendo de cada uma uma ocasião de ir ler o Evangelho. Depois, não me incomoda abençoar os tratores, expulsar os espíritos das vacas, etc. Tive também de abençoar uma criança que não comia mais… Na realidade, o pai dela tem um tumor canceroso no cérebro. Dizia que tinha quimioterapia mas que não sabia, e “não queria saber”. Não falava nada com a sua esposa de tudo o que acontecia com ele. Quando o encontrei no dia seguinte, disse que foi uma libertação para ele poder nomear o que vivia e falar com a sua esposa.

Fiquei feliz também em ver que a ligação que tenho com a professora que corrige o meu Português, permitiu que todos os membros da Legião de Maria possam trabalhar a carta de João-Paulo II sobre o Rosario e ser assim provocados a não rezar o terço de maneira repetitiva, mas tomando o tempo para meditação do Evangelho.

As visitas nas comunidades e a chamada a “Ir ver Jesus no Evangelho”

Gosto deste ministério que é parecido ao de Paulo: nós visitamos cada dia comunidades que vivem por elas mesmas, se reunem, rezam, apoiam os doentes, transmetem a fé, partilham a palavra de Deus, participam na vida local, a tal sindicate agricólo, tal manifestação para pedir que uma pista seja asfaltada.

Refiro-me á São Paulo… São verdadeiramente comunidades “Paulistas”, com alegrias, crises também, divisões, com a fraqueza da gente que as compoem, a nossa própria fraqueza… Estes versículos da carta aos Coríntios me falam muito, como vocês podem o compreender mais adiante:

“Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens. Porque, vede, irmãos, a vossa vocação, que não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres que são chamados. Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes; E Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que não são, para aniquilar as que são; Para que nenhuma carne se glorie perante ele.” (1 Cor 1,25-29)

A assembléia paroquial de dezembro de 2005, na qual participaram 70 pessoas (responsáveis de Comunidades de Base, de movimentos e serviços) começou com 1H20 de busca, no Evangelho do nascimento de Jesus, de luzes para viver o ano próximo, primeiro em pequeninos grupos, depois em plenaria. Dois dados sairam:

–     a chamada a “ir ver Jesus no Evangelho”

–     a chamada a ir encontrar Jesus que se fez pobre e a edificar uma Igreja com os que são mais pobres aos olhos do mundo.

Os que descobriram este tipo de partilha para iniciar um encontro ficaram encantados. Ao sair deste encontro, Padre Juarez pediu me para escrever um editorial[3] que assinamos juntos para provocar as pessoas a virem às missas, celebrações das Comunidades de Base, lendo antes o Evangelho, para chamar a iniciar todos os encontros dos movimentos e serviços com um tempo de partilha do Evangelho. No outro dia, o coordenador da escola de teologia (formação proposta sobre a paróquia em 4 anos com um curso de noite por semana), um simple funcionário dos Correios, passou a exprimir a alegria que sentia a não mais começar um encontro sem um tempo de acolhimento do Evangelho.

Para mim, transforma muito a relação com as pessoas. Tento chegar meia hora a uma hora antes da missa para falar com as pessoas, convencer os que não tem lido o Evangelho do dia de fazê-lo antes da missa começar. Depois da proclamação do Evangelho, proponho a 5 à 8 pessoas a dizer a palavra que guardaram, a « palavra da vida », eventualmente de a comentar. Depois deste tempo de intervenção de pessoas, faço a homília preparada antes, mas que modifico para apoiar o que acaba ser dito. A homília é melhor entendida porque as pessoas têm efetivamente lido e meditado o Evangelho.

Isso faz também nascer uma relação de fraternidade, de simplicidade, entre eles já, e comigo. Uma das minhas grandes alegrias, é quando pessoas tendo pouca formação, ousam tomar a palavra e fazem a ligação com a vida. É verdadeiramente a experiência da J.O.C. (Joventude Operária Católica) que me fez acreditar que as pessoas ousariam tomar a palavra quando a aparência inicial era contrária.

Encontro também, nesta insistência a provocar as pessoas a ler o Evangelho, uma maneira de ir a fonte no centro do exercício do ministério. Quando acabo um dia de visitas numa Comunidade de Base onde o Evangelho foi proclamado umas trintas vezes, onde cada um, de casa em casa, disse a « palavra da vida » que recebia, como o encontrava em toda a sua vida, saio nutrido, enquanto preciso também dum momento de solidão com Cristo, dum momento para reler os diversos encontros.

Eis alguns ecos dalgumas visitas, e, através destes ecos, um resumo do que faz a vida da gente, do que é o nosso ministério.

Domingo 5 de fevereiro

Cheguei no início da manhã para conhecer Ewerton e sua esposa Maria, o coordenador duma Comunidade de Base rural onde devo celebrar às 16h. Eles cuidam da irmã de Maria que tem uma deficiência. Deixaram Guaçuí para trabalhar na agricultura e chegaram aqui 4 anos atrás, no momento da partição duma fazenda ao benefício de sem terra e que pagam progressivamente o terrano ao Estado. Peço-lhe para me ajudar a compreender o seu trabalho. Nós andamos longamente no terrano que ele cultiva. Aqui, tudo é manual. A agricultura é pouco mecanisada. Os raros tratores servem apenas para o transporte. O leite das vacas se tira quase em toda parte a mão. No caminho, Ewerton fala da sua fé, do Evangelho que ele lê todas as manhãs quando se levanta, às 5h. No encontro dos coordenadores, o provoquei a testemunhar da importância desta leitura do Evangelho para ele. Eu o ouvi também contar como ficou surpreendido e tocado a meu pedido de visitar o sítio.

Às 15h, nos encontramos num estábulo desativado, um alpendre aberto a todos os ventos, onde a comunidade se reuna para celebrar. As crianças sentam-se na mangedoura. É neste lugar evocador que celebrei a missa de Natal. Na entrada, pergunto a gente se têm lido o Evangelho, se escolheram uma frase. Quando respondem “não”, respondo num grande sorriso: “pois, não pode entrar!” Depois, os convido a escolher uma frase no tempo que precede a missa. Chega uma mulher de 25 anos, casada, uma criança de 5 anos:

–     “Mas não sei ler!”

–     “Mas não tem ninguém na casa que sabe ler e pode ler para você?”

–     “Ninguém!”

Isso foi ocasião duma boa partilha com ela em particular primeiro antes da missa para saber quem conhecia na mesma situação, quem poderia ajudá-las em ousar aprender. Na partilha que seguiu a proclamação do Evangelho, provoquei o debate: “Vejo que, de provocar a chegar tinham lido o Evangelho, exclue aqueles que não sabem ler. Seria melhor parar esta proposta?” A resposta brotou, unanima: “Não!” E um deles de dizer: “Alguém poderia ler para o outro”, antes um outro propôs iniciar um grupo de “alfabetização popular” na comunidade. O tempo dirá se isso se traduziu em realidade.

Segunda-feira 13 de fevereiro

21h, depois da missa que celebrei apesar de ser o “dia de folga”, vou jantar na casa do presidente duma Casa da Misericórdia duma cidade vizinha. Convidou também um médico. O médico fala dos seus problemas de consciência de ginecologista. Explica como se encontrou, numa outra cidade, em oposição com os responsáveis políticos quando se desejava defender os mais pobres, os que não têm relações, as pressões que faziam para evitar a fila aos seus protegidos.

O presidente tinha-me convidado para falar das suas preocupações para que a casa de misericórdia ficasse verdadeiramente a serviço do público e que não fosse o inverso. Segundo ele, vários médicos utilisam o serviço público para o seu trabalho privado. Ele explica também os problemas de corrupção. Ele gostaria que o médico que ele tinha convidado e que partilha este mesmo sentido de justiça aceitasse se apresentar como responsável dos médicos, mas este receia de se encontrar em oposição incluído com pessoas da sua própria família na luta contra a corrupção e os disfoncionamentos. Convidaram-me por causa da minha profissão anterior.

Refletimos juntos sobre a chamada de Deus, a chamada a não ter medo encontrar se em combate mesmo com gente da nossa própria família. Refletimos sobre o jeito de viver a fé na vida social. A casa é sumtuosa. Falamos também do fato de pertencer a classe social favorecida. Não escondo as minhas origens. Acabamos rezando juntos. Aviso que estaria sempre interessado em refletir com pessoas sobre a sua vida e as suas responsabilidades à luz do Evangelho. Talvez seja sem continuação, mas fosse uma maravilhosa reunião de Ação Católica de classe Independante ou do Movimento dos Quadros Cristãos.[4]

Domingo 19 de fevereiro

9h, acabo de celebrar a missa das 8h na matriz em Dores de Rio Preto. João, 25 anos, apresenta-se para me guiar à sua comunidade onde vou celebrar pela primeira vez. Veio a pé para eu não me perder de carro. Mora há pouco tempo na comunidade que vamos visitar e fundou um grupo de jovens. Ele pede qual apoio vamos lhe dar.

Depois de 10 quilómetros de pista, nós paramos na casa de Catarina, 30 anos. Ela tem duas crianças de 8 e 5 anos e foi eleita coordenador da Comunidade de Base, um ano atrás.

–     “Não me sentia capaz, mas não podia recusar o chamado de Deus, e, é verdade que tenho a sorte de ter a fé, mas quase não sei ler nem escrever. Pois, me inscrevi com o meu marido na escola da noite para aprender. Outros se insreverem comigo e mudamos o dia de encontro do Círculo Bíblico para que não caísse no mesmo dia da escola. O meu marido, Maurício, não está comigo. Foi à cidade. Foi abandonado pouco tempo depois do seu nascimento depois de ter sido martirisado nos primeiros meses da sua existência. Tem ainda as marcas. Acaba de deixar a Igreja católica para passar a Assembléia de Deus. Não fala mais. As minhas crianças não compreendem.”

No momento de iniciar as visitas com a Catarina, Maurício chega de bicicleta.

–     “Há alguém que vem à igreja católica e que, na saída da missa, me disse do mal. Pois, passei na Assembléia de Deus há uma semana.” (…) “Os evangelicos dizem que se não fomos com eles, não seremos salvos. Não sei o que pensar.”

Segue uma longa partilha e rezamos juntos, abençoando a casa. Chamo os a rezar juntos na família, mesmo se ele continuar a ir na Assembléia de Deus, a não deixar o seu casamento ser dividido. Alerto sobre esta maneira de anunciar um deus que amaria só aqueles que vem em tal Igreja e de dividir as famílias. Catarina fala dos seus vizinhos imediates. Só a pista que tem a largura dum carro separa as duas casas. Não se disem palavras, e, sempre sem se dizer uma palavra, encontram-se cada um do seu lado na pequenina igreja onde se reunem 30 a 40 pessoas.

Depois vamos com Catarina e João visitar as familias nas casas mais afastadas da comunidade, com pistas muito ruins, num lugar totalmente isolado. Visitamos primeiro Pedro e Aparecida, a família mais antiga da comunidade, aquela que fundou a comunidade. Adotaram um filho e, agora, são avôs. Contam a chegada da Assembléia de Deus que conseguiu a atrair a coordenador em 1998, provocando uma grave divisão na comunidade e que foram quase no ponto de recuperar o edifício da igreja. Finalmente, conseguiram a recuperar quase tudo o terrano exceto a igreja, curtada do resto do terrano por farpados. Partilhamos sobre o Evangelho e abençoo a casa. Almoçamos na casa e peço a possibilidade de “por em prática o salmo 126” para me tornar mais presente às pessoas que íamos encontrar até a noite.

A siesta acabada, vamos na casa vizinha. Maria de Lurdes espera por nós. Ela tem 35 anos, 5 filhos de 19 a 5 anos. A semana passada, foi hospitalizada vários dias em reanimação por tentativa de suicídio. Falamos desta tentativa, com as crianças, da depressão que não é pecado mas doença. Uma das meninas com 14 anos namora com um rapaz de 19 anos. Tento em alertar com mansidão. Celebramos o sacramento dos enfermos, a reconciliação, e eles prometem vir a celebração da noite.

Chegamos na casa de Wagner e Cristina. Vieram há uns meses depois de ter deixado tudo para fugir uma situação de conflite com vizinhos, pessoas da sua família. Ficam bem felizes em ter encontrado aqui um grupo de jovens animado pelo João. Luciano, 17 anos, o mais velho, trabalha na roça com seu pai. Vem de novo na Igreja depois de ter abandonado tudo e inicia a formação de multiplicação dos pães. Celia, 14 anos, prepara o crisma.

A visita continua a pé, porque acaba uma forte chuva e o carro não poderia subir o morro. Chegamos numa família negra com 6 filhos, nos quais o Paulo que tem 6 semanas.

Passamos numa outra família negra. Têm duas crianças de 10 e 8 anos. Se fala da obesidade do mais velho e proponho abençoar a casa.

–     “O sim! Abençoai a casa porque há problemas aqui. No outro dia, passou uma cobra ao lado da casa.”

Questiono sobre a relação que eles fazem entre esta cobra e Deus. concordam que o lugar no fundo dum vale cercado dum muro de granito, com muita água é propício para as cobras e que não é Deus que as envia, nem qualquer espírito maù. Tentamos partilhar o Evangelho. Não sabem ler nem escrever, mas vão na escola com Catarina e Maurício.

Paramos na casa de Elias e Marta. Ele se encontra em depressão grave. Com 57 anos, fez várias tentativas de suicídio e não trabalha mais. Leio várias vezes o Evangelho, até eles ousar dizer uma palavra. Verifico ele se tratar. Celebro o sacramento dos enfermos e chamo-o a vir a missa, não por inquietude de ter gente, mas para ajudá-lo a sair desta fechada. Marta quer falar sozinha. Explica que acaba de vender os 3 porcos para cuidar do seu marido e que está desesperada, não sabe mais o que fazer.

Umas visitas depois, todo o mundo se encontra na Igreja. Maria de Lurdes, aquela que tinha feito uma tentative de suicídio na semana passada, diz que ela fazia o serviço do altar com o nosso predecessor e me pede se eu precisar dela. Com certeza aceito. O serviço será bem particular e bem afastado das regras litúrgicas. Ela coloca a caixa em plastico das hostias sobre o altar, traz tudo avulso… não há vinho na almotolia. Não há corporal nem nada para enxugar o cálice.

Maurício não está aqui, mas Elias está lá quando havia meses sem vir. No momento do gesto da paz, agarra-me fortemente nos braços. Partilhamos o Evangelho onde se fala dos discípulos de Jesus que não jejuavam, do vinho novo em odres novos, Evangelho que tinhamos partilhado de casa em casa. No fim da missa, cantamos o “seja bem vindo o la-la” para Paulo, o bebê, que está presente pela primeira vez na igreja.

Depois da missa, alguém vem me alertar em relação com o bebê. Não é do pai e a mãe tinha dito que o matará na igreja no dia do batismo… Quanto a Maria de Lurdes, vem dizer que foi excluída de todas as responsabilidades que tinha pela comunidade e que ficou muito feliz ter servido no altar. Pede-me também para tentar falar com o seu filho para ele assumir o bebê que concebeu com uma “menina da rua”. Com o Padre Juarez, a noite, decidimos confirmar no seu serviço do altar, mas em tentar pouco a pouco ajudar a o fazer dum jeito mais litúrgico. Confissões depois da missa.

No regresso, o rapaz de 20 anos namorado com a filha de 14 anos pediu a carona para ir a cidade. É ocasião de tentar alertá-lo sobre a idade da sua namorada… Encontra confiante. O que poderá ser entendido?

sexta-feira 24 de fevereiro

Uma mulher originária desta comunidade pobre visitada no domingo vêm nos encontrar nos atendimentos em Dores. É a irmã daquela que passou para a Assembléia de Deus. Conta a mesma história da divisão desta comunidade, a grande pobreza das pessoas e nos pede para apoiar esta comunidade.

À noite, missa na mesma comunidade: nós nos enganamos fazendo o calendário e não tinhamos visto que haveria duas missas em menos duma semana. Caía bem.

18h: paro na casa da Catarina, a coordenadora. Já foi à igreja com as crianças. Partilho um longo momento com o Maurício. É muito aberto e diz com muita alegria no olhar que falou muito com a sua esposa depois da nossa visita, que não vai mais na Assembléia de Deus, mas que não está pronto para vir à missa: “a próxima vez, irei. Agora estou cansado…” Acha portanto que fui embora com pressa demais. Mas era preciso ir acolher o povo, o ajudar a ler, não o Evangelho (muito curto sobre os discípulos de Jesus que não jejuam, mas a primeira leitura: Isaías que fala do jejum que Deus prefere, que quer dizer:

“ Porventura não é este o jejum que escolhi, que soltes as ligaduras da impiedade, que desfaças as ataduras do jugo e que deixes livres os oprimidos, e despedaces todo o jugo? Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres abandonados; e, quando vires o nu, o cubras, e não te escondas da tua carne?” (Isaías 58,6-7)

A pessoa que foi coordenador antes da Catarina teve muitas dificuldades em ler o texto. Hesito, mas lhe peço se ele aceitaria ler uma segunda vez para toda a gente entender bem. Ele aceita. Segue uma longa partilha sobre as ligaduras e as ataduras do jugo que temos de despedaçar. Depois, me lanço, falo das pessoas que não conseguem se falar nas comunidades rurais, porque houve feridas. Evoco as feridas graves tais como o incesto e a chamada a não se deixar destruir, a impossibilidade de ter sentimentos de afeição, a chamada a se fazer ajudar, a chamada a tentar de confiar a Deus na oração aquele que nos feriu.

Faço-o porque já tive várias confissões de meninas que se sentiam culpadas de ter ódio do seu “pai” e foi preciso eu ajudar a encontrar um caminho. Uma delas iniciou uma confissão dizendo:

–     É pecado falar mal de alguém?

–     Por que você faz a pergunta, de quem você fala mal?

–     Do meu pai. Tenho ódio de meu pai.

–     Abusa de você?

–     Sim

–     É primeira vez que você pode dizer isso?

–     Sim.

Seguiu um longo diálogo e tentei em chamá-la a encontrar ajudas e não mais se sentir culpada dos sentimentos nela, achar um caminho.

Aqui, na homilia, depois de ter evocado estas feridas graves, evoco feridas menos graves mas que pedem mais tempo para conseguir entrar num verdadeiro díalogo. Falo do gesto da paz na Igreja que não se faz só quando temos afeição um para o outro, mas que é sinal nós nos reconhecer como filhos de Deus apesar das dificuldades entre nós. Evoco as divisões entre os discípulos de Jesus e que, portanto, foram chamados juntos. Chamo também a superar o que pode ser. Evoco a maneira da Assembléia de Deus em dividir as familias, de dizer que só os que entram na Igreja deles seriam salvos. Questiono:

–     Um Deus de amor poderia amor só aqueles que acreditam nele e que vêm à Igreja?

–     Não!

–     Como agir? Vamos fazer como eles?

–     Não!

Seguiu uma partilha sobre como cuidar das relações com aqueles que passaram para Assembléia de Deus e, ao mesmo tempo, tentei dizer que tudo não é ígual, para denunciar esta maneira de criar uma grande quantidade de igrejas. Não é simples encontrar as palavras. Não se age só duma problema teológica, mas da vida do dia a dia para as pessoas.

Rezamos o Pai Nosso, nos dando as mãos, e, no momento do gesto da paz, volto para os elementos de reflexão da homilia e provoco cada um a se deslocar para dar um sinal de paz a todos os aqui presentes, mesmo aos com quem não se fala já há meses. Ouço o cântico da paz que toma mais e mais força. No fim da missa, compreendi que Catarina me tinha dito que todos se abraçaram, que ela pude falar com os seus vizinhos. No C.P.P. seguinte, ela disse que alguns deram o passo para se falar de novo, mas outros não fizeram.

Houve várias confissões depois da missa com situações muita dificeis: inceste, etc.

Com o Padre Juarez, partilhamos a noite e decidimos dar atenção prioritária a esta comunidade muito pobre (todas não são como esta). Vou me investir mais e ele vai seguir uma outra comunidade da paróquia de Guaçuí que vive coisas similares.

Domingo 7 de março

Celebrei a missa das 8h na matriz de Dores. 9h30, chego numa comunidade. Espero em frente da igreja os que devem me acompanhar. Catia, ministra da eucaristia chega logo, acompanhada por Andréa, outra ministra da eucaristia e filha do coordenador. Elas me pedem para iniciar as visitas com uma visita ao Santíssimo.

Na saída, Catia me pergunta, na presença da Andréa, se eu me lembro do que partilhamos um mês antes nas confissões. Como não estou me lembrando, ela conta que passou dizer o seu grande sofrimento porque Neusia, uma grande amiga, não mais lhe falava já há mais de dois anos por causa da campanha eleitoral. O marido da Neusia perdeu e Neusia se zangou com várias familias com quem era muito próxima. Catia tinha tentado dar o primeiro passo para falar de novo, mas sempre se chocou com uma recusa. Ela pergunta o que fazer. Tinha-lhe suggerido aproveitar das nossas visitas nas famílias para tentar de falar com a Neusia.

Catia e Andréa me pedem se eu queria visitar todas as casas ou só as dos doentes. A comunidade não é grande e decidimos ir a todas as casas, sabendo que as casas que não fossem visitadas no dia ficariam para outro dia de visita. O coordenador, que sabia onde tínhamos decidido ir, disse, não de maneira ritual, mas bem consciente (o que confirmará depois): “Vai com Deus!”

Começamos na casa dos avós do marido da Catia, família que fundou esta comunidade. O avô teve um derrame e se encontra hemiplegico e afasico, mas conseguimos nos comunicar. Partilhamos o Evangelho do dia: Jesus que vai para o deserto e foi tentado no meio dos animais selvagens e que, depois, anuncia a Boa Nova e chama para a conversão. Ele recebe o sacramento dos enfermos, a comunhão e abençoamos a casa.

Agora, é tempo de ir para à casa da Neusia. Catia pergunta: e se ela não me acolher? E o que vou dizer? No caminho, refletimos a partir do Evangelho do envio dos 72 discípulos na missão, da chamada a não se inquietar do que teremos a dizer, que o Espírito Santo colocará a palavra na sua boca. Logo, a casa está a vista. Neusia está fora da sua casa e nos vê. Catia para e pergunta mais uma vêz: “O que vamos fazer?” Prometo-lhe falar primeiro e chamo-a a tentar dizer alguma coisa no momento da partilha do Evangelho. Mas Neusia já se pôs a caminho e se aproxima. Ela se lança nos braços da Catia, e chora, e pede perdão. Uma vez na casa, elas se explicam sobre o que aconteceu. Partilhamos o Evangelho do dia. Abençoo a casa e Neusia pede o sacramento da reconciliação, depois pede um favor: que nós a acompanhemos para visitar as casas de outras pessoas com as quais se tinha zangado. A cada vez, as pessoas ficam muito surpreendidas em vê-la chegar, e ainda mais em vê-la acompanhada pela Catia. Mesmos momentos fortes de partilha. Duma casa para a outra, tal e tal se juntou ao grupo para ir visitar os seguintes.

Na passagem, nos paramos em duas familias africanas:

–     Na casa da Elsa, cujo hálito cheira fortemente o álcool, apesar que sejà só 11h da manhã. Elsa é mãe de 3 crianças com menos de 13 anos. Na partilha, exprime o seu remorso de não ser casada na Igreja “porque não temos dinheiro”. Falamos e Catia e Andréa se propoem em ajudá-la a preparar os documentos. O casamento será celebrado depois da Páscoa, na missa mensal da comunidade. Elas planejam que um refeição de festa sejà proposto, cada família trazendo alguma coisa.

–     Na casa de Beliguinho e Pretinha. Imediatamente antes de chegar, Catia e Andréa param e me avisam que pode ser dificil, porque são alcoólicos, e que pode acontecer que se encontrem bêbedos. O acolhimento é muito bom, não estão bêbedos neste momento. As quatro crianças são magríssimos, em ligação com o alcool. Andréa que pertence à pastoral das crianças visita regularmente esta família para lutar contra a denutrição e a desidratação. Ela evoca a fraqueza da última que tem 3 meses. Eles desejam a bênção da casa. Partilhamos o Evangelho e depois peço quais são os animais selvagens que nos ameaçam hoje. Evoco, no meio de outros, o álcool. Beliguinho acolhe a provocação e falamos do amor de Cristo para aqueles que são doentes do álcool, da dificuldade em sair desta doença. De repente, ele dá uns dez nomes, nos quais o da Elsa. Ajudo-o a entender que é o melhor situado para ir falar com os outros e lhes propor em fundar um grupo de Alcoólicos Anónimos, que, ao mesmo tempo, sería preciso encontrar alguém que conseguisse a sair daí para os ajudar. Andréa toma a palavra para dizer que o seu pai e o seu marido conseguiram em sair desta doença graçaa aos Alcoólicos Anónimos.

Numa das familias zangada com a Neusia, uma das meninas pede se nós podíamos ajudá-los a lançar de novo um grupo de jovens, a outra pede o sacramento da reconciliação.

É hora de almoçar na casa dos sogros da Catia, família que construiu a igreja em ação de graças duma cura recebida por São Sebastião. Sérgio, o marido da Catia, responsável pelo dízimo, explica como ele tinha provocado a comunidade a utilisar o dízimo[5] para comprar progressivamente uma Bíblia para cada família. Hoje, todas as familias têm uma Bíblia e todos participam no Círculo Bíblico nesta comunidade. Aqui, todas as familias são católicas.

Algumas casas depois, é quase a hora da missa. Passamos na casa do Ze do Xico, o coordenador, pai da Andréa. Ela lhe fala do Beliguinho e ele aceita imediatamente de entrar em contato com ele.

Depois do Evangelho proclamado duas vezes para que cada um tenha tempo de ouví-lo e escolher a « palavra da vida », a partilha começa. Catia diz a « palavra da vida » que escolheu: “O reino de Deus aproximou-se”, e ela conta a sua reconciliação com a Neusia. Evoco a doença alcoólica e Ze do Xico anuncia que lança um grupo. Falo das outras comunidades qui iniciaram grupos de “alfabetização popular” para lutar contre a exclusão do analfabetismo. Fala-se dos testemunhos na missa das cinzas e da Campanha da Fraternidade. Apoio os Círculos Bíblicos. No momento do sinal da paz, se faz a mesma coisa do que na outra comunidade. Catia pede para eu passar sem demorar porque duas familias precisam de ajuda para se reconciliar. O tempo dirá o que poderá crescer do que foi semeado.

Por causa de tomar tempo para partilhar o Evangelho, para conversar, consigo visitar só umas dez casas num dia. Em cada casa, o ritual acaba-se com uma foto. Escolhi pedir as pessoas a possibilidade de tirar fotos e anotar os nomes para conseguir pouco a pouco reconhecer cada um. Explico também a eles que será para mim uma ajuda para rezar por eles. Parece bem aceito. A noite, recupero as fotos, salvo-as com o nome das pessoas, faço um documento “Word” onde anoto alguns elementos sobre cada um para eu me lembrar. Faço o meu caderno da vida no qual anoto o que recebi de Deus no dia, palavras, fatos que me tocaram. Antes de voltar numa comunidade, um ou dois meses depois, tomo tempo para reler o documento, apreender os nomes de cada um com a ajuda das fotos, e faço disso a minha oração.

Convições e perguntas sobre o ministério e a Igreja

É através destes encontros e das confissões que descubro o Brasil, ao menos este pontinho do Brasil onde fui enviado. Não descubro só o Brasil, encontro coisas que já vivia na França, no acompanhamento da Juventude Operária Católica, da Ação Católica Operária (pelos adultos), e no que chamava a “pastoral do prato”, maneira de me convidar para comer nas famílias na França[6] ou no verão em Portugal para partilhar e ajudar a gente a situar-se em confiança e achar o seu lugar na Igreja.

Para mim, estas visitas são um momento muito importante para acolher a vida do povo, e, também, para formar os ministros que me acompanham. Muitas vezes, entre duas casas, provoco uma partilha com as pessoas que me acompanham. Explico tal ou tal reflexão que fiz. Partilho esquemas apreendidos no acompanhamento dos moribundos, como a importância de não ficar de pé quando a pessoa é na cama, de não ter medo de rezar sendo sentados. Fazer este tipo de visitas na presença de pessoas, dando a palavra a gente sobre a sua vida, sobre o Evangelho, é sem dúvida a formação principal que tento dar. Falamos também da importância para os ministros de ler para eles mesmo o Evangelho para ter o Espírito de Jesus et permitir aos outros de fazê-lo.

O que toca as pessoas que me acompanham é ver que, de casa em casa, descobrimos outros aspectos do Evangelho. Isso foi muito forte no dia onde partilhamos o Evangelho de Jesus que cura um cego em duas vezes. (Mc 8,22-26)

Mais duma vez, fiquei surpreendido do impato do que se passa entre algumas pessoas numa casa isolada na montanha. De fato, as pessoas visitadas, os ministros que acompanham, nos olham agir, e falam. Quantas vezes, encontrava 30 quilómetros mais longe, alguém que não estava presente e que me contava as visitas que tive no dia antes, e o impato que isso teve para as pessoas depois.

No momento das férias de verão, no mês de janeiro, tive três vezes a oportunidade de viver estes encontros com três seminaristas originários de Guaçuí, ocasiões de lhes dar a conhecer uma maneira de ser padre, uma espiritualidade, de os provocar a falar também.

Realizo que é também nestas visitas, nesta maneira de viver o ministério, na maneira de comentar com as pessoas que me acompanham, tanto do que nas perguntas que eu fiz, que posso partilhar o que recebi na França, o que recebo de novo aqui a Brasil. Em cada casa, sublinho que faço as visitas em comunhão com o Padre Juarez.

Quando nos encontramos, partilhamos por muito tempo o que vivemos cada um do nosso lado. Gostei da sua alegria no regresso da “caminhada penitencial” organizada este fim de semana que reuniu 5 000 pessoas da paróquia, ou do “Retiro de Carnaval” organizado pela Renovação Carismática Católica com a participação doutros movimentos e no qual participaram uns cem jovens durante 4 dias. Concelebremos a missa final e cada um de nós três disse uma palavrinha sobre o Evangelho.

Penso muitas vezes nas reflexões do Padre Antônio Chevrier fundador do Prado sobre a maneira da gente de olhar como os padres (também cada batizado) estão vivendo, agindo, como somos chamados em trabalhar a nos tornar “outros Cristo visíveis”, chamada feita a todos os batizados e que os diáconos ligados ao Prado tinham refletido duma maneira que me tocou muito em novembro de 2002[7]. É impressionante a maneira com a qual todos os nossos gestos são observados, como o fato de tirar os sapatos antes de entrar numa casa para não sujar tocou muito a gente neste última visita que fiz, muito surpreendida por este gesto. Fiz a mesma coisa entrando numa casa com o chão de terra para não fazer diferença com as outras casas.

A gente não escuta os nossos discursos, olham para nós, e sinto com mais força quanto as meus limites se tornam obstáculos para o anúncio da palavra de Deus, sinto isso com mais força nas minhas relações com os outros padres. Não é tão fácil chegar como estrangeiro, e, além do acolhimento caloroso, quanto tempo será necessário para uma partilha com aqueles que eu cruzo dum encontro para um outro?

Tal que é organizada a pastoral, não tenho movimentos[8] para acompanhar, nem serviços[9]. Pois, é nas visitas às familias, nos atendimentos, nas confissões, nas homilias, e nos encontros do C.P.P. que se pode dar uma formação, um caminho com os leigos. Este último ponte vai evoluir porque o Padre Juarez ouviu que era uma falta e nós vamos nos repartirmos os movimentos para os acompanhar realmente ao nível dos responsáveis.

Falando disso, assinalo que, em Guaçuí, não celebramos nem sepultamentos, nem casamentos, e que, além dos diáconos, uns leigos receberam missão para celebrar os casamentos. Eles receberam uma formação com muitos encontros. A responsável da comunidade das irmãs mostrou-me uma autorização vinda de Roma para celebrar os batismos, os sacramentos dos enfermos, os casamentos, quando ocupava a carga de pároco duma paróquia numa das favelas do Rio de Janeiro.

Falta uma formação para os padres saber ajudar a gente a ter a palavra, para animar os encontros de tal modo que o padre não dirija tudo, para ter uma reflexão pastoral, não só organizar mas reler, formar numa fé que toma em conta a vida do mundo, abrir numa espiritualidade outra do que uma espiritualidade muitas vezes piedosa e moralisante, mas que não abre portanto ao encontro de Cristo e dos homens.

Um dos jovens que acaba ser ordenado diácono em vista do ministério presbiteral que deve receber no fim de março, já se encontra sozinho responsável por uma paróquia que tem uma história dificil com o Padre ao qual ele substitui. Além disso, é diretor do Jornal Diocesano e Responsável Diocesano dos Círculos Bíblicos, sem nenhum mais velho para ajudá-lo em entrar progressivamente no ministério, sem lugar para reler e partilhar. Não há surpreza se vários padres caiam, perdam o juízo ou sejam muito autoritários. Para ter partilhado sobre isso com tal padre em responsabilidade na diocese, sei que tem muitas das minhas perguntas que não são fato dum padre francês que julgaria de fora.

Muitas das perguntas que tenho aqui não são próprias a Igreja do Brasil. Sofro também pela maneira da Igreja na França, e de maneira mais geral no mundo, está se fechando e deixando cair dimensões essenciais da chamada a estar presente no mundo, recebendo o que faz o Espírito Santo no mundo. Estou sofrendo pela maneira da Igreja de apoiar muitas devoções sem ajudar um discernamento, e na jeito duma “credulidade piedosa” que está se desenvolvendo em muitos grupos.

Gostei de descobrir de novo ao longo do retiro com Dom José Mauro as fortes alertas de João-Paulo II na sua bellíssima carta « Novo Milenium Ineunte » contre estas desviações e as suas chamadas para uma verdadeira educação a oração. É ocasão para mim de tomar mais consciência donde eu venho, das riquezas da ação católica que me criou, da qual percebia até agora sobretudo os limites. Receio ser tarde de mais quando descobriremos que deixemos se perder esta riqueza. Aqui, os movimentos de tipo pentecostais e outras novas religiosidades apagaram este pé essencial duma vida eclesial, duma fé, que constrói o homem, que evangeliza a sociedade.

Estava para pedir uma entrevista com Dom José para lhe fazer parte da minha alegria em ouvir alguém pregar tal que o fazia e poder partilhar as minhas perguntas, descobertas, e eis que o Padre Olímpio me anuncia que Dom José pede que seja um pradosiano que vem pregar o retiro da sua Diocese no início de agosto. Padre Olímpio me pede para aceitar o fazer… Acho que não vão ser decepcionados com o meu “Português”! Mas espero que eles gostarem do estudo do Evangelho partilhado e já me alegro em receber de padres duma outra Diocese, uma Diocese muito ferida pela história da escravidão, e com uma população com forte dominante africana, rural, muito pobre.

Dom José é religioso paxioniste e deseja que os seus padres tenham uma espiritualidade diocesana que os ajudem a se ligar com os mais pobres, em encontrar Cristo no Evangelho, em ter uma vida fraterna.

Padre Olímpio me pediu também para participar na animação do “Mês Pradosiano”, mês de renovação que ocorrerá no mês de julho a 40 quilómetros de Guaçuí. Irei todos os dois dias animar o dia de estudo do Evangelho sobre “O que é fazer com o Espírito Santo”.

Nestes quatro primeiros meses no Brasil, tive também a alegria de participar de dois encontros dos pradosianos do estado do Espírito Santo (grupo de 15 padres jovens) e a “Semana de espiritualidade do Prado”, encontro de 5 dias aberto a pessoas que não são do Prado, padres e seminaristas. Fomos 30 nos quais 15 seminaristas e era um dos “velhos”, o que não é costome para mim. Gostei de encontrar o clima simples, fraterno do Prado.

Bom caminho pela Páscoa

Tinha prometido uma pequena carta: são 13 paginas menos do que o precedente… Paro aqui e lhes digo de novo quanto rezo por vocês, quanto conto com suas orações. Vocês sabem que, graça a Internet, fico muito presente a cada um de vocês, a Igreja de Créteil, de Lyon, ao Prado da França, a minha família, a vocês todos que contam para mim. Partilhei mais fortemente com a minha família o regresso para a casa do Pai da minha Avó que tinha 96 anos. Leio fielmente os jornais paróquias que recebo de Champigny, os correios de Créteil, do Prado, etc.

Bom caminho para a Páscoa. Com todos os meus sentimentos fraternais.

Padre Bruno

[1]      Aqui é a tradução dum correio coletivo bis ou trianual aos meus amigos na França para tentar partilhar o que vivo e recebo aqui. Decidi traduzir esta carta em brasileiro para poder partilhar com alguns a Brasil. Mas, na medida em que se fala de pessoas daqui, transformei pormenores, nomes, e conto com os que têm este texto para não o transmitir de maneira larga. Escrever, dizer o que sinto, é correr o risco de me enganar, de não ser justo. Espero que este texto seja oportunidade para dialogar e me deixar questionar por vocês.

[2]      814 Reais, o equivalente de 2 salários minimais brasileiros. Na verdade, recebemos muito mais na medida onde somos nutridos, alojados, que não temos a pagar o carro que pertence a paróquia, assim também do que o mobiliário

[3]      Ver outro documento junto

[4]      A.C.I., M.C.C.

[5]      A parte do dizimo que fica para a comunidade

[6]      Em Champigny, comia umas 30 vezes por trimestre nas familias sem esperar que eles me convidassem, mas pedindo para me convidar, em particular as familias mais pobres, insistindo para eles não organizar nada de especial para mim.

[7]      Documento disponível em Francês no Prado, 13, rue Père Chevrier, 69007 Lyon 04 78 72 41 67 ap.prado@wanadoo.fr

[8]      Legião de Maria, Renovação Carismática Católica, Círculo Bíblico, etc.

[9]      Catequeza, preparação ao batismo, aos matrimonio, etc.

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