Eis a tradução de uma carta coletiva que enviei para a França na Festa de Pentecostes de 2008 e que completei notando o que surgiu a partir desta carta a um dono de uma Serraria até ter um primeiro encontro de empresários na quarta-feira 12 de novembro de 2008.
6. Ir ou não celebrar numa fazenda
6.1 Uma situação de escravidão moderna
Quando chegamos em Dores, fomos contatados pelo Senhor João Batista, conhecido com o apelido de Baba, um fazendeiro, proprietário de uma fazenda e de uma serraria. Veio pedir ao Pe Juarez de ir celebrar na capela da fazenda dele.
Durante anos, a comunidade do lugar se reunia nesta capela, até que surge um conflito entre o fazendeiro e a comunidade cristã que provocou a comunidade a construir uma capela a 2 quilômetros e a não mais celebrar na fazenda.
O conflito surgiu depois um pedido do bispo de não ter mais capelas sobre terrenos que não pertenciam à Igreja e pedindo, quando for o caso, que houver doação do terreno no cartório.
O Pe Juarez trabalhou a uma reconciliação entre a comunidade e a família e aceitou celebrar na capela uma vez no ano, na ocasião da festa da padroeira Santa Rita com a comunidade. Aceitei celebrar um casamento da família nesta capela.
No mês de fevereiro de 2008, me encontrei na estrada de chão com João Batista e marcamos a missa de Santa Rita.
No dia 1° de maio, celebrei na nova comunidade “São José Monte Verde” nascida da antiga comunidade Santa Rita e, depois da missa, passei na casa de Ana Claúdia para ajudá-la a escrever um testemunho sobre a transformação da vida dela agora que ela lê a Bíblia.
O marido voltou às 2h30 da serraria do Baba, e como exprimia a surpresa de vê-lo trabalhar um 1° de maio, explicou que trabalhava todos os dias incluído os domingos, feriados, até às vezes às 2h da manhã. Ele é motorista de um Fenwick e carrega os caminhões.
Explicou que, neste período, só 4 empregados tinham carteira assinada sobre 60 funcionários. Questionei várias pessoas nos dias seguintes para verificar a situação e todos confirmaram.
Não sabia mais o que fazer: ir celebrar ou não? Se ir, o que dizer? Pedi conselhos e decidi entregar uma carta pessoalmente ao Baba antes da missa.
Recebi Baba alguns dias antes da missa. Lhe pedi de ler a carta a seguir na minha presença. A carta foi pública no Jornal Paroquial, mas cortando tudo o que descrevia direitamente a situação da serraria.
6.2 Carta tal como foi entrega ao Baba
Os trechos em carateres itálicos não foram publicados no jornal paroquial
Senhor,
Jà há dias que estou refletindo, rezando, pedindo conselhos a várias pessoas, para saber se irei ou não celebrar em Santa Rita, e, se eu ir, o que poderia dizer.
Senhor João Batista, você pode constatar como chegamos com o Pe Juarez com uma preocupação principal: ajudar a Igreja que está em Dores a tornar presente o Cristo Bom Pastor que vai ao encontro de todos, pobres e ricos, participantes da Igreja ou afastados, católicos, de outras religiões, ou sem fé, e ajudar as pessoas à verem Jesus no Evangelho, a viver deste Evangelho.
Houve dificuldades que fizeram a comunidade não mais se reunir em Santa Rita e, com o Pe Juarez, trabalhamos à reconciliação até celebrar de novo aqui, uma ou duas vezes por ano. Quando Vocês pediram, no último momento, eu celebrar aqui o casamento de Christian e Fernanda, vocês fizeram a experiência que facilitei tudo para isso se tornar possível, como fazemos tudo para todos poderem ter acesso à Igreja e aos sacramentos. Assim, quantas pessoas vão receber o matrimônio nestes dias!
Quando, uns meses atrás, nos cruzamos na estrada de chão e que você me falou da festa de Santa Rita, não fiz dificuldade nenhuma e marquei a data sem você ter de me chamar mais e me alegrava de vir celebrar em Santa Rita.
Tudo mudou quando houve a missão no Mundo Novo no sábado 26 de abril. Visitei uma família. Disseram que trabalhavam na sua serraria. Falaram das condições de trabalho: salário correto, disseram eles. Mas, depois, contaram que muitos não têm carteira assinada, que não têm horários marcados, que os que são mensualizados não têm as horas extras pagas, que há pessoas que podem trabalhar 7 dias sobre 7, no domingo, no dia feriado, sem tempo de férias respeitado, de cedo de manhã até tarde de noite, sem ser avisado antes, e bem além da lei, e que, muitas vezes o salário atrasa. Fiquei assustado. Não acreditava. Passei em outras casas e ouvi as mesmas reclamações. Ouvi dizer também que você está mudando a estrutura administrativa da serraria, provavelmente para escapar exigências sociais ou impostos. Se fala dos caminhões da serraria que passam o posto fiscal de noite, quando está fechado. Se fala do mau respeito de você em relação com os operários.
Não é a minha responsabilidade de investigar, mas há coisas que eu pude constatar com os meus próprios olhos, e me perguntava: como posso celebrar aqui e dar a impressão que a Igreja apoia tais práticas?
Eu sou de uma familia que foi pobre no início, mas o meu pai acabou com grandes responsabilidades. Teve a responsabilidade às vezes de fechar usinas por razões econômicas. Passei horas partilhando com ele sobre a dificuldade de ser dono de uma firma na concorrência do mercado, deixando o Evangelho iluminar a prática. Recebi dele também um testemunho forte: duas vezes, demitiu-se de firmas porque não aceitava as práticas desrespeitando a dignidade dos operários e não queria fazer isso, mesmo que fosse com ordem de um superior.
Se eu falo da minha família, é para cortar toda caricatura como já aconteceu comigo numa outra situação onde tive de falar: “o Padre é comunista”, “o Padre é contra os ricos”, “o padre faz política e é de um lado”, etc.
Como a gente sabe, na Associação dos Padres do Prado, nos ajudamos a passar horas no evangelho para conhecer melhor Jesus, ver como ele faz, age, fala, ama.
No Evangelho, vemos Jesus ligar-se de maneira preferencial aos mais pobres, nascendo na condição de pobre no presépio, até se identificar a eles: “Cada vez que vocês não deram de comer e de beber, não partilharam, a um dos mais pequeninos que são os meus irmãos, é a mim que não o fizestes.” (Mt 25,45). Mas nunca se vê Jesus condenar ou excluir os ricos.
Assim, ele diz a Zaqueu, cobrador de impostos (Lc 19,1-10): “Zaqueu, desce depressa, eu preciso hoje demorar na tua casa…”, na tua vida, no teu coração, na tua prática. No mesmo tempo, os religiosos escandalizavam-se: “Ele foi se hospedar na casa de um pecador!” E nós sabemos da reação de Zaqueu comovido em acolher Jesus na sua casa: “A metade dos meus bens, Senhor, eu dou aos pobres; e, se roubei alguém, vou devolver quatro vezes mais.” Sabemos também da conclusão de Jesus: “Hoje a salvação entrou nesta casa, porque também este homem é filho de Abraão. De fato, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido.”
Num outro lugar, Jesus chama Mateus, outro cobrador de impostos a ser apóstolo (Mt 9,9). Ele vai em muitas casas de pessoas importantes para almoçar. Ele acolhe com muito amor o homem rico que queria participar da vida eterna, este mesmo homem que, finalmente, se afasta entristecido porque não conseguiu acolher a chamada de Jesus a não se deixar atrapalhar pelas riquezas para seguí-lo. (Lc 18,18-30)
Eu rezei, hesitei, consultei. Decidi encontrar você e vir falar de verdade, rezando para o Espírito Santo abrir um caminho no seu coração. (…)
Jesus, ele mesmo, não teve medo de denunciar as injustiças, não para condenar, julgar, mas sim, para chamar à conversão. Ele mesmo adverte os seus apóstolos que, se eles se envergonharem de falar, de anunciar o Evangelho, também ele se envergonhará deles. (Mc 8,38)
Não sei se você já leu o capitulo 8 do livro do Profeta Amós, mas vale a pena, não para se sentir condenado, mas para se converter: “Escutem aqui, exploradores do necessitado, opressores dos pobres do país! Vocês ficam maquinando: ‘Quando vai passar a festa da lua nova, para podermos pôr à venda o nosso trigo? (É uma maneira de dizer, que eles querem que a gente trabalhe mesmo nos feriados, nos domingos) Quando vai passar o sábado, para abrirmos o armazém, para diminuir as medidas, aumentar o peso e viciar a balança, para comprar os fracos por dinheiro, o necessitado por um par de sandálias, e vender o refugo do trigo?’ Javé jura pelo orgulho de Jacó: Não posso jamais esquecer de tudo o que essa gente faz.”
Gosto muito do seu padroeiro, João Batista: ele não tinha medo de chamar à conversão, a preparar os caminhos do Senhor, endireitar os seus caminhos. Dizia às multidões que iam para ser batizadas por eles: “Raça de cobras venenosas, quem lhes ensinou a fugir da ira que vai chegar? Produzi então frutos dignos de arrependimento… O machado já está posto na raiz das árvores. E toda árvore que não der bom fruto, será cortada e jogada no fogo.” (Lc 3,4-9)
O que gosto neste trecho, é a atitude das multidões: em vez de se escandalizar com a palavra forte de João Batista, elas questionam: “O que devemos fazer?” E João Batista de dar uma resposta adaptada a cada um, resposta bem concreta e exigente, indo a contramão da prática deles. Aos que têm duas túnicas ou bastante para comer, João Batista disse: “partilha com os que não têm”; aos cobradores de impostos: “não cobrem além da taxa estabelecida”; aos soldados: “Não maltratem ninguém, não façam acusações falsas, e fiquem contentes com o salário de vocês”, nesta situação, “não vai roubar os bens da gente aproveitando da força das armas.” (Lc 3,10-14)
Sabemos também da sua fala muito concreta e pessoal dirigida ao Rei Herodes que namorava com a esposa do seu irmão, e também das consequências desta palavra. Mas João Batista prefiriu perder a vida do que renunciar à missão recebida: chamar todos a endireitar os caminhos para acolher o Cordeiro de Deus, o Messias. (Mt 14,1-12)
No dia em que estou escrevendo, temos a leitura das palavras de Paulo nos Atos dos Apóstolos 20,17-27. É tudo o trecho que me fala muito forte, mas, em particular estas palavras: “Nunca deixei de anunciar aquilo que pudesse ser de proveito para vós nem de vos ensinar publicamente e também de casa em casa. Insisti, com judeus e gregos, para que se convertessem a Deus e acreditassem em Jesus Nosso Senhor.”
Eu rezei, hesitei, consultei. Irei celebrar a festa de Santa Rita, mas decidi vir primeiro lhe falar de verdade, rezando para o Espírito Santo abrir um caminho no seu coração.
Senhor João Batista, você já fez a experiência do que anima o Pe Juarez, do que me anima: manifestar o amor de Cristo a todos, provocar cada um a acolher a palavra do Evangelho, viver dos mesmos sentimentos que Jesus. Rezo para não ter outro sentimento no meu coração que não seja o que Jesus tinha olhando o homem rico: ele amou-o. Rezo para você achar um caminho para esta palavra dar fruto na sua vida e não se afastar entristecido. Reza para eu me deixar sempre mais conduzir pelo Espírito Santo e ser um verdadeiro Padre de Jesus Cristo.
Padre Bruno
6.3 Acolhimento da carta
Na sexta-feira 16 de maio, o Baba leu a carta na minha presença, chorou e disse imediatamente:
– “Lhe agradeço muito. Não realizava. Você é um padre diferente. Você se interessa na vida das pessoas. Você me respeitou, me amou, me falou com muito respeito. Não realizava. Não pensava em prejudicar os operários. Eram pagos com o fundo de garantia do desemprego e completava. Não perdiam nada. As horas extra eram pagas, exceto os motoristas que ganham dois salários e que têm tempos onde o motor está parado”.
Tentou de minimizar os fatos, mas estava muito bem informado. Por exemplo, lhe disse que, quando os operários iam buscar o salário no banco, no fim do mês, muitas vezes, não havia dinheiro depositado e recebiam com um mês de atraso.
– “É verdade…”
A partilha foi especial. O convidei em fundar uma equipe de empresários que aceitariam refletir à luz do Evangelho, sem imaginar que ia fazê-lo.
Uma semana depois, todos tinham carteira assinada, os horários tinham mudado muito, os salários eram pagos no momento certo, o diálogo social transformado, o que pude verificar cada vez que me encontrei com funcionários da serraria.
A carta publicada na « Caminhada Paroquial » tocou muito os operários.
No dia 22 de maio, celebrei a missa de Santa Rita na Fazenda, na presença de toda a família do Baba, assim como de numerosos operários. Fiz referências diretas mas tranquilas à situação e soube pela empregada da casa que Baba falava sem cessar da carta com os seus familiares e de quanto ele gostou dela.
No mês de agosto de 2008, fui celebrar os 90 anos de Dona Cleia, mãe do Baba. De novo, ele mencionou a carta e disse que não se tinha esquecido da proposta de fundar uma equipe, mas que esperava que as eleições passarem para fazê-lo.
6.4 O encontro dos empresários da quarta-feira 12 de novembro de 2008
No sábado 1° de novembro, passei na casa de Baba pedir noticias de uma cirurgia cardíaca que sofreu e ele me avisou que tinha contatado 40 empresários de Dores e Guaçui para um encontro na quarta-feira 12 de novembro. Pensava que alguns iam participar, mas disse que muitos eram assustados pela proposta e tinham medo de vir.
Quarta-feira 12 de novembro, Baba está aqui com 6 outros empresários
- Jorge, Dono do laticínio de Dores, grande empresa fundada em Dores e espalhada em várias cidades.
- Guido, principal comerciante de café e que se opôs várias vezes à ação que fizemos durante a campanha eleitoral para denunciar os crimes eleitorais.
- Menelik, pai da nova Prefeita de Dores, dono de um comercio importante de material de construção
- José, vendedor de adubo;
- Dercio, fazendeiro possuindo miliares de alqueires em Dores e na Bahia.
- Valéria, que possui uns dez postos de gasolina no Espírito Santo e no Minas Gerais.
- Baba, dono da serraria.
Baba iniciou o encontro fazendo uma verdadeira confissão pública de conversão, e explicando quando chegou a ter 60 pessoas trabalhando sem carteira assinada e 7 dias sobre 7; “ao pedido dos operários” que esperavam ganhar mais dinheiro deste modo. Falou longamente da carta, de quanto se sentiu amado, respeitado, como tomou consciência do que fazia e como mudou tudo na serraria. Disse que ainda tinha dificuldades para achar uma solução para os horários dos motoristas dos caminhões.
Lemos a carta “Zaqueu desce depressa” na versão da « Caminhada Paroquial ». Depois, pedimos se as pessoas gostariam se encontrar todos os 3 meses para partilhar sobre como deixar o Evangelho questionar a nossa prática profissional.
Eram muito tocados.
– “É a primeira vez que a Igreja nos convida assim. De costume, os padres fazem homilias na Igreja para tornar os operários contra nós”.
– “Não somos ricos. Temos dificuldades a pagar todas as despesas”.
Reagi a partir do que me partilhou Baba, situando-me do lado deles, por causa da minha família que é rica, por causa do salário dos padres que é alto no Brasil, e lembrei das grandes diferenças de salários no Brasil. Provoquei Baba a dizer o preço mensal que ele paga para a escolaridade de uma das suas 4 crianças: R$ 1 600,00 (4 salários de base) e todos convenceram que um salário de base não dá para viver e criar filhos.
Disse também que era “empresar”, na medida que a paróquia empregava 2 funcionários (secretário e faxineira) e que pagamos o salário de base, que não podia me sentir tranquilo assim, mas que não tinha a possibilidade de fazer diferente.
Guido falou de impossibilidade de ganhar dinheiro com a venda do café. Se pagar normalmente os que fazem a colheita, se dou contrato ou carteira a todos, posso fechar. A venda não compensa os adubos. Tentei fazer refletir sobre a agricultura orgânica. Ele tem reputação de colocar muitos agrotóxicos, incluído sobre uma nascente.
Refletimos sobre o que se pode mudar sem gastar dinheiro, em particular em relação com a segurança no trabalho.
Evocamos os textos bíblicos citados na carta à Zaqueu, e, em primeiro lugar, o texto de Zaqueu. sublinhei que não se dizia que Zaqueu robava e insisti sobre a necessidade para Jesus de ir demorar na casa, na vida de Zaqueu. Será que podemos lançar uma equipe das pessoas que aceitam Jesus lhes dizer: “Desce depressa, preciso hoje de demorar na tua casa, na tua vida, na tua prática?” e partilhar as mudanças que este acolhimento possa provocar?
Evoquei também o texto do rico e do Pobre Lázaro, o rico que realiza tarde demais que não tinha visto o pobre à porta dele.
Nos damos o objetivo de listar os conselhos que João Batista poderia nos dar a partir dos conselhos concretos que ele dá no Evangelho a cada categoria de pessoas que vem se encontrar com ele, notando que, se há coisas que podemos modificar facilmente, há outras que parecem impossíveis a modificar.
Foram eles que evocaram todas as empregadas de casa que não são declaradas, que têm horários anormais.
O próximo número da « Caminhada Paroquial » vai dar conta deste primeiro encontro do grupo dos empresários.
Não posso negar que este caminho com Baba me comove. Nos tornamos “amigos”.
De encontrar nesta equipe alguns que me pressionaram e injuriaram muito durante a campanha eleitora me tocou também.
Não sabia como reiniciar o trabalho contra a corrupção nas eleições daqui 4 anos. Se alguma coisa deve nascer, será talvez a partir desta equipe, lançando muito antes a reflexão para tentar eliminar práticas que matam tudo.
A minha pergunta atual:
O que existe no Brasil que me abra a possibilidade de inscrever o caminho desta equipe num movimento maior?